Por Rosivaldo Toscano Jr. – 09/09/2016
Comemoramos o Sete de Setembro, a data da independência do Brasil. A imagem que imediatamente vem à cabeça é a imortalizada no famoso quadro do paraibano Pedro Américo, pintado em Florença, Itália, quase setenta anos depois (1888). Nele, o Dom Pedro I aparece vestido solenemente, erguendo a espada do alto de um cavalo branco e que, como sugere o título da tela, teria gritado “independência ou morte”.
Na verdade, a cena foi romanceada. A subida da Serra do Mar era feita com jumentos, porque cavalos não a suportavam – de tão íngreme e longa. As roupas retratadas por Pedro Américo jamais seriam usadas em travessia tão dura e em época de tanto calor. E mais: o autointitulado Imperador[1] parou às margens do riacho do Ipiranga para se aliviar de uma forte diarreia.
Na verdade, a suposta independência, da forma como se deu, foi uma jogada política para evitar movimentos que alijassem a monarquia do poder. E nos saiu bem caro. O efeito econômico dela foi uma dívida para com Portugal, em que a Inglaterra se sub-rogou e passou a nos explorar. Quem banca, manda.
É nesse momento que morre o colonialismo, baseado numa ocupação direta e supremacia formal, sujeita a revoltas e reclamos por independência. Nasce a colonialidade, um processo muito mais complexo que o colonialismo, mais sofisticado e eficaz de dominação da periferia pelo centro, no caso do Brasil pela Inglaterra. Observe-se que, já naquela época, a divisão mundial do poder tinha como o centro a Europa e como periferia o que hoje chamamos de América Latina, África e Ásia. Pouco, mas muito pouco mudou. E nada foi em nosso favor.
Na verdade, os primórdios dessa colonialidade aqui foi estabelecida por Portugal, desde que a família real para cá fugiu, mas continuou ligada à matriz de além-mar. Após seu enfraquecimento e subjugação à Inglaterra, a matriz foi substituída por esta e, ao longo do século XX, fomos paulatinamente sendo controlados pelos Estados Unidos, notadamente após a segunda grande guerra mundial. E assim, lamentavelmente, até hoje estamos como quintal estadunidense.[2]
Como herdeira sofisticada do velho colonialismo, a colonialidade manteve as relações desiguais de poder que atravessaram o colonialismo, especialmente no que concerne às etnias, às culturas nativas e aos povos cativos trazidos pela exploração escravista do trabalho humano. Essas relações assimétricas de poder até hoje persistem. Explica Anibal Quijano – que cunhou a expressão “colonialidade” –[3] que essa estruturação desigual foi tratada como fenômeno natural, e não dentro da história do poder. A estrutura de poder que emerge da colonialidade foi e também é um marco dentro do qual operam as outras relações sociais, de tipo classista ou estamental.[4]
Se forem observadas as linhas principais da exploração e da dominação social numa escala global, é impossível não ver que a vasta maioria dos explorados, dos dominados, dos discriminados, enfim, do Outro, são exatamente os membros das “raças”, das “etnias” ou das “nações” em que foram categorizadas as populações colonizadas, no processo de formação desse poder mundial, desde a conquista da América até os dias atuais.[5]
E tais relações não se limitam apenas à subordinação das culturas colonizadas à cultura eurocêntrica. Vai-se além. Engloba a economia, a política e o sistema jurídico.
Trata-se não somente de colonizar outra cultura, mas também de usurpar o que ela tenha de proveitoso para o eurocentrismo[6] e encobrir, silenciar ou exterminar os valores, as tradições, as ideias e os costumes sediciosos ou que questionem o discurso único. Há uma apropriação indébita cultural. Isso foi feito também na órbita teológica, mediante a marginalização e a perseguição dos credos dos povos nativos ou dos trazidos pelos povos escravizados diante da religião imperialista: o cristianismo. O Extermínio dos credos do Outro é parte constitutiva da colonização cultural.
No mundo do saber, os padrões de produção de conhecimento e de significações também foram impostos. Não resta alternativa ao Outro: ou faz o mimetismo ou não será aceito enquanto tal, embora em nenhuma hipótese venha a ter o mesmo prestígio dos nascidos dentro das órbitas nacionais ditas superiores – os nacionais dos Estados centrais. Terá, no máximo, algum destaque enquanto importante for para a manutenção da colonialidade.
Assim, mesmo quando a periferia produz o saber aos moldes eurocêntricos, fica sempre a reboque, obrigada a mimetizar os saberes, de modo que as relações desiguais da colonialidade e a dominação eurocêntrica se imunizem de críticas ou que as críticas sejam de tal modo limitadas que se tornem materialmente inofensivas ou falaciosas.
