A inconstitucionalidade da PEC 8/2021: o ataque institucional ao Supremo Tribunal Federal

10/10/2023

Para além da centralidade do debate público que o Supremo Tribunal Federal assumiu nos últimos anos, muito em virtude da recalcitrância e da omissão (inconstitucional) do próprio Poder Legislativo em exercer suas funções e legislar sobre temas caros ao projeto constitucional ou que se transformaram em reivindicações legítimas de minorias políticas[1], em tempos recentes, assistimos por parte de setores sociais e políticos conservadores ataques à própria existência do Supremo Tribunal Federal. O ex-Presidente Bolsonaro canalizou esse sentimento e colocou os ataques ao Supremo Tribunal Federal como um projeto de governo. Diuturnamente, durante os quatro anos de seu governo, o ex-Presidente Bolsonaro atacava o Supremo Tribunal Federal no debate político. Inclusive chegou a pedir impeachment perante o Senado Federal do Min. Alexandre de Moraes, rejeitado pela presidência da casa por ausência de fundamentos.[2]

Com a derrota de Bolsonaro e a eleição de Lula, os ataques institucionais partem agora de membros do Congresso Nacional. Recentemente, parlamentares apresentaram a Proposta de Emenda à Constituição 50/2023 que busca alterar o art. 49, inc. XIX da CRFB/88 para atribuir ao Congresso Nacional a competência para cassar decisão judicial transitada em julgado do Supremo Tribunal Federal, por meio de decreto-legislativo requerido por 1/3 e aprovado por 3/5 dos membros de ambas as casas. Decisões essas que, a seu próprio critério, extrapolem os limites constitucionais.[3] Ao mesmo tempo em que se apresentou a PEC que pretende implementar uma revisão política das decisões do Supremo Tribunal Federal, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal considerou constitucional a Proposta de Emenda à Constituição 8/2021 que pretende modificar os artigos 93, 97 e 102 da CRFB/88 que buscam restringir e limitar os pedidos de vista, vedar a tomada de decisão monocrática em controle concentrado de constitucionalidade ou contra ato dos presidentes dos poderes.

Nosso objeto é analisar a constitucionalidade da PEC 8/2021, assim como as circunstâncias e a conveniência e oportunidade de sua apresentação. Há alguns anos as decisões monocráticas tomadas no âmbito do Supremo Tribunal Federal vêm sendo objeto das mais diversas críticas por mitigar a colegialidade que deve orientar as decisões judiciais no âmbito dos tribunais. Assim, metáforas como as “onze ilhas” foram construídas para criticar as decisões monocráticas em temas politicamente ou socialmente sensíveis no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Essas críticas tomavam o espaço público, mas sem considerar que não é um fenômeno exclusivo do Supremo Tribunal Federal, ao contrário, as várias reformas pelas quais passou o processo civil desde os anos 1990 têm incentivado decisões monocráticas em todos os Tribunais de segundo grau e os Tribunais Superiores.

Ainda sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, inicialmente a Lei 9.130/1995 e, posteriormente, a Lei 9.756/1998 modificaram o texto do art. 557 para ampliar os poderes do relator para que este, monocraticamente, pudesse negar seguimento ou dar provimento a recurso inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário a súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Naquele contexto, essa foi uma solução – aprovada pelo próprio Legislativo – para conferir presteza na prestação jurisdicional, assolada pela litigiosidade de massa, a fim de desafogar a quantidade de recursos que aportavam aos tribunais em situações semelhantes.[4] Tal sistemática foi até mesmo aprofundada no Código de Processo Civil de 2015 no seu art. 932. No entanto, a metáfora das “onze ilhas” incoerentemente parece se aplicar apenas ao Supremo Tribunal Federal quando, levadas às últimas consequências, há tantas “ilhas” quanto forem os membros dos tribunais.[5]

