Por Soraia da Rosa Mendes – 22/02/2017
Na última semana, nos autos do RE 580.252, por sete votos a três, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu ser devido pelo Estado a um preso uma indenização em dinheiro, em razão da situação degradante dos presídios brasileiros, onde milhares de outras pessoas estão confinadas sem “condições mínimas de humanidade”, como se lê nos termos do próprio julgado.
O julgamento iniciou em dezembro de 2014 e foi interrompido por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, cujo voto foi apresentado em março de 2015, no sentido de que a indenização não deveria ser em dinheiro, mas em dias remidos. A tese por ele proposta era de que seria remido um dia para cada três a sete em que a pessoa presa estivesse submetida a condições inadequadas. Segundo o Ministro, a solução do caso concreto em indenização poderia criar “um problema fiscal”. Houve, então, novo pedido de vista, desta vez da Ministra Rosa Weber.
Retomado o julgamento em 16 de fevereiro passado prevaleceu como condutor o voto da lavra do recentemente falecido Ministro Teori Zavascki, acompanhado, nesta última sessão, pelos ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Tóffoli, Marco Aurélio e Carmen Lúcia.
Segundo a tese firmada pelo colegiado "Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento".
Tal como já tive oportunidade de escrever a quatro mãos, em companhia de Fernando Oliveira Samuel[1], não há dúvida quanto à complexidade que o tema das violações ocorridas no ambiente carcerário encerra, sendo impossível considerar a existência de causa única para semelhante situação. O problema, em toda a sua dimensão social, econômica, racial e de gênero desmascara, sobretudo, promessas de avanço em relação aos direitos fundamentais que a modernidade foi incapaz de cumprir[2].
Como também dizemos nós na obra organizada pela professora Elaine Pimentel, da Universidade Federal de Alagoas[3], é aterrador reconhecer que a realidade atual, sob o olhar ainda complacente do Judiciário em decisões simbólicas e/ou de alcance extremamente limitado, permaneça marcada por distintas formas de violência que, também por esta complacência, institucionalizaram-se.
Em um breve histórico é de relembrar que, em agosto de 2015, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do recurso extraordinário n. 592.581, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, decidiu pela possibilidade de o Judiciário determinar que o Poder Executivo execute obras em estabelecimentos prisionais com o propósito de garantir a efetividade de direitos fundamentais das pessoas presas. Na sequencia, em setembro do mesmo ano, em plenário, ao concluir o julgamento da ADPF 347, firmou-se o entendimento de que o sistema carcerário brasileiro encontra-se em um “estado de coisas inconstitucional”, novamente com fundamento nas sucessivas violações aos direitos humanos das pessoas presas.
Entretanto, nenhuma destas decisões impediu que, passados não mais de seis meses, o mesmo plenário do Supremo autorizasse a execução antecipada da pena, e, tomando de empréstimo a expressão do ministro Ricardo Lewandowski (vencido neste julgado), “mandasse mais gente para o verdadeiro inferno”.
É perceptível que, seja quando cantados em prosa e verso por uns, seja quando alvo de críticas de conservadores e/ou pouco esclarecidos (como bem mostraram os pronunciamentos de muitos dos senadores e senadoras sobre este tema na sabatina do futuro Min. Alexandre de Moraes), tanto o julgado do RE 592.581, quanto o decidido na ADPF 347, e mesmo o entendimento agora fixado no RE 580.252, ainda deixam dúvidas em suas premissas sobre o real objetivo das posições da Corte em termos de efetividade dos direitos fundamentais da pessoa presa.
Embora louvável o reconhecimento pelo Supremo de que o Estado deve indenizar pessoas presas submetidas a condições desumanas, muito mais poderia ter dito a Corte do que a concessão de tão somente um quantum simbólico, que mesmo do pedido formulado pela Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul passou longe.
