A problemática analisada neste artigo é a trazida ao ordenamento jurídico pela Lei 9.532/97, mais especificamente no seu art. 23, § 1º, cuja redação é a seguinte:
“Art. 23. Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.
§ 1º Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a diferença a maior entre esse e o valor pelo qual constavam da declaração de bens do de cujus ou do doador sujeitar-se-á à incidência de imposto de renda à alíquota de quinze por cento.”
Em termos práticos, se um determinado bem imóvel estava na declaração de imposto de renda do falecido pelo valor de aquisição, de R$ 100.000,00, adquirido em 2001, ao ter seu valor “atualizado” para o momento da morte, digamos, em 2017, com o valor de R$ 1 milhão, o espólio ficará sujeito a recolher 15% a título de imposto de renda – IR sobre a diferença, de R$ 900 mil (apenas de forma ilustrativa, e grosso modo, pois a diferença seria menor, após serem aplicados os fatores de redução do programa de Apuração dos Ganhos de Capital – GCAP).
Ocorre que a morte não é causa de aumento “de renda” a justificar a incidência do IR, sobretudo porque a tributação sempre parte de um requisito “volitivo” do sujeito passivo e, como regra, ninguém almeja morrer, tampouco se espera que a morte venha a ser um “ganho financeiro” para aquele que faleceu.
Explica-se.
A Constituição Federal, ao distribuir as competências tributárias, estabeleceu que compete aos Estados (e não à União) instituir imposto sobre a transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (art. 155, I).
O Código Tributário Nacional – CTN, ao tratar do mencionado imposto, esclareceu, ainda, que a base de cálculo do tributo seria o valor venal do bem (art. 35 c/c o art. 38). Repare-se: o valor venal e não o valor constante na declaração de ajuste anual do falecido, que, é bastante provável, estará defasado.
No mesmo sentido estão as leis locais sobre o imposto. No caso de Santa Catarina, a lei 13.136/04 é a que regula a cobrança do ITCMD (Imposto sobre transmissão causa mortis e doações) e a previsão está no seu art. 7º (“a base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito [...]”).
Note-se que o falecimento do “autor da herança” implica a imediata transmissão de seu patrimônio aos seus herdeiros, na forma da legislação civil (art. 1.784 do Código Civil). E essa transmissão, naturalmente, ocorre pelo valor que efetivamente valem os bens transmitidos e não pela quantia que “estava declarada”; ou seja, o fato natural morte – um único fato – enseja a tributação por um único imposto, de acordo com a Constituição Federal, a saber, o ITCMD, por opção do constituinte originário. Não pode, por consequência, o legislador ordinário estabelecer tributação pelo imposto de renda de fato atribuído a outro imposto, de competência de ente distinto da federação.
Do contrário, sendo admitida a existência de “ganho de capital” tributável pelo imposto de renda a partir do evento morte, quando for o caso – isto é, naquelas hipóteses nas quais o herdeiro se vê compelido, por conta de imposição da legislação estadual, a declarar o valor venal (efetivo) do bem no momento da transmissão (e não o valor defasado que constava na declaração de imposto de renda do inventariado) – ter-se-á bitributação da mesma hipótese de incidência (a transmissão da herança) por dois impostos distintos (ITCMD e IR), a despeito de as bases de cálculos serem levemente distintas (uma, o valor total do bem; a outra apenas o “ganho de capital”, respectivamente).
Se, por outro lado, o herdeiro procurar “ludibriar” o Estado, ao deixar o valor do imóvel “defasado”, e tiver sucesso neste seu intento, além de reduzir ilegalmente a arrecadação estadual (pois recolherá ITCMD menor ao que devido), mais adiante se verá obrigado, aí sim, a recolher o IR sobre o ganho de capital, pois, nesta hipótese, o seu “custo de aquisição” será aquele pelo qual declarou ter recebido o bem, valor este que provavelmente será inferior à sua efetiva venda – esta diferença (entre o valor de “aquisição”, por herança, e o valor da venda) não se tem dúvida, deve ser objeto de tributação.
A tributação dessa suposta “valorização” do preço imóvel em decorrência do falecimento do seu proprietário é ainda mais curiosa quando se lê o disposto no art. 22, III, da Lei 7.713/88, que excluiu, expressamente, as “transferências causa mortis e as doações em adiantamento da legítima”. Ou seja, até mesmo na legislação ordinária encontra-se antinomia de normas.
Daí também se infere que mesmo nas questões mais comezinhas, procura a União surrupiar receita tributária destinada, pela Constituição, aos Estados da federação, o que aumenta ainda mais a necessidade da chamada “repactuação do ‘pacto federativo’”.