Na própria justificativa da apresentação da PEC 8/2021, o Senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) utiliza o argumento do aumento do protagonismo político do STF através do termo cunhado pejorativa e equivocadamente por Oscar Vilhena Vieira de supremocracia para tentar mostrar como se torna ainda mais perigoso quando esta se converte em ministocracia como falam Diego Arguelhes e Leandro Ribeiro. Isto é, o protagonismo passaria a ser obra individual dos integrantes da Corte cada um com sua própria visão de mundo e convicções políticas. Levantando os dados apresentados por esses autores[6], a justificativa aponta que mais de 90% das decisões liminares em controle concentrado de constitucionalidade entre o período de 2012 a 2016 foram monocráticas. E, ainda, o tempo médio para que tais liminares fossem apreciadas pelo plenário foi de 797 dias. Atentando para a teorização dos autores, cria-se um espaço de decisão individual sem controle coletivo do colegiado.[7]

Assim, a apresentação da PEC 08/2021 é inspirada na PEC 82/2019 proposta pelo próprio Senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) que, no entanto, foi rejeitada pelo plenário. À diferença daquela proposta, a atual PEC 08/2021 prevê limites ainda às decisões monocráticas em relação aos atos dos chefes de poderes para além da limitação à decisão monocrática de cautelar em controle concentrado de constitucionalidade.[8]

Essas críticas aos poderes dos relatores no âmbito do Supremo Tribunal Federal foram sequestradas por atores políticos que, agora, atacam a existência institucional daquele Tribunal. Não por virtude do acaso, tanto a aprovação da PEC 8/2021 no âmbito da CCJ do Senado Federal quanto a apresentação da PEC 50/2023 na Câmara dos Deputados foram realizadas após poucos dias em que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico e marcante para a vida democrática, responsabilizou criminalmente indivíduos que participaram da tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro de 2023. A aprovação dessa proposta em tal circunstância se revela mais como uma retaliação do que um incentivo ao debate público sério e responsável que deve ser feito pelo parlamento.

Nos fundamentos apresentados, o proponente também alude ao fato de que decisões cautelares para a suspensão da eficácia de lei objeto de controle não tem previsão nos principais países europeus. Para fundamentar a regulamentação da temática, a justificativa se vale de pesquisa extraída da pesquisa da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, o conhecido III Relatório Supremo em Números, que avaliou o tempo médio de pedidos de vista durante 1988 a 2013. Desse modo, decisões monocráticas que deveriam servir apenas como garantia do resultado útil do processo ou de garantia do processo se transformam em verdadeiras antecipações dos efeitos do julgamento de mérito, nas quais diversas relações jurídicas são constituídas dificultando a reversão em caso de resultado diverso.[9] Assim, a proposição não atenta contra qualquer cláusula pétrea, explicitando algo já extraível do art. 97 que exige a maioria absoluta dos membros do colegiado para a declaração de inconstitucionalidade, além de prestar homenagem ao princípio democrático e à colegialidade.

A justificativa maneja dados empíricos, exemplos de casos concretos e até teoria para embasar, sem qualquer coerência metodológica, uma tentativa de limitar decisões monocráticas que atentam contra a separação de poderes e até contra direitos e garantias individuais. Mais do que uma discussão sobre modelos institucionais e processuais, a Proposta de Emenda à Constituição em comento é um aberto ataque institucional e uma ofensa ao §4º do art. 60 da CRFB/88. Em breve síntese, a PEC 08/2021 estabelece regras para os pedidos de vista e modifica o art. 93 para acrescentar o inciso XV que estabelece que os pedidos de vista serão coletivos a todos os membros do órgão julgador por uma só vez pelo prazo estabelecido em regra processual, não superior a seis meses, assegurar uma única nova possibilidade de vista pelo prazo máximo de três meses quando houver divergência. A não conclusão do julgamento nos prazos máximos acima acarretará o sobrestamento e a inclusão automática do feito na pauta, exceto por motivo justificado reconhecido por 2/3 dos membros.