De modo semelhante ao que já fez o Tribunal quando do julgamento do RE 592.581, no qual decidiu que o Judiciário pode determinar ao Executivo a realização de reformas estruturais no sistema carcerário, valendo-se do caso Brown x Plata como pano de fundo, sem dizer que naquele caso a decisão da Corte estadunidense não foi somente a de determinar reformas, mas a de indicar a soltura de aproximadamente 46 mil pessoas, também agora o Supremo apostou em mais uma decisão de eficácia absolutamente limitada e profundamente (embora, repito, importante) simbólica.
Indo além, ainda que com todas as críticas aqui lançadas à decisão proferida na semana que passou, mesmo no campo indenizatório o Supremo poderia ter feito mais.
Como também fizeram questão de frisar alguns Ministros, a decisão proferida no RE interposto pela Defensoria do Mato Grosso do Sul refere-se a um caso concreto. Ou seja, como todos e todas sabemos, sem alcance obrigatório a outros casos, ainda que com idêntica situação descrita. Contudo, desde de 2014 encontra-se sob a relatoria da Ministra Rosa Weber a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5170, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na qual é requerido que a Corte dê interpretação conforme à Constituição aos artigos 43, 186 e 927 (caput e parágrafo), do Código Civil, declarando a responsabilidade civil do Estado pelos danos morais causados às pessoas presas submetidas a condições sub-humanas, insalubres, degradantes ou de superlotação.
A relatora determinou a aplicação do rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/1999 para que a ação seja julgada pelo Plenário do STF diretamente no mérito, sem prévia análise do pedido de liminar. Foram determinadas manifestações das autoridades devidas, e já integram o feito vários amici curiae, todos admitidos. O processo, todavia, permanece concluso.
Obviamente que em nenhuma situação o ativismo desmedido é bem vindo. Entretanto, mais poderia se esperar da Corte brasileira no sentido de diminuição da dor e sofrimento com a atenuação da pena pela "remição" apresentada pelo Ministro Barroso, ainda que sob o fundamento neoliberal de que a indenização poderia ser tornar “um problema fiscal”, do que com a mera e tão só concessão de uma aviltante quantia de R$ 2.000,00 sob o fundamento de que, com isso, o poder público atentará para sua responsabilidade em reformar o sistema penitenciário, ao passo que também estariam atendidas as demandas "referentes à segurança pública, prejudicada pela soltura antecipada de condenados”, como fez a Ministra Rosa Weber, acompanhada pela maioria.
Os julgamentos de uma Corte não são, e nem podem ser jamais, como campeonatos de futebol, onde as torcidas embalam as equipes que entram em campo. E, ainda que o fossem, não seria confortável vestir a camiseta desta ou daquela agremiação, quando, nestes tempos em que vivemos, as colorações vão do gris a tons mais escuros. De todo modo, entre o ativismo que toma a liberdade como fio condutor de um lado, e o fundamento que reserva ao juiz o papel de agente de segurança pública de outro, o tom cinzento ainda veste melhor em favor das pessoas presas e de um Supremo menos retórico.
São os nossos tempos. Como já disse Zaffaroni, em alguns momentos da história os juízes esquecem de sua função, deixam de ser juízes e se tornam policiais "fantasiados" de juízes.[4] Aguardemos agora a chegada de Alexandre de Moraes à Corte. Talvez nem mais a fantasia se fará necessária, e muito poucas camisas cinzas ainda restem.
Noras e Referências:
[1] MENDES, Soraia da Rosa. SAMUEL, Fernando Oliveira. O Julgamento do RE 592.581 pelo Supremo Tribunal Federal: um passo adiante, dois passos atrás. In: PIMENTEL, Elaine. Criminologia e Política Criminal: perspectivas. Maceió: EDUFAL, 2017.
[2] Boaventura Santos (1999, p. 204) vai dizer “As promessas da modernidade, por não terem sido cumpridas, transformaram-se em problemas para os quais parece não haver solução. Entretanto, as condições que produziram a crise da teoria crítica moderna não se converteram ainda nas condições para superação da crise. Daí a complexidade de nossa posição transicional, que pode resumir-se assim: enfrentamos problemas modernos para os quais não há solução moderna”.
[3] Ibidem.
[4] Função do Direito Penal é limitar o poder punitivo. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentino.
. Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. .
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