O presente artigo visa abordar sobre a adesão à Ata de Registro de Preços e o dever de licitar estabelecido no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Republicana de 1988.
Conforme será visto ao longo deste estudo, a figura do “processo carona” foi estabelecido por regulamento expedido pelo Poder Executivo, estando a norma regulamentar eivada de inconstitucionalidade, pois o Poder Executivo não é legitimado para inovar no sistema jurídico vigente.
Primeiramente será feito rápido estudo sobre o instituto da licitação, os crimes tipificados nos artigos 89 e 90 da Lei nº 8.666/1993, os sujeitos passivos e ativos e, posteriormente sobre a inconstitucionalidade da adesão à Ata de Registro de Preços.
NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE LICITAÇÃO
A obrigatoriedade de a Administração realizar licitação para a aquisição de materiais e/ou serviços encontra previsão na Constituição da República de 1988, artigo 37, inciso XXI, bem como na Lei Federal nº 8.666/1993, in verbis:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Destaques). (...)
A licitação pode ser definida como um procedimento administrativo objetivando a escolha da melhor proposta, com regras predeterminadas no instrumento convocatório, devendo observar os princípios que regem a atividade administrativa, bem como os demais princípios correlatos ao procedimento licitatório, dentre eles os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, vinculação ao instrumento convocatório, julgamento objetivo e adjudicação compulsória. Logo, o administrador deve observar tais princípios, sob pena de praticar ato em descompasso com o ordenamento jurídico vigente.
Nas palavras da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro a licitação pode ser definida como:
(...) procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitam às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato[1].
Na mesma trilha, são os ensinamentos do administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello:
Licitação – em suma síntese – é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na ideia de competição, a ser travada isoladamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao bom cumprimento as obrigações que se propõem assumir. Donde, pressupõe, como regra, duas fases fundamentais (sem prejuízo de outras subdivisões): uma, a da demonstração de tais atributos, chamada habilitação, e outra concernente à apuração da melhor proposta, que é o julgamento[2].
Portanto, o procedimento da licitação é o conjunto de atos que tem como objetivo a seleção da proposta mais vantajosa e melhor produto ou serviço. Esse é seu fim primordial.
Ademais, o art. 43 da Lei de Licitações versa sobre o roteiro básico desse conjunto no que se refere, sobretudo, aos atos que a Administração deve obedecer ao dar andamento ao Processo Licitatório.
A seleção da proposta mais vantajosa para a Administração supõe a observância de regras pré-determinadas, sendo, por óbvio, vedada a introdução extemporânea de novos critérios visando favorecer alguns em prejuízo de outros, com isso ferindo o princípio da isonomia que integra o tripé sobre o qual a licitação assenta: legalidade, igualdade e vantajosidade.
De resto, o próprio princípio da igualdade, que boa parte da doutrina considera a espinha dorsal do certame, pode, no entanto, exigir desigualdade de tratamento, sempre por motivo de situações diversas, se um tratamento igual vier a conduzir a resultados desiguais.
Esse conjunto de atos administrativos e de atos praticados aos licitantes há de ser praticado de forma adequada, devendo observar o procedimento licitatório, qual seja: a elaboração do edital ou convite, o recebimento das propostas, a habilitação, a classificação, a adjudicação, além de outros atos intermediários ou posteriores, como o julgamento dos recursos interpostos pelos interessados, a revogação, as publicações, os aditamentos.
Já por parte dos licitantes temos a retiradas do edital, a proposta, a desistência, a prestação de garantia, a apresentação de recursos, as impugnações. Assim sendo, podemos dizer que a licitação é um conjunto de atos concatenados, onde o puder público visa contratar um material e/ou serviço e o particular tem por objetivo vender para a Administração.
Destarte, o gestor público deve seguir fielmente os princípios que norteiam a administração, especialmente o princípio da impessoalidade, pois os atos do administrador não devem trazer benefícios a determinadas pessoas em detrimento de outras. Seus atos devem ser gerais, visando atingir os interesses coletividade.
Sobre o princípio da impessoalidade o saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles ensinava que:
O princípio da impessoalidade, referido na Constituição de 1988 (art. 37, caput), nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal[3].
Conforme dito, o artigo 43 da Lei 8.666/1993 versa sobre matéria predominantemente procedimental, daí que as leis estaduais, municipais e regulamentos internos de entidades da Administração indireta poderão dispor sobre a regulamentação das normas através de decreto, desde que observado o padrão mínimo estabelecido pela lei de regência, bem como pela Constituição da República de 1988.
Outrossim, a licitação é um processo competição, de caráter administrativo, que se inicia pelo ato convocatório dos possíveis competidores. Ao ser um processo competição será assegurado a todos os participantes o direito de concorrer em igualdade/isonomia, nos termos do Texto Constitucional vigente.
Apesar de ser um processo-competição com caráter administrativo, poderá também se tornar um processo controvérsia, facultado ao licitante ingressar nas vias judiciais para solucionar algum litígio que porventura venha a surgir no curso do processo licitatório. No entanto, poderá surgir litígio no âmbito administrativo que será solucionado pela Autoridade Superior do ente público.
Tanto na via judicial como na Administrativa deverá ser assegurado aos destinatários o contraditório nas decisões proferidas, caso contrário as decisões estarão em dissonância com os preceitos estabelecidos na Constituição da República.
O conceito de contraditório na atualidade não assegura apenas a participação das partes, esta participação deverá ocorrer em plena igualdade. Logo, os envolvidos deverão estar em simétrica paridade para que a decisão proferida, seja na via administrativa ou judicial, tenha plena validade. Esse é o magistério de Aroldo Plínio Gonçalves.
O contraditório como direito de participação em simétrica paridade, como oportunidade de participação, como direito, revestido de proteção constitucional (...) uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é uma liberdade assegurada[4].