Além disso, acrescenta os §1º e §2º ao artigo 97 para estabelecer que a regra prevista no caput da exigência de maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade se aplica às medidas cautelares ou qualquer outra medida que suspenda a eficácia de lei ou ato normativo com efeitos erga omnes, com ou sem redução do texto, e também a suspensão de ato emanado do Presidente da República, do Presidente do Senado Federal, do Presidente da Câmara dos Deputados ou do Presidente do Congresso Nacional, vedando a concessão de decisão monocrática nessas hipóteses, exceto no caso de período de recesso do Tribunal no qual o Presidente poderá decidir monocraticamente em caso de grave urgência ou de dano irreparável, devendo o Tribunal decidir no prazo de 30 dias após o retorno dos trabalhos judiciários, sob pena de perda da eficácia da decisão.

Ademais, a PEC 08/2021 modifica a redação do art. 102, inc. I, p da CRFB/88 para esclarecer textualmente ao alargar as hipóteses de competência do Supremo Tribunal Federal para conceder cautelar em todas as ações de controle concentrado de constitucionalidade, observado os limites do art. 97, §§1º e 2º. A concessão de medida cautelar, ainda, nessas ações deve ter o mérito julgado no prazo de seis meses, a partir do qual sobrestar-se-á a pauta de julgamento gradativamente, sob pena de perda da eficácia da medida concedida, conforme a pretensão de acréscimo com os §§ 4º e 5º do art. 102. E, ainda, mesmo nas hipóteses de concessão de medida cautelar em processo em andamento que suspendam o processo legislativo por violação às normas do devido processo legislativo ou que afetem políticas públicas ou criem despesas para os poderes devem se submeter à regra da maioria absoluta do art. 97.[10]

A CCJ do Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição 08/2021 e não enxergou qualquer inconstitucionalidade.[11] Detalhe: a aprovação em tema tão complexo e cheio de nuances foi realizada em incríveis 40 segundos, o que demonstra o afã em restringir o papel do Supremo Tribunal Federal.[12] E, ainda, a tentativa desses setores de incluir essa restrição à atuação do Supremo Tribunal Federal no texto constitucional – quando se sabe que a temática da disciplina processual, dos prazos e procedimentos fica reservada ao âmbito de lei em sentido material, seja pela atuação do Poder Legislativo na produção normativa ou dos Tribunais no âmbito dos Regimentos Internos (art. 22, inc. I da CRFB/88) – seria a panaceia de sua inconstitucionalidade. Em recente artigo, Celso de Mello sustenta também a inconstitucionalidade da PEC 08/2021 sob o prisma da violação da competência do Poder Judiciário daquilo que ele denomina de reserva constitucional de regimento que foi, paulatinamente, sendo objeto de reconhecimento jurisprudencial e integra a competência do Poder Judiciário. Assim, a violação dessa competência para o autor agride a cláusula pétrea da separação de poderes.[13] Vale sempre lembrar, aliás, que a criação do “judicial review” nos EUA se deu, justamente, em um caso no qual a Suprema Corte considerou nula, por inconstitucionalidade, lei que havia, justamente, alterado o equilíbrio na distribuição de competências dentro do Judiciário face àquilo que havia sido predeterminado na Constituição.

Para nós, a discussão vai além dos poderes normativos que, ao cabo, poderia ser reduzida a uma discussão de conflito entre poderes que, no limite, não violaria nenhuma cláusula pétrea. Assim, a PEC 08/2021 revela uma inconstitucionalidade material gritante que atinge diretamente direito e garantia fundamental, além da separação de poderes, mas sob outro suposto.