A colonialidade implica o controle: a) da economia; b) da autoridade; c) da natureza e dos recursos naturais; d) do gênero e da sexualidade; e) da subjetividade e do conhecimento. Significa a adoção de uma economia de mercado ao estilo liberal, e hoje neoliberal, de modo a reconhecer a transnacionalidade das megacorporações oriundas do centro e a não erigir dispositivos que de alguma maneira protejam os trabalhadores, as empresas de capital nacional e os governos da periferia contra essa invasão econômica do capital internacional. O “livre mercado” nada mais é do que a legitimação da lei do mais forte, em franco detrimento das economias e dos povos periféricos.
O “livre mercado” é a carta em branco para que as corporações transnacionais transfiram seus excedentes para o centro, empobrecendo a periferia e, sempre que econômica e geopoliticamente interessante, desnacionalizando os recursos naturais e os parques industriais da periferia. Significa reconhecer uma suposta superioridade civilizacional eurocêntrica a legitimar o modelo de produção de conhecimento gestado nessa tradição como expressão da verdade, obscurecendo, ignorando e menosprezando os saberes locais.
Cuida-se, ainda, de reconhecer a autoridade dos Organismos criados pelo e para os interesses do centro como a mais perfeita expressão de um saber supostamente asséptico, puro e ideal. Império da verdade monolítica.
Implica também um modelo de exploração dos recursos naturais sem limites, baseado na dominação da natureza, e não na sua harmonização com ela, uma vez que parte do especismo e sob uma ótica que beneficia os interesses do capital.
O Outro não é reconhecido como sujeito da história, e esse fato é completamente naturalizado, haja vista que se supõe a superioridade civilizacional eurocêntrica construída através de uma ressignificação histórica etnocêntrica que oculta e encobre as outras narrativas históricas e as outras culturas. O Outro não pode ser nem pode interagir entre – relação Sul-Sul – porque a relação de cooperação entre iguais não interessa aos dominadores, só a de imposição, de acordo com seus interesses, de modo a manter sempre uma posição dominante e subjugadora do Outro. Significa estar o centro dando as cartas do jogo a ser jogado e ditando as regras. A banca, não é custoso lembrar, nunca perde.
Assim, as relações de dominação construídas no início da Modernidade ainda se encontram em marcha na periferia latino-americana, e no Brasil não é diferente. Portanto, cabem aqui as palavras de Edward Said: “As nações contemporâneas da Ásia, América Latina e África são politicamente independentes, mas, sob muitos aspectos, continuam tão dominadas e dependentes quanto o eram na época em que viviam governadas diretamente pelas potências europeias”.[7]
A relação centro-periferia dos séculos XVI a XIX , e em parte do século XX em outros continentes como a África, continua a mesma nos últimos quinhentos anos. Continuamos fornecendo matérias-primas e produtos de baixo valor agregado, importando produtos beneficiados e de alto valor agregado. Hoje, na era pós-industrial, importamos o conhecimento.
Observemos que apesar de formarmos uma nação com 200 milhões de habitantes, todas as montadoras de veículos são multinacionais, de origem estrangeira. Os mercados de consumo interno mais importantes e lucrativos são dominados por multinacionais que remetem seus lucros para a matriz, em especial os Estados Unidos. Devido a essa remessa de excedentes, não há aqui a acumulação primária de capital que possibilite investimentos a longo prazo, ou investimentos em alta tecnologia, que requerem um capital econômico muito elevado. A única saída para o desenvolvimento tecnológico termina sendo o Estado, mas sua intervenção é tolhida porque nos submetemos a uma colonialidade cuja mantra é: não interfira!
A colonialidade atua sobre a reprodução do saber, na formação de convicções e consensos. Na própria academia, somos fadados a reproduzir um receituário que advém dos centros de produção do saber, que se encontram no Ocidente (Estados Unidos e Europa). Importamos ideias, conceitos e pretensas soluções que foram pensados em um ambiente diverso do nosso, mas que são vendidos como universais imutáveis e, principalmente, inquestionáveis.
E há um conteúdo geopolítico importante também nisso tudo. Nosso costume em fazer uma mimese do que é produzido desde fora enquanto discurso de verdade nos aprisiona, porque muitas vezes esses discursos oriundos do centro são exatamente o modo com que a colonialidade controla e domina a periferia. Mais eficiente do que dominar os corpos através de armas é dominar as almas através das mentes. Poder é fazer crer.
Assim, gostaria muito de ser um ufanista ingênuo nesse momento, e comemorar nas ruas a dita independência propalada pelo discurso da maioria. Mas não posso fazer isso por que seria incoerente em razão da nossa condição de vítimas da colonialidade.