Tecidas essas considerações, constata-se que o objetivo primordial da licitação é selecionar a proposta mais vantajosa e melhor produto ou serviço, sendo imprescindível assegurar aos concorrentes condições uniformes para que possam participar em “pé de igualdade” e que, ao final, seja declarado vencedor aquele que cumpriu todos os requisitos do certame licitatório e ofereceu o menor preço. Por fim, cabe destacar que todo o procedimento deve observar o preceito contido no artigo 37, inciso XXI, da Constituição da República de 1988, bem como os requisitos da Lei nº 8.666/1993.
Declarado o licitante vencedor, é hora de adjudicar e homologar o objeto da licitação e, por fim, o vencedor da licitação é chamando para assinar o contrato com a Administração Pública pelo período previsto no edital licitatório.
Caso o Administrador dispense indevidamente a licitação ou frustre o caráter competitivo do certame poderá responder pelos crimes tipificados nos artigos 89 e 90 da Lei 8.666/1993, conforme será abordado a seguir.
O Crime tipificado no artigo 89 da Lei de Licitações
O artigo 89 da Lei nº 8.666/1993 estabelece que constitui crime “Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”.
Os Tribunais Pátrios têm decidido no sentido de que, para a configuração do crime tipificado no artigo 89 da Lei de licitações, o órgão acusador deve comprovar que o agente agiu com dolo, ou seja, deve existir a intenção do agente em lesionar os cofres públicos para a configuração do crime. Eis alguns precedentes neste sentido:
EMENTA Ação Penal. Ex-prefeito municipal que, atualmente, é deputado federal. Dispensa irregular de licitação (art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93). Dolo. Ausência. Atipicidade. Ação penal improcedente.
A questão submetida ao presente julgamento diz respeito à existência de substrato probatório mínimo que autorizasse a condenação do réu na condição de prefeito municipal, por haver dispensado indevidamente o procedimento licitatório para a contratação de serviços de consultoria em favor da Prefeitura Municipal do Recife/PE.
Não restou demonstrada a vontade livre e conscientemente dirigida por parte do réu de superar a necessidade de realização da licitação. Pressupõe o tipo, além do necessário dolo simples (vontade consciente e livre de contratar independentemente da realização de prévio procedimento licitatório), a intenção de produzir um prejuízo aos cofres públicos por meio do afastamento indevido da licitação.
A incidência da norma que se extrai do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais. No caso, o órgão ministerial público não se desincumbiu do seu dever processual de demonstrar, minimamente, que tenha havido vontade livre e consciente do agente de lesar o Erário. Ausência de demonstração do dolo específico do delito, com reconhecimento de atipicidade da conduta dos agentes denunciados, já reconhecida pela Suprema Corte (Inq. nº 2.646/RN, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 7/5/10).
Por outro lado, o que a norma extraída do texto legal exige para a dispensa do procedimento de licitação é que a contratação seja de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, desde que detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos. Há no caso concreto requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de dispensa de licitação. Ilegalidade inexistente. Fato atípico. 5. Acusação improcedente. 6. Ação penal julgada improcedente. (AP 559, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 26/08/2014, Acórdão Eletrônico DJe-214 DIVULG 30-10-2014 PUBLIC 31-10-2014)
DISPENSA DE LICITAÇÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DANO AO ERÁRIO.
A Corte Especial, por maioria, entendeu que o crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige dolo específico e efetivo dano ao erário. No caso concreto a prefeitura fracionou a contratação de serviços referentes à festa de carnaval na cidade, de forma que em cada um dos contratos realizados fosse dispensável a licitação. O Ministério Público não demonstrou a intenção da prefeita de violar as regras de licitação, tampouco foi constatado prejuízo à Fazenda Pública, motivos pelos quais a denúncia foi julgada improcedente. APn 480-MG, Rel. originária Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. para acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 29/3/2012 - STJ.
HABEAS CORPUS. CRIME DE DISPENSA DE LICITAÇÃO FORA DAS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI. ART. 89 DA LEI 8.666/93. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DOLO ESPECÍFICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.
Não trouxe o Parquet estadual elementos capazes de sustentarem a configuração do prejuízo ao erário, tampouco da demonstração do elemento subjetivo especial na conduta do ora paciente na prática do crime previsto no art. 89, caput, da Lei 8.666/1993.
A Corte Especial deste Tribunal Superior decidiu que seria imprescindível a presença do dolo específico de causar dano ao erário e a demonstração do efetivo prejuízo para a tipificação do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/1993. Nesse sentido: (Apn 480/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, Corte Especial, DJe 15/6/2012).
Não se pode simplesmente afirmar que o tal ou qual indivíduo praticou este ou aquele ato previsto objetivamente em lei e por isso merece ser processado criminalmente, sem ao menos indicar o que deixou evidente o dolo de sua ação, nos delitos dolosos, ou a sua negligência, imprudência ou imperícia, nas hipóteses de crimes culposos (AgRg no AREsp 1259376/PB, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI, SEXTA TURMA, DJe 21/11/2018).
Habeas corpus concedido para reconhecer a inépcia da denúncia, diante da ausência de demonstração do elemento subjetivo específico de dano ao erário e seu efetivo prejuízo, e determinar o trancamento da Ação Penal 0001104-86.2009.8.26.0624.