É que ao vedar a concessão de medidas cautelares monocráticas em ações de controle concentrado de constitucionalidade e em medidas da mesma natureza adotadas contra atos do Presidente da República, do Presidente do Senado, do Presidente da Câmara e do Presidente do Congresso Nacional, atenta-se contra o direito fundamental estabelecido no art. 5º, inciso XXXV da CRFB/88 de um provimento jurisdicional efetivo e adequado à lesão ou ameaça a direito. Explicamos. As tutelas provisórias, dentre elas a de urgência (que se subdivide de acordo com a sua natureza em antecipatória ou cautelar, de acordo com a sistemática processual adotada pelo CPC) são ínsitas ao próprio exercício da jurisdição. Vale dizer, as tutelas provisórias, sobretudo a de urgência, são consubstanciais à função jurisdicional final ou à própria decisão de mérito que, em um Estado Democrático de Direito, se justifica e se instrumentaliza precipuamente para a proteção de direitos ameaçados ou lesados ou, ainda, para a cognição de lesão ou não de direitos.[14] As tutelas provisórias, portanto, existem para a garantia da própria função jurisdicional ou do processo democrático. Não é uma prerrogativa conferida ao Poder Judiciário. É um mecanismo/procedimento processual que se estabelece em virtude de um direito e garantia fundamental previsto a todos os indivíduos que decorre do direito de ação do art. 5º, inciso XXXV da CRFB/88, isto é, de uma processualidade democrática, efetiva e adequada para a proteção dos direitos desenvolvida sob contraditório.[15]

A previsão estabelecida no art. 5º, §1º da Lei 9.882/99 de que o relator possa conceder, monocraticamente e liminarmente, tutela de urgência em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é imanente à própria garantia fundamental do direito de ação. O relator, não se pode esquecer, é um órgão do Tribunal que possibilita o funcionamento colegiado nos processos judiciais. Daí que a vedação do exercício de suas atividades constitui uma grave violação à independência judicial. Dessa forma, a PEC 08/2021 agride a separação de poderes, tal qual o direito fundamental mencionado, uma cláusula pétrea.

Além disso, a ulterior aplicação da referida previsão legal para as ações de inconstitucionalidade e de constitucionalidade não é uma interpretação criativa do Supremo Tribunal Federal, mas decorre de uma interpretação sistemática de que as Leis 9868/99 e 9882/99 constituem um verdadeiro microssistema processual que é regido por princípios comuns. Inviabilizar a concessão de tutela de urgência monocrática de forma liminar pode significar o sacrifício da própria tutela jurisdicional e, ao fim e ao cabo, dos direitos a serem protegidos.

Vale ainda pontuar que, ao contrário do que parece fazer crer a proposta apresentada, as tutelas de urgência adotadas nas ações de controle concentrado não se limitam apenas a suspender a eficácia do ato normativo discutido. Embora essa seja uma possível tutela de urgência adotada, o poder geral de cautela admite que sejam adotadas outras providências que guardem relação com o objeto da discussão. Pense, por exemplo, no caso das ADPF. Além da suspensão do ato normativo, o objeto principal é a proteção ao preceito fundamental lesionado. Não por outra razão, por exemplo, lembramos de medidas cautelares concedidas em ADPF’s no período da pandemia. Muitas delas como a de número 672 e a 709 determinaram medidas administrativas concretas como a possibilidade de aquisição direta de vacinas por parte dos entes federativos, a instalação da sala de situação para conter o avanço e a disseminação do coronavírus entre a população indígena. Essas cautelares foram adotadas de forma monocrática. Imaginemos, então, a situação na qual não se pudessem adotá-las monocraticamente. Quantas vidas seriam perdidas por essa restrição processual, tendo em conta a eventual demora para as sessões colegiadas?

Ainda, há uma grave e absurda incoerência que deve ser destacada na sistemática da proposta. Como se sabe, em virtude da própria natureza dos direitos, as decisões em Ação Civil Pública têm efeitos erga omnes e, não raras vezes, afetam diretamente políticas públicas e/ou criam despesas para os poderes e órgãos estatais. O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o art. 16 da Lei 7347/85 que limitava o alcance das decisões proferidas em Ação Civil Pública aos limites territoriais do órgão julgador.[16] Desse modo, juízes de primeira instância podem conceder tutela de urgência, com caráter erga omnes, em Ação Civil Pública, mas tal possibilidade seria vedada a um ministro do Supremo Tribunal Federal caso aquela PEC seja aprovada.