Infelizmente, as discussões no Brasil não se renovam – trata-se de um país no qual há mais de 40 anos se fala da necessidade premente de se fazer uma reforma tributária, ainda não feita – e por não se renovarem, no distante ano de 1957, o então Supremo Tribunal Federal – sob a égide de Constituição distinta, é verdade – já havia se manifestado pela inconstitucionalidade aqui também apontada:
“NÃO CABE O IMPOSTO DE RENDA SOBRE LUCRO IMOBILIÁRIO SE O IMÓVEL VENDIDO FOI HAVIDO MORTIS-CAUSA.” (RE 32979, Relator(a) Min. Ribeiro da Costa, Segunda Turma, julgado em 15/01/1957, EMENTA, VOL-00298-02, p. 00882)
Mutatis mutandis, a discussão é idêntica. E continua inconstitucional. Contudo, e por enquanto, apenas o Tribunal Regional Federal da 1ª Região declarou a inconstitucionalidade do dispositivo legal objeto deste artigo (art. 23, § 1º, da Lei 9.532/97), por sua Corte Especial, nos autos do incidente de arguição de inconstitucionalidade 1998.38.00.027179-5/MG, em acórdão que ficou assim ementado:
“CORTE ESPECIAL-ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE- DIREITO TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA -TRANSMISSÃO HEREDITÁRIA-ATUALIZAÇÃO DE BENS PELO VALOR DE MERCADO - GANHOS DE CAPITAL - ARTIGO 23, PARÁGRAFO 1º, DA LEI 9.532/97 - INCONSTITUCIONALIDADE - ARTIGO 155, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - OCORRÊNCIA DE INVASÃO DA ESFERA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA ATRIBUÍDA AOS ESTADOS - BI-TRIBUTAÇÃO. [...]
II- Nesse sentido, o Legislador Constituinte destinou aos fenômenos jurídicos consubstanciados em transmissão de bens ou direitos por força de morte um tratamento jurídico-tributário diferenciado e específico, reunindo em uma só espécie tributária - Imposto sobre Transmissão causa mortis - de competência atribuída aos Estados, toda e qualquer oneração tributária relacionada àquele fato jurídico .
III- A pretensão da União Federal de tributar, como se ganho de capital fosse, a diferença a maior encontrada entre o valor de mercado, lançado na declaração de bens do espólio adquirente, e o valor de aquisição constante na declaração de bens do falecido/transmitente, esbarra não apenas na dicção literal do artigo 155,I, da Constituição Federal, mas na própria ideologia do sistema que foi encampado pelo Legislador Constituinte de 1988, que, como já consignado, teve em mente considerar de forma autônoma e independente, para fins de tributação, a forma de transmissão de bens ou direitos em referência, decorrente de morte .
IV- Se o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação é calculado tomando-se por base o valor atualizado dos bens - vale dizer, valor de mercado, obtido mediante avaliação - significa isso, noutros termos, que a tributação abrange o fato jurídico eleito pelo legislador ordinário da lei 9.532/97 como gerador do imposto de renda sobre ganho de capital, qual seja, a diferença a maior entre o valor de mercado e o valor de aquisição dos bens ou direitos. Ocorrência de "bi-tributação", na medida em que a real intenção que se identifica no âmbito do artigo 23 da lei 9.532/97 é efetivamente de tributar, a título de 'imposto de renda sobre ganhos de capital', a mesma situação fático-jurídica que enseja a incidência do Imposto de Transmissão Causa Mortis.
V- Decorrência do princípio federativo, a repartição constitucional de competências tributárias acarreta duas relevantes conseqüências inafastáveis: a) o não exercício da competência tributária pela pessoa que é dela titular não legitima qualquer outra a exercitá-la; b) é absolutamente vedada a invasão de competência alheia, ainda que de forma dissimulada, para fazer incidir, sobre fatos jurídicos postos sob competência de uma pessoa política , imposto não relacionado diretamente a tais fatos e de competência de outro ente tributante. Hipótese dos autos enquadrada na segunda situação, caracterizando o procedimento da União invasão da esfera de competência tributária atribuída aos estados-membros.
VI- Inconstitucionalidade do artigo 23, parágrafo 1º, da lei 9.532/97 declarada.”
(IINAMS 1998.38.00.027179-5/MG, Rel. Desembargador Federal Carlos Olavo, Corte Especial, DJ de 03/08/2007, p. 01)
O sobredito acórdão, publicado em 3 de agosto de 2007, ainda não transitou em julgado e segue seu processamento perante o próprio Tribunal Regional, em agosto de 2017 (mais de dez anos após o julgamento).
Naturalmente que a matéria deve chegar, um dia, ao Supremo Tribunal Federal, quando, espera-se, seja confirmado o entendimento de que a previsão legislativa consubstanciada no art. 23, § 1º, da Lei 9.532/97 é inconstitucional, na medida em que procura tributar pelo imposto de renda, da União, os efeitos financeiros de fato jurídico (o falecimento) atribuído pelo constituinte originário exclusivamente aos Estados da federação e ao Distrito Federal.
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