(STJ - HC 480.533/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 02/04/2019, DJe 10/04/2019)
Na mesma trilha são os ensinamentos do doutrinador Cezar Roberto Bitencourt ao afirmar que é necessária a comprovação do dolo específico para a configuração da conduta penal descrita no artigo 89 da Lei de Licitações:
“O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral – dolo -, que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais – intenções e tendências -, que são elementos acidentais, conhecidos como elementos subjetivos especiais do injusto ou do tipo penal. Neste tipo, antecipando, não há previsão da necessidade de qualquer elemento subjetivo especial, como demonstraremos adiante. [...]. O elemento subjetivo das condutas descritas neste art. 89 da Lei de Licitações é o dolo, constituído pela consciência e a vontade de realização das condutas descritas, quais sejam, dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou a inexigibilidade”.[5]
Do mesmo modo posicionou-se o Ministro Felix Fischer do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus nº 315.494/GO, de 2015:
[...]. Com efeito, a simples leitura do caput do art. 89 da Lei nº 8.666/93 não possibilita qualquer conclusão no sentido de que para a configuração do tipo penal ali previsto exige-se qualquer elemento de caráter subjetivo diverso do dolo, entendido como a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo penal. Dito em outras palavras, não há qualquer motivo para se concluir que o tipo em foco exige um ânimo, uma tendência, uma finalidade dotada de especificidade própria, e isso, é importante destacar, não decorre do simples fato de a redação do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93, ao contrário do que se passa apenas a título exemplificativo, com a do art. 90 da Lei nº 8.666/93, não contemplar qualquer expressão como "com o fim de", "com o intuito de", "a fim de", etc. Aqui o desvalor da ação se esgota no dolo, é dizer, a finalidade, a razão que moveu o agente ao dispensar ou inexigir a licitação fora das hipóteses previstas em lei é de análise desnecessária [...].[6]
Para o administrativista Marçal Justen Filho, a ausência de observância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade da licitação somente é punível quando acarretar contratação indevida e retratar o intento reprovável do agente (visando produzir o resultado danoso). Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes mas o agente deixou de atender à formalidade legal a conduta é penalmente irrelevante[7], vez que, para a configuração do crime tipificado no artigo 89 da Lei nº 8.666/1993, é necessário comprovar que o agente agiu dolosamente visando produzir um resultado danoso ao erário.
O agente público e o terceiro podem ser punidos quando simularem os requisitos exigidos nos artigos e 24 e 25 da Lei nº 8.66/1993 e, com isso, realizar o contrato administrativo por inexigibilidade ou por dispensa de licitação, tendo em vista que a contratação será considerada fraudulenta e contrária aos interesses da Administração Pública.
Pode acontecer que somente o agente público responda pelo ilícito, pois o particular não tomou conhecimento ou cometeu qualquer ato para o aperfeiçoamento do evento criminoso, ou seja, inexistiu a vontade do contratado contribuir para evento criminoso. Portanto, mesmo que o contratado tenha se beneficiado com a contratação fraudulenta, não pode ser responsabilizado, pois não estava em conluio com o agente público na empreitada criminosa. Nesse sentido, posicionou-se o doutrinador Guilherme de Souza Nucci:
Esta é a razão pela qual, no parágrafo único desde artigo, inseriu-se que, quanto ao contratado (não servidor), deve-se buscar, além do dolo, a específica vontade de se beneficiar da dispensa ou inexigibilidade da licitação, tendo tomado parte na concretização da ilegalidade. É lógico que o particular, ao fornecer bens ou serviços à Administração, sem ter tomado parte na ilegalidade cometida pelo servidor, que agiu por interesses escusos quaisquer, ainda que tenha lucro, não pode ser responsabilizado criminalmente (...). Assim, no caso o servidor dispensa a licitação, mas o particular não tome parte em qualquer ato ilegal, que lhe diga respeito, ainda que se beneficie da contratação indevida, é incabível a punição[8].
Destarte, o contratado não pode ser punido quando não restar comprovada sua participação na contratação indevida, até porque, por força da prerrogativa de legitimidade e veracidade dos atos administrativos, presume-se que todos os atos administrativos são tidos como legais até que haja prova em contrário. Portanto, não assemelha razoável o contratado ser condenado em razão de ato ilícito praticado pelo servidor público, mesmo que o contratado tenha se beneficiado com a contratação irregular, pois lhe faltará o elemento subjetivo que é o dolo e a vontade de se beneficiar com a dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação.
De mais a mais, cabe unicamente à Administração Pública, através do agente público, averiguar se a contratação se encaixa como dispensável ou inexigível, não competindo ao contratado fazer tal avaliação, tendo em vista que se trata de ato afeto à Administração Pública. Portanto, o particular não pode ser responsabilizado nos casos em que foi dispensada e inexigida a licitação fora das hipóteses legais, a não ser que o particular tenha alguma participação no evento criminoso.
Na ausência de comprovação da participação do contratado para a consumação da ilegalidade este não deve sequer ser enunciado. Uma vez recebida a ação sua absolvição, é medida que se impõe. Foi o que decidiu o Tribunal Regional Federal da Quarta Região –TEF4, ao julgar a Apelação Criminal[9] nº 2000.72.00.001156-9.
O sujeito ativo do crime previsto no caput do artigo 89 (Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade) somente pode ser cometido por um agente público.
Nessa trilha, posiciona o administrativista Marçal Justem Filho, ao afirmar que:
o tipo previsto no caput do artigo 89 exige a atuação de servidor público (acepção ampla do art. 84), pois a decisão de efetivar contratação direta incumbe ao agente da Administração Pública. Estarão sujeitos à sanção penal todos os servidores a quem incumbir o exame do cumprimento das formalidades necessárias à contratação direta”[10], ou seja, o crime do caput do artigo 89 da Lei de Licitações trata-se de um “crime funcional ou próprio[11].
Segundo o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt, é indispensável que o agente público esteja no exercício de sua função pública, devendo ainda ter atribuição especial para conduzir o processo ou procedimento licitatório. Não estando no exercício da função pública e não sendo o responsável pela condução do procedimento licitatório, não terá como o servidor praticar o crime capitulado no artigo 89 da Lei de Licitações.