Não bastasse essa grave incoerência, a proposta nos parece inócua para os objetivos que pretende. É que o Supremo Tribunal Federal não está alheio às críticas ao incremento dos poderes do relator. Em 19 de dezembro de 2022, por meio da Emenda Regimental 58, o Regimento Interno do Tribunal foi alterado exatamente para regulamentar tanto a adoção de decisões monocráticas, quanto os pedidos de vista. Assim, conforme o art. 21, incisos IV e V e os §§5º, 6º, 7º e 8º do RISTF os relatores poderão decidir monocraticamente medidas cautelares, devendo submetê-las de imediato, preferencialmente no ambiente virtual, exceto se o relator preferir em sessão presencial, a referendo do Plenário ou da Turma. Inclusive, em situação de excepcional urgência, o relator poderá solicitar ao Presidente a convocação de sessão virtual extraordinária a ocorrer no prazo máximo de 24 horas. De outro lado, no caso dos pedidos de vista, o art. 134 determina o prazo máximo de 90 dias para que o ministro possa analisar o caso, a partir do qual o processo será automaticamente liberado para a continuação do julgamento. O que se pode concluir é que a regulamentação realizada pelo próprio STF é ainda mais rígida do que aquela apresentada na PEC 08/2021. Sem dúvida, diante disso, se trata de uma Proposta de Emenda à Constituição que, além de inconstitucional, se mostra inócua e defasada. Esse é o problema, inclusive, de reedição de proposta legislativa que foi anteriormente rejeitada há mais de três anos. A perda de sua utilidade e sua relevância pelo decurso do tempo e das circunstâncias presentes.

Claro que podem e devem ser pensadas mudanças e aperfeiçoamentos na atuação dos Poderes. O que não cabe é fazer isso às pressas unicamente com objetivos revanchistas e que pretendem fazer calar um órgão que tem como função, justamente, conter abusos e reparar omissões dos demais poderes. Por fim, vale lembrar que vários livros recentes sobre “fim da democracia” falam que o primeiro ataque que governos despóticos fazem para se perpetuar no poder é contra o Judiciário, particularmente, a Corte Superior, como se vê na Hungria, Polônia ou Israel. A diferença é que em tais países as ações são capitaneadas pelo Executivo, já aqui, se dão por via legislativa.

 

Notas e referências

[1] Isso se explica seja pela própria composição conservadora do Congresso Nacional, isso é, em sua maioria os parlamentares são oriundos dos extratos sociais privilegiados de nossa sociedade que atuam para beneficiar a elite econômica, seja por um sentido pragmático no qual, ao legislar sobre temas sensíveis às minorias políticas, certamente os parlamentares calculam que perderão os votos de nichos eleitorais importantes da sociedade. Pense, por exemplo, na questão do aborto. Certamente, ao aprovar um projeto de lei que descriminalizasse o aborto nas primeiras semanas de gestação, os parlamentares poderiam perder os potenciais votos de católicos e evangélicos que são, em regra, contrários a tais pautas. Os católicos e evangélicos representam a maioria esmagadora da sociedade. Desse modo, em um cálculo estratégico, o Congresso Nacional prefere delegar a eventual aprovação dos temas que, a seus olhos, são sensíveis politicamente ao Supremo Tribunal Federal.

[2] A íntegra do pedido pode ser consultada em: https://www.conjur.com.br/dl/bolsonaro-alexandre.pdf. Sem dúvida alguma, o próprio Presidente da República, no exercício do cargo, denunciar pessoalmente  ministro do Supremo Tribunal Federal revela, no mínimo, uma tentativa de politizar decisões judiciais com a intenção de que a opinião pública se volte contra o magistrado, além do que, sabendo de eventual responsabilização que viria a ser feita, instaura procedimento para criar argumentos para futura alegação de suspeição do magistrado.