Não posso falar em Independência quando estamos no Limiar de perder a nacionalidade das nossas reservas estratégicas de petróleo, nossa herança natural mais valiosa e mais cobiçada por interesses do centro do mundo geopolítico.
Não posso falar em independência quando me deparo com o fato de que, em nossa história republicana – quando não estamos em época de regimes de exceção, ressalto –, metade dos presidentes eleitos não concluem seus mandatos. Mais ainda quando seus sucessores não possuem capital ético mínimo, convalidando, por meio da força das armas ou do discurso de ocasião, a simples usurpação do poder e a imposição de retrocessos éticos, políticos e sociais.
Não posso falar em Independência quando os meios de comunicação em massa são reduzidos a um cartel porta-voz dos interesses do grande capital, nacional e internacional, e com força suficiente para deformar, conformar e manipular a opinião pública, mantendo a estrutura de subjugação a que somos vitimados enquanto Estado e povo que nele habita.
Só seremos verdadeiramente independentes quando tivermos nossa própria narrativa. Seremos verdadeiramente independentes quando pudermos olhar as nossas chagas e as reconhecermos como tal. Nossa Independência está inconclusa. Mas se nada está ganho, nada também está perdido. Tudo é luta, tudo é construção.
Notas e Referências:
[1] Autointitulado porque “imperador” é sempre quem impera à força sobre outras terras, como no caso de Napoleão Bonaparte. O Brasil era um “império” que não imperava sobre outros povos e nações.
[2] LIVINGSTONE, Grace. America’s Backyard: The United States and Latin America from the Monroe Doctrine to the War on Terror. New York; London: Zed Books; Latin America Bureau, 2009.
[3] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, v. 13, No. 29. p. 11-20, 1991.
[4] Tomamos aqui “estamento” no sentido de Raymundo Faoro (FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012, p. 834), como sendo o grupo que se alija no poder, não necessariamente fazendo parte da elite econômica, mas geralmente com ela articulada ou coincidente. Sua regulação não é por meio da lei, mas por convenções que visam, através de trocas e ajudas mútuas, a manutenção parasitária no poder, por meio da apropriação de oportunidades econômicas, seja na esfera pública ou privada. Não se renova. Mudam-se os quadros, muitos deles passados de uma geração a outra, mas o sistema permanece o mesmo, como uma dinastia. O estamento se exerce e se retroalimenta pela desigualdade social. É da ordem do privilégio.
[5] “Esas construcciones intersubjetivas, producto de la dominación colonial por parte de los europeos, fueron inclusive asumidas como categorías (de pretensión ‘científica-objetiva’) de significación ahistórica, es decir como fenómenos naturales y no de la historia del poder. Dicha estructura de poder fue y todavía es el marco dentro el cual operan las otras relaciones sociales, de tipo clasista o estamental. En efecto, si se observan las líneas principales de la explotación y de la dominación social a escala global, las líneas matrices del poder mundial actual, su distribución de recursos y de trabajo entre la población del mundo, es imposible no ver que la vasta mayoría de los explotados, de los dominados, de los discriminados, son entre los miembros de las ‘razas’, de las ‘etnias’ de las ‘naciones’ en que fueron categorizadas las poblaciones colonizadas, en el proceso de formación de ese poder mundial, desde la conquista de América en adelante.”. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, v. 13, No. 29. p. 11-20, 1991, p. 12.
[6] Ao nosso entender, o eurocentrismo é a expressão do Establishment ocidental, a partir dos interesses dos seus países e culturas dominantes dentro de uma visão politicamente liberal e economicamente capitalista, desenvolvida desde a Modernidade e propalada como sendo a melhor ou a única realmente factível. Isso ocorre dentro de uma normalização imposta através de padrões de dominação de natureza cultural, política e econômica, subjugando outros povos e culturas e encobrindo outras realidades existentes ou possíveis – a que damos o nome de colonialidade. O eurocentrismo faz uma releitura deturpada da realidade social, encobrindo as próprias contradições e dissonâncias cognitivas. Trata-se de um discurso imperialista. Enquanto razão instrumental, o eurocentrismo mantém as relações internacionais dentro da única estrutura que lhe é favorável: a centralidade europeia e de seus poucos Estados herdeiros e a supremacia de um grupo minoritário de determinado perfil étnico (branco caucasiano, heterossexual, cristão e burguês) sobre os outros povos e etnias. Cf. SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. A guerra ao crime e os crimes da guerra. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 149.
[7] SAID, Edward. Cultura e imperialismo [Recurso eletrônico]. São Paulo: Editora Schwarcz, 2011, posição 805.
. Rosivaldo Toscano Jr. é Doutor em Direitos Humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.. .
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