Eis os comentários do doutrinador:
É indispensável, ademais, que o agente encontra-se no exercício de sua função pública, e que tenha atribuição especial para a prática do processo ou procedimento licitatório. Evidentemente que não pode praticar esse crime que não se encontra no exercício da função ou, por qualquer razão, encontre-se temporariamente dela afastado, como, por exemplo, de férias, de licença etc. Nada impede, contudo, que o sujeito ativo, qualificado pela condição de funcionário público, consorcie-se com um extraneus para a prática do crime, com limitação, evidentemente, preconizada pelo parágrafo único, conforme demonstraremos adiante[12].
O crime tipificado no caput do artigo 89 da Lei de Licitações exige que o sujeito ativo seja um servidor público, ou seja, o tipo penal exige uma qualidade especial do sujeito ativo, tratando-se, portanto, de um crime próprio. Dessa forma, o crime somente pode ser praticado por alguém que seja servidor público e que esteja no exercício da função pública.
No entanto, o artigo 89 da Lei de Licitações comporta dois tipos penais distintos, vez que o crime previsto no caput somente pode ser cometido por servidor público no exercício da função pública, enquanto o crime tipificado no parágrafo único do artigo supramencionado admite a participação de qualquer pessoa física que tenha concorrido e se beneficiado da contratação indevida. Para o particular, responder pelo crime previsto no artigo 89 da Lei de Licitações exige a cumulação de dois requisitos, quais sejam: a comprovação de que concorreu para a consumação da contratação irregular, bem como prova de que se beneficiou da dispensa ou inexigibilidade ilegal. Dessa forma, somente haverá o crime do parágrafo único do artigo 89 se restar comprovados os dois elementos retromencionados. Nessa trilha, posiciona-se o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt:
O parágrafo único do art. 89 limita a responsabilidade penal do partícipe que não reúne a qualidade de funcionário público, exigida pelo caput. O crime de mão própria, regra geral, admite a intervenção de terceiro sem a qualificação exigida pela descrição típica (funcionário público), na condição de mero partícipe, ou seja, participante com uma atividade secundária, acessória, sem realizar diretamente a conduta nuclear do tipo penal. Com efeito, o tipo descrito no parágrafo único do art. 89 apresenta uma peculiaridade especial: limitação da intervenção e da punibilidade do extraneus, que é condicionada a obtenção de benefício representado pela celebração de contrato com o Poder Público[13].
O sujeito passivo do crime do artigo 89 da Lei nº 8.666/1993 será a Administração Pública, sendo que a norma visa tutelar os interesses da Administração Pública, especialmente a moralidade administrativa e a lisura nos procedimentos licitatórios.
O crime do artigo 90 da Lei de Licitações
O artigo 90 da Lei nº 8.666/1993 estabelece que: “Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”, constitui crime apenado com detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.
No presente caso, o legislador buscou reprimir os ajustes ou combinações que objetivam frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame. A intenção do legislador foi tutelar os princípios inerentes à Administração Pública, especialmente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade e probidade administrativa.
Segundo André Guilherme Tavares de Freitas, o artigo 90 da Lei de Licitações objetiva resguardar o princípio da competitividade da licitação e o princípio da igualdade entre os licitantes. Eis os comentários do autor:
O asseguramento do princípio da competitividade da licitação que a Administração pública seleciona a proposta mais vantajosa, principalmente em relação ao preço, razão pela qual, reflexamente, está se resguardando com esta norma penal o patrimônio público.
Sem embargo, intimamente ligado ao princípio da competitividade da licitação está o princípio da igualdade entre os licitantes (...)[14].
Vale dizer que o crime tipificado no artigo 90 da Lei nº 8.666/93 é apenado apenas na forma dolosa, portanto, o agente não incorrerá em crime quando agir com negligência, imprudência, imperícia ou inobservância aos procedimentos legais.
Para a caracterização do delito tipificado no artigo 90 da Lei de licitações basta “que o agente frustre ou fraude o caráter competitivo da licitação, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, com o intuito de obter vantagem decorrente da adjudicação do objeto do certame, vantagem essa que pode ser para si ou para outrem”[15].
Assim, o crime somente se efetiva se o agente conseguir frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame, ou seja, o crime exige o resultado naturalístico que é a frustração ou fraude da competitividade do certame, exigindo-se, portanto, o dano. Dessa forma, se os atos praticados não resultarem em frustração ou fraude ao processo licitatório o agente não será punido, vez que não se pune a tentativa.
Parte da doutrina e jurisprudência entende que é necessária a comprovação do prejuízo decorrente da frustação ou fraude ao caráter competitivo do certame. Com as devidas venias, este autor não coaduna com tal entendimento, tendo em vista que o legislador não exigiu a efetiva vantagem para a caracterização do crime, até porque a redação da norma em estudo diz o seguinte: “com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação”, ou seja, em momento algum foi estabelecida a efetivação da vantagem para configuração do crime tipificado no artigo 90 da Lei de Licitações.
O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de que o crime do artigo 90 da Lei nº 8.666/1993 é formal, ou de consumação antecipada, bastando a frustração do caráter competitivo do procedimento licitatório com o mero ajuste, combinação ou outro expediente. Essa constatação fulmina o argumento da necessidade de prejuízo ao erário, sendo este mero exaurimento do crime.[16] Assim, pode-se dizer que o crime previsto no artigo 90 da Lei de Licitações necessita da comprovação de dolo específico, todavia não depende da comprovação de prejuízo ao erário, por se tratar de crime formal.
Na mesma trilha, posicionou-se o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais na Apelação Criminal 1.0637.14.004187-1/001, de Relatoria do Desembargador Wanderley Paiva, aduzindo que:
O crime previsto no artigo 90 da Lei nº 8.666/93 é formal, ou seja, não exige efetivo prejuízo à Administração como consequência de resultado naturalístico, tampouco se demanda a obtenção da vantagem ao agente, pois a tutela circunda a moralidade pública, assegurando o caráter competitivo do procedimento licitatório, como princípio específico insculpido na seara das licitações e contratos[17].