[3] Essa PEC, naturalmente, viola cláusula pétrea na medida em que atenta contra a separação de poderes ao retirar competência do Poder Judiciário, além de abolir direito e garantia individual consistente na coisa julgada (art. 5º, inc. XXXVI da CRFB/88).  Sobre isso, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, MEGALI NETO, Almir. A revisão política de decisões do STF é inconstitucional: comentários à PEC n. 50/2023. Empório do Direito, 03 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.academia.edu/107542967/A_revis%C3%A3o_pol%C3%ADtica_de_decis%C3%B5es_do_STF_%C3%A9_inconstitucional_coment%C3%A1rios_%C3%A0_PEC_n_50_2023. Essa tentativa de estabelecer um controle político sobre decisões judiciais, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, já foi objeto de outras propostas. As PEC`s 03/2011 e 33/2011 tiveram pretensão semelhante. Sobre elas, ver: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Soberania contra Constituição: Desconstruindo a PEC n. 33. Disponível em: https://www.academia.edu/12274875/Soberania_contra_Constitui%C3%A7%C3%A3o_Desconstruindo_a_PEC_n_33; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Controle de constitucionalidade é judicial, não político. Conjur, 30 de abril de 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-abr-30/sistema-controle-constitucionalidade-judicial-nao-politico; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Jurisdição constitucional, democracia e judicialização da política: considerações a partir da PEC 3, de 10 de fevereiro de 2011. Revista Brasileira de Direito, IMED, Vol. 9, nº 2, jul-dez 2013, p. 38-46. De alguma forma, a PEC 50/2023 tem como inspiração o art. 96, parágrafo único da Constituição de 1937 que adotou instrumento semelhante em que dotava o parlamento de competência para sustar efeito de decisão judicial em controle de constitucionalidade. Esse instrumento foi um símbolo do autoritarismo presente na Constituição de 1937.

[4] Sobre os litígios de massa e as reformas processuais, ver: BAHIA, Alexandre, NUNES, Dierle, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Litigiosidade em massa e repercussão geral no Recurso Extraordinário. Revista de Processo, ano 34, n. 177, nov./2009, p. 9-46.

[5] Só que a tese de que o STF são onze ilhas não se sustenta. O STF é constituído por arquipélagos ou continentes móveis, conforme o tema. Assim, há enormes convergências e por vezes divergências, sobretudo em questões que envolvem direitos sociais e econômicos.

[6] O artigo dos autores pode ser consultado em: ARGUELHES, Diego Werneck, RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 37, n. 01, p. 13-32, jan.-abr 2018. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/25207.

[7] A esse respeito, ver o teor da justificativa em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8118687&ts=1696509264717&disposition=inline&_gl=1*10xdg1k*_ga*MTk2MjU3NTEyMC4xNjk2NjExMDA1*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NjYxMzAxMi4yLjEuMTY5NjYxMzAzOC4wLjAuMA., acesso em 05 de outubro de 2023.

[8] Para a proposta de 2019, ver: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7956040&ts=1630424924473&disposition=inline&_gl=1*iqydjl*_ga*MTk2MjU3NTEyMC4xNjk2NjExMDA1*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NjYxMTAwNC4xLjEuMTY5NjYxMTAxNC4wLjAuMA, acesso em 05 de outubro de 2023.

[9] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8118687&ts=1696509264717&disposition=inline&_gl=1*10xdg1k*_ga*MTk2MjU3NTEyMC4xNjk2NjExMDA1*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NjYxMzAxMi4yLjEuMTY5NjYxMzAzOC4wLjAuMA, acesso em 05 de outubro de 2023.