Para o doutrinador Cezar Roberto Bitencourt não é necessária a efetivação do prejuízo para consumação do crime do artigo 90 da Lei de Licitações, eis os comentários do doutrinador:
Não se pode confundir, para efeito de consumação, a materialização da frustração ou da fraude com a efetiva obtenção da vantagem referida no dispositivo legal, na medida que dita vantagem representa somente o fim especial da ação, que, como tal, não precisa de concretizar, sendo suficiente que exista no psíquico do agente, isto é, que seja o móvel da ação. Na verdade, tampouco é necessário à consumação que ocorra o prejuízo econômico, o qual, se vier a existir, representará somente o exaurimento do crime.[18]
A realização de procedimento licitatório sem a observância das formalidades devidas, por si só, não configura o crime tipificado no artigo 90 da Lei de Licitações, tendo em vista que, para ser penalmente relevante, depende da demonstração do dolo, que consiste na vontade consciente de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do certame, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Vale dizer que a invalidação do certame licitatório pela Administração Pública não afasta a configuração do crime tipificado no artigo 90 da Lei de Licitações e Contratos, foi o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o RHC 18.598/RS, ficando consignado que: “a anulação do certame licitatório, em razão do evidente ajuste prévio entre os licitantes, não afasta a tipicidade da conduta prevista no art. 90 da Lei n.º 8.666/93”.[19]
O sujeito passivo do artigo 90 da Lei de licitações pode ser tanto o agente público como o particular, não se tratando de crime que somente pode ser cometido pelo agente público. Foi o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no HC 26.089/SP e HC 26.089/SP:
[...] Delito pelo qual o paciente foi condenado, previsto no art. 90 da Lei de Licitação, que, embora tenha sido praticado à época em que o mesmo seria Vereador-Presidente da Câmara Municipal, não é crime de responsabilidade, tampouco crime funcional ou próprio. Para que se configure a prática do referido crime, não é necessário o desempenho de função pública, a ocupação de cargo público, ou o exercício de mandato eletivo. Qualquer pessoa pode cometê-lo, eis que não há vínculo subjetivo com o funcionário público. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376)
Delito pelo qual o paciente foi condenado, previsto no art. 90 da Lei de Licitação (...). Para que se configure a prática do referido crime, não é necessário o desempenho de função pública, a ocupação de cargo público, ou o exercício de mandato eletivo. Qualquer pessoa pode cometê-lo, eis que não há vínculo subjetivo com o funcionário público. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376).
Destarte, o crime capitulado no artigo 90 da Lei de Licitações trata-se de crime comum, tendo em vista que pode ser praticado por qualquer pessoa, não exigindo condição especial do agente.
O crime tipificado no artigo 90 envolve concurso de agentes, tendo em vista que exige o ajuste, a combinação ou qualquer outro expediente visando frustrar ou fraudar o caráter competitivo do certame. In casu, para a configuração do crime é exigida a comprovação do dolo específico, consistente no especial fim de "obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação".[20]
Por fim, vale registrar que o sujeito passivo do crime do artigo 90 da Lei nº 8.666/1993 será a Administração Pública (União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto), ou seja, considera-se sujeito passivo do crime todas as pessoas jurídicas descritas no artigo 85 da Lei de Licitações e Contratos.
A INCONSTITUCIONALIDADE DO REGULAMENTO QUE DISPÕE SOBRE A ADESÃO À ATA DE REGISTRO DE PREÇOS
O artigo 22 do Decreto Federal nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, dispõe sobre a possibilidade utilização da Ata de Registro de Preços por outros órgãos ou entidades da administração pública federal, in verbis:
Art. 22. Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.
§1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da ata de registro de preços, deverão consultar o órgão gerenciador da ata para manifestação sobre a possibilidade de adesão.
§1º-A A manifestação do órgão gerenciador de que trata o § 1º fica condicionada à realização de estudo, pelos órgãos e pelas entidades que não participaram do registro de preços, que demonstre o ganho de eficiência, a viabilidade e a economicidade para a administração pública federal da utilização da ata de registro de preços, conforme estabelecido em ato do Secretário de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. (Incluído pelo Decreto nº 9.488, de 2018) (Vigência)
§1º-B O estudo de que trata o § 1º-A, após aprovação pelo órgão gerenciador, será divulgado no Portal de Compras do Governo federal. (Incluído pelo Decreto nº 9.488, de 2018) (Vigência)
§2º Caberá ao fornecedor beneficiário da ata de registro de preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento decorrente de adesão, desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes.
O Sistema de Registro de Preços e a utilização da Ata de Registro de Preços também foi regulamentado pelos demais Entes Políticos.
Parte da doutrina sustenta que a adesão à Ata de Registro de Preços fere os princípios da isonomia, vinculação ao edital, legalidade e impessoalidade, tendo em vista que permite à Administração firmar contratos sem licitação, o que viola o dever de licitar e a garantia de igualdade de condições a todos os concorrentes.
Nessa trilha, posiciona-se o administrativista Marçal Justen Filho, aduzindo que “Teria de assegurar-se a todos os demais fornecedores tratamento equivalente, eis que o titular do preço registrado não formulara proposta para realizar a contratação que se consumou. Surge uma preferência incompatível com a licitação e a isonomia”[21].
A meu ver, a adesão à Ata de Registro de Preços, além de afrontar os princípios da isonomia, também viola outros princípios que regem o processo licitatório, dentre eles os princípios da impessoalidade, da moralidade, legalidade e do julgamento objetivo. Assim, o instituto do “processo carona” está em descompasso com a previsão inserida no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Republicana de 1988, haja vista que afasta o dever de licitar previsto pelo legislador constituinte, o que é gravíssimo.
De mais a mais, a figura do “processo carona” não foi criada pelo Poder Legislativo, que é o legitimado a inovar no sistema jurídico vigente, mas sim através de decreto executivo. Vale ressaltar que no Direito brasileiro não existe autorização para que algum órgão ou entidade contrate com base em certame promovido por outros órgãos, o que realmente existe é a instituição da figura do “processo carona” através de Decreto de executivo, subjugando, portanto, a necessidade de instaurar o devido processo legislativo de competência privativa do Poder legislativo, o que não pode ser aceito.
Vale consignar que o artigo 15 da Lei nº 8.666/1993 prevê que as compras, sempre que possível, deverão ser processadas através de sistema de registro de preços. Entretanto, o legislador não autorizou a adesão à Ata de Registro de Preços realizada por outro Ente ou entidade. Assim, não pode o intérprete realizar uma interpretação elastecida para criar forma de contratação não prevista pelo legislador.
Nessa trilha, são os ensinamentos de Ana Flávia Xavier, em seu artigo “A utilização do Sistema de Registro de Preços nas compras públicas e a figura do Carona - Perspectivas práticas e legais”. Eis os comentários:
O vício mais evidente da figura do carona é a ilegalidade. A Lei n. 8.666/93 não faculta a instituição desse sistema, que foi introduzido por meio de regulamento, subjugando, assim, o prévio e necessário processo legislativo ao qual deveria se submeter. (...)
Dessa forma, o Decreto n. 3.931/01, que instituiu o carona, extrapola sua competência constitucional, pois ignora a ordem jurídica e desrespeita o processo legislativo constitucional, uma vez que a competência para a criação da figura do carona pertence ao legislativo[22].
Para Joel de Menezes Niebuhe a adesão à Ata de Registro de Preços é “inconstitucional e ilegal, por impor agravos veementes aos princípios da legalidade, isonomia, vinculação ao edital, moralidade administrativa, impessoalidade e economicidade”[23].
Segundo o administrativista Marçal Justen Filho, há diversos obstáculos jurídicos à figura da adesão ao SRP. Eis os apontamentos:
10.1.1) A infração ao princípio da legalidade
O vício mais evidente da figura do “carona” é a ilegalidade. A Lei 8.666/1993 não facultou a instituição dessa sistemática, que foi introduzida por meio de regulamento. Ao disciplinar a figura do registro de preços, não houve a previsão de sua utilização por outros órgãos. (...).
10.1.2) A infração ao princípio da vinculação ao edital
A figura do “carona” produz uma infração ao princípio da vinculação ao edital. Promove-se a licitação prevendo que o licitante vencedor poderá ser contratado para fornecer quantitativos determinado e limitados para a Administração Pública. Posteriormente, admite-se que sejam realizadas contratações que suprem esse limite. Mais ainda, podem ser realizadas contratações em quantitativos ilimitados, eis que o montante máximo aplica-se por órgão administrativo adquirente.
Ademais, produz-se a contratação com órgão não participante da licitação e do sistema original, o que também configura uma hipótese de infração às condições previstas no ato convocatório.
10.1.3) A criação de hipótese de dispensa de licitação
Depois, há ofensa ao princípio da obrigatoriedade da licitação, instituindo-se competência discricionária da Administração Pública promover a contratação direta.
Não se contraponha que existiu uma licitação e que a contratação apenas aproveitará os seus resultados. O argumento é descabido, eis que a licitação foi realizada para fins específicos e determinados. A Contratação do “carona” não se enquadra nos limites e nos efeitos da licitação para o sistema de registro de preços – aliás, essa é precisamente a questão central que dá identidade ao problema[24].
O consultor jurídico do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Edgar Guimarães, também posiciona contrariamente a figura do “processo carona” nos seguintes termos:
Esta prática, que não tem vedação ou limite estabelecido na lei, acabou favorecendo, por caminhos indiretos, a dispensa da licitação. E trouxe benefícios econômicos indevidos a algumas empresas, que veem seus lucros aumentarem com a proliferação desenfreada de adesões às atas de registro. Não bastasse isto, algumas empresas têm se aproveitado da condição de vencedoras dos certames para aumentar sua participação no mercado, de maneira irregular, por meio do uso de representantes que comercializam as respectivas atas. Criou-se uma figura que se denomina ‘traficante de ata’, que representa os interesses da empresa e sai vendendo atas de registros de preços. Além deste expediente, há companhias que montam mailings de potenciais clientes no setor público. Declaradas vencedoras, enviam-lhes mensagens onde oferecem os produtos e serviços licitados e as respectivas atas. (GUIMARÃES, 2010, p. 1).
Para Joel de Menezes Niebuhr a adoção da figura do “processo carona” coloca “em cheque” os princípios da impessoalidade e da modalidade. Eis os comentários do ilustre administrativista:
O carona, no mínimo, expõe os princípios da moralidade e da impessoalidade a risco excessivo e despropositado, abrindo as portas da Administração a todo tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal.
Imagine-se o seguinte: a empresa “A” ganhou licitação e assinou ata de registro de preços para fornecer mil unidades de dado produto. Com a ata de registro de preços em mãos, a empresa “A” pode procurar qualquer entidade administrativa, sem limite, propondo aos agentes administrativos responsáveis por ela aderirem à ata, entrando de carona, e, pois, contratarem sem licitação. É de imaginar ou, na mais tênue hipótese, supor que a empresa “A” pode vir a oferecer alguma vantagem (propina) aos representantes destas outras entidades administrativas, para que os mesmos adiram à ata de registro de preços que a favorece e viabilizem a contratação. Nesse prisma, a empresa “A”, que participou de licitação para fornecer mil unidades, pode vender cem mil unidades ou o quanto for, dependendo apenas do seu poder de lobby, do quão ela é competente em tráfico de influência ou do montante da propina que ela se dispõe a pagar[25].
O Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina e o do Estado Paraná já se posicionaram no sentido de que a Adesão à Ata de Registro de Preços afronta os artigos 22, XXVII, 37, XXI e 84, IV, todos da Constituição República de 1988, além de ofender o princípio da legalidade.
O TCE/PR recebeu consulta sobre a possibilidade de os municípios daquele estado aderirem às atas de registros de preços de outros entes administrativos da esfera federal, estadual ou municipal. Analisando o art. 15 e parágrafos da Lei n. 8.666/93, o relator ressaltou que ‘em nenhum momento esse dispositivo prevê a possibilidade de que uma entidade pública que não tenha participado da elaboração do edital licitatório possa aproveitar-se desse procedimento para efetuar a aquisição de produtos do vencedor do certame’. Logo, no entender da Corte de Contas paranaense, o Decreto n. 3.931/01, que regulamentou o Sistema de Registro de Preços, extrapolou os limites constitucionais de sua utilização no que concerne ao carona. Ainda, ressaltou tratar-se, ‘por vias oblíquas, da introdução de uma nova causa de dispensa de licitação, mediante decreto do Poder Executivo Federal, não prevista na norma geral’. Por fim, a Corte de Contas estadual decidiu por considerar ‘inconstitucional a adesão a ata de registro de preço na forma prevista no art. 8º do Decreto n. 3.931/01, por ofensa aos arts. 22, XXVII, e 37, XXI e 84,
IV da Constituição Federal, que exigem lei federal para a disciplina do processo licitatório, notadamente, quanto à previsão de causa de dispensa ou inexigibilidade, e por ofensa à disciplina da habilitação, ao princípio da legalidade, da vinculação ao edital, da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da economicidade’ (TCE/PR Consulta n. 19310/2010. Rel. Auditor Ivens Zschoerper Linhares. DJ: 09/06/2011).
‘O Sistema de Registro de Preços, previsto no art. 15 da Lei (federal) n. 8.666/93, é uma ferramenta gerencial que permite ao Administrador Público adquirir de acordo com as necessidades do órgão ou da entidade licitante, mas os decretos e as resoluções regulamentadoras não podem dispor além da Lei das Licitações ou contrariar os princípios constitucionais; por se considerar que o sistema de ‘carona’, instituído no art. 8º do Decreto (federal) n. 3.931/2001, fere o princípio da legalidade, não devem os jurisdicionados deste Tribunal utilizar as atas de registro de preços de órgãos ou entidades da esfera municipal, estadual ou federal para contratar com particulares, ou permitir a utilização de suas atas por outros órgãos ou entidades de qualquer esfera, excetuada a situação contemplada na Lei (federal) n. 10.191/2001’. (TCE/SC, Decisão n. 2.392/2007, Rel. Conselheiro Wilson Rogério Wan-Dall, julgado em 6 ago. 2007, veiculada na Revista Zênite — Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 163, p. 935, set. 2007, seção Tribunais de Contas.)
O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo também posicionou contrariamente à figura do “processo carona”, aduzindo que tal forma de contratação afronta os princípios da legalidade, isonomia, economicidade, competitividade e vinculação ao instrumento convocatório. Vejamos:
A Fiscalização concluiu pela irregularidade da matéria, face à ilegalidade que destacou em seu circunstanciado Relatório de fls. 100/104, em razão de a aquisição ser decorrente da Ata de Registro de Preços do Pregão Eletrônico nº 01/2009, realizado pelo BNDE, expediente denominado “carona”, procedimento combatido por este Tribunal de Contas por afrontar os princípios da legalidade, isonomia, economicidade, competitividade e vinculação ao instrumento convocatório, com manifestação da respectiva Diretoria Técnica de Divisão às fls. 105/106. Ademais, o órgão instrutivo faz menção à julgado desta Corte de Contas que afasta a possibilidade da utilização do “carona” nas circunstancias em análise[26]. (Grifos).
Em que pese o argumento de que a adesão à Ata de Registro de Preços seria vantajosa para a Administração em razão da celeridade na contratação, esse se mostra frágil em razão da inexistência de lei que autoria o Poder Público a aderir à licitação já realizada.
Outrossim, a Administração Pública, diferentemente do particular, somente pode praticar seus atos com base no que estiver previsto em lei, por força do princípio da legalidade estrita. Como não existe lei dispondo sobre a figura do “processo carona”, não pode a Administração, ao seu bel-prazer, realizar a contratação com base neste instituto.
O que vemos atualmente é uma utilização demasiada da adesão à Ata de Registro de Preços, ferindo por completo os princípios da impessoalidade, da moralidade e do julgamento objetivo, além afrontar o dever o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Republicana.
Outrossim, o artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República de 1988, estabelece que “compete privativamente à União legislar normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público”.
Assim, não pode o intérprete ou administrador criar hipótese de contratação não prevista pelo legislador democraticamente constituído pelo povo, sob pena de afronta direta ao princípio constitucional da tripartição de poderes (art. 2º da CRB de 1988).
De mais a mais, se fosse intenção do legislador autorizar a contratação através do “processo carona’, o faria de forma expressa, conforme fez com relação às formas de contratação estabelecidas na Lei nº 8.666/1993 e Lei nº 10.520/2002. Portanto, não pode ser aceita a criação da figura do “processo carona” por Decreto expedido pelo Poder Executivo, até porque este não tem legitimidade para inovar no sistema jurídico vigente.
Além de regulamentar o Sistema de Registro de Preços, o decreto regulamentar criou a hipótese de contratação através da figura do “processo carona”, ou seja, o decreto extrapolou a função de regulamentar a lei criada pelo legislativo, logo, aquilo em que ultrapassou o poder regulamentar está contaminado pela inconstitucionalidade. Não há nenhuma dúvida de que a figura do “processo carona” é altamente inconstitucional, pois foi criada por quem não tem legitimidade de inovar no sistema jurídico.
Como é de conhecimento de todos, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 84, inciso VI, da CRB de 1988, o decreto expedido pelo Poder Executivo não pode inovar no sistema jurídico vigente, podendo apenas regulamentar norma criada pelo Poder Legislativo, sob pena de inconstitucionalidade.
Tecidas essas considerações, pode-se concluir que Decreto Federal nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, que dispõe sobre a possibilidade da ata de registro de preços poder ser utilizada por outros órgãos ou entidades da administração pública” e os demais decretos correlatos estão eivados de inconstitucionalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo estudo realizado, pode-se concluir que a adesão à Ata de Registro de Preços está em descompasso com o dever de licitar estabelecido no inciso XXI do artigo 37 da Constituição da República de 1988, além de violar os princípios da isonomia da legalidade e do julgamento objetivo. Assim, cada Ente político deve instaurar seus próprios processos licitatórios, por força do que determina a norma constitucional.
Pode-se dizer que, em tese, a adesão à Ata de Registro de Preços configura o crime tipificado no artigo 89 da Lei de Licitações e Contratos, eis que a Administração realiza a contratação de bens e serviços sem instaurar o certame público, ao passo que o particular firma contrato com a Administração sem ter sido sagrado vencedor da licitação, o que é um atentado ao inciso XXI do artigo 37 da CRB de 1988.
Infelizmente, o que vemos no dia-a-dia é a utilização indiscriminada do instituto da “adesão ao registro de preços”, onde o administrador deixa em segundo plano o dever de licitar para aderir a processos licitatórios de outros Entes, o que é temerário.
Assim, cada órgão ou entidades deve planejar e contratar seus bens e serviços, não devendo aderir a licitação realizada por terceiros, até porque o legislador constituinte estabeleceu que “as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”[27].
Vale reiterar que não existe norma constitucional ou infraconstitucional autorizando que a Administração Pública realize contratação de bens e serviços com base em licitação promovida por outros órgãos, logo a contratação através da adesão à Ata de Registro de Preços é ilegal, mesmo que presente a vantajosidade da adesão, tendo em vista a ausência de norma válida admitindo a figura do “processo carona”.
Outrossim, a utilização do “processo carona”, como meio de contratação pela Administração Pública, é terra fértil para administradores e particulares mal-intencionados, pois poderão utilizar a Ata de Registro de Preços como forma de afastar o dever de licitar para contratação de bens e serviços.
Mesmo posicionando favoravelmente à adesão a Ata de Registro de Preços, o Tribunal de Contas Mineiro e o TCU têm endurecido o entendimento quanto às exigências para formalização das adesões, exigindo a comprovação da vantajosidade da adesão, bem como a devida motivação, ao argumento de que a adesão à Ata de Registro de Preços não é ato discricionário da Administração Pública.
Notas e Referências
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[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 368.
[2] BANBEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.468/470
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 15. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 81.
[4] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 132.
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 159-160.
[6] Habeas Corpus nº 315.494/GO, 5ª Turma, Rel. Ministro Felix Fischer, julgado em 23.06.2015, DJe 29.06.2015.
[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, 1.399.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 739/740.
[9] TRF4 – “Em atenção ao princípio do in dubio pro reo, impõe-se a absolvição dos réus quando não existem nos autos provas convincentes da sua participação na "consumação da ilegalidade" (artigo 89, parágrafo único, Lei 8.666/93) ou do intuito de favorecer a parte contratada por meio da omissão de formalidades legais para dispensa/ inexigibilidade de licitação. (TRF4, ACR 2000.72.00.001156-9, OITAVA TURMA, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, DJ 19/10/2005)”.
[10] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, 1.339.
[11] STJ - Amparo da doutrina, no sentido de que os crimes de responsabilidade ou funcionais são aqueles em que 'a condição de funcionário público é inerente à prática do delito (delito próprio, portanto), não abrangendo outros ilícitos comuns que podem ser cometidos por qualquer pessoa, ainda que a condição de funcionário público intervenha como circunstâncias qualificadora', como ocorre nas infrações previstas na Lei de Licitações. (HC 26.089/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003, p. 376).
[12] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 133.
[13] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 136.
[14] DE FREITAS, André Guilherme Tavares. Crimes na Lei de Licitações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 103/104.
[15] AgRg no Ag 983.730/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 26/03/2009, DJe 04/05/2009.
[16] STJ - REsp 1597460/PE, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/08/2018, DJe 03/09/2018 / HC 384.302/TO, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 01/06/2017, DJe 09/06/2017.
[17] TJMG - Apelação Criminal 1.0637.14.004187-1/001, Relator: Des. Wanderley Paiva, 1ª Câmara Criminal, julgamento em 15/05/2018, publicação da súmula em 23/05/2018.
[18] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 208/209.
[19] STJ - RHC 18.598/RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 06/11/2007, DJ 10/12/2007, p. 397
[20] STJ - AgRg no AREsp n. 185.188/SP, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 12/5/2015.
[21] JUSTEN FLHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
[22] XAVIER, Ana Flávia. O sistema de registro de preços nas compras públicas e a figura do carona: perspectivas práticas e legais. Revista Jus Navigandi, 20 abr. 2012.
[23] NIEBUHR, Joel de Menezes. “Carona” em ata de registro de preços: atentado veemente aos princípios do Direito Administrativo. ILC – Informativo de Licitações e Contratos, n°143. Curitiba: Zênite. Jan. 2006. p. 13-19.
[24] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 352-353.
[25] NIEBUHR. Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: Atentado Veemente aos Princípios de Direito Administrativo. ILC – Informativo de Licitações e Contratos, nº 143. Curitiba: Zênite jan. 2006.
[26] TCE/SP - TC 673/007/11 (Corpo de Auditores), relatado pelo auditor Josué Romero, julgado em 17/02/2014.
[27] Artigo 37, inciso XXVI, da CRB de 1988.
Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações
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