[10] Para facilitar, transcrevemos o teor da PEC: “Art. 1º A Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes modificações: “Art. 93. (...): XVI – formulado pedido de vista, esta deve ser concedida coletivamente a todos os membros do colegiado, pelo prazo estabelecido na lei processual, não superior a seis meses, assegurada uma única nova concessão de vista pelo prazo de até três meses no curso dos julgamentos em que houver divergência entre os votos já proferidos. Parágrafo único. Em caso de não conclusão do julgamento no prazo do inciso XVI: I - o processo será incluído automaticamente em pauta, sobrestando o julgamento do colegiado sobre todos os demais da mesma natureza, salvo por motivo justificado, assim reconhecido por dois terços de seus membros; II – serão sobrestados todos os julgamentos do colegiado após um ano da expiração do prazo do inciso XVI do caput.” (NR) “Art. 97. (...). § 1º O disposto no caput aplica-se igualmente às cautelares ou outras decisões de qualquer natureza, sendo vedada a concessão de decisão monocrática, que suspenda: I - a eficácia de lei ou ato normativo com efeitos erga omnes, com ou sem redução de texto, sob pena de nulidade; II – ato do Presidente da República, do Presidente do Senado Federal, do Presidente da Câmara dos Deputados ou do Presidente do Congresso Nacional. § 2º Formulado, durante período de recesso, pedido de cautelar ou de qualquer outra decisão cujo atendimento implique, com ou sem redução de texto, a suspensão da eficácia de lei ou ato normativo nos termos do § 1º, o Presidente do Tribunal, no caso de grave urgência ou perigo de dano irreparável, poderá decidir monocraticamente, devendo o Tribunal decidir sobre essa decisão no prazo de 30 dias corridos após o reinício dos trabalhos judiciários, sob pena de perda de eficácia da decisão concedida.” (NR) “Art. 102. (...): I - (...): p) o pedido de medida cautelar nas ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, arguições de descumprimento de preceito fundamental ou nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 97; (...). § 4º Deferido o pedido de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental ou ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o respectivo mérito deve ser apreciado em até seis meses. § 5º Não concluído o julgamento no prazo de que trata o § 4º, o processo deve ser automaticamente incluído na pauta do Plenário, com preferência sobre todos os demais, respeitada a ordem cronológica para apreciação, caso exista mais de um processo com prazo vencido, sob pena de perda de eficácia da decisão cautelar. § 6º Somente na forma dos §§ 1º e 2º do art. 97 pode ser proferida decisão em processo em andamento no Supremo Tribunal Federal que, alternativamente: I – suspenda a tramitação de proposição legislativa que viole as normas constitucionais do devido processo legislativo; ou II – em caráter geral: a) afete políticas públicas; ou b) crie despesas para qualquer Poder, inclusive as decorrentes de concessão de aumentos ou extensão de vantagens ou pagamentos de qualquer natureza. SF/20924.08502-88 § 7º Às decisões de que trata o § 6º aplica-se o disposto nos §§ 4º e 5º”. (NR) “Art. 125. (...): § 2º Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão, respeitadas, no que cabível, as regras do art. 97 e dos parágrafos do art. 102.” (NR) Art. 2º Esta Emenda à Constituição entra em vigor após cento e oitenta dias da data de sua publicação, aplicando-se, inclusive, aos pedidos de vista pendentes e às decisões cautelares proferidas nos processos em que ainda não houve julgamento de mérito. Parágrafo único. No caso de pedidos de vista pendentes ou decisões cautelares proferidas nos processos em que ainda não houve julgamento de mérito, os prazos de inclusão em pauta e julgamento de mérito previstos nesta Emenda à Constituição serão reiniciados na data da sua entrada em vigor nos termos do caput”.

[11] O parecer do relator Senador Espiridão Amim (PP- SC) pode ser consultado em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9475467&ts=1696509265916&disposition=inline&_gl=1*1i252dp*_ga*MTk2MjU3NTEyMC4xNjk2NjExMDA1*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NjYxNTAxOS4zLjEuMTY5NjYxNjczNS4wLjAuMA., acesso em 06 de outubro de 2023.

[12] Ao contrário do que faz supor a matéria veiculada no jornal Estadão, a votação em tempo tão rápido que desafia os limites da racionalidade humana não significa consenso. Ao revés, significa um atropelo do necessário debate político. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/ccj-comissao-constituicao-justica-senado-pec-limita-prazos-decisoes-individuais-stf-supremo-tribunal-federal-nprp/, acesso em 06 de outubro de 2023.

[13] MELLO, Celso de. Poder reformador não legitima nem autoriza desrespeito a cláusulas pétreas. Conjur, 06 de outubro de 2023.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-06/celso-mello-limites-poder-reformador-congresso, acesso em 06 de outubro de 2023.

[14] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2012. p. 150 e ss.

[15] Veja-se que, mesmo antes da regulamentação legislativa de medida cautelar em Ação Declaratória de Constitucionalidade e sem a expressa previsão de tal possibilidade no texto constitucional que, em seu art. 102, I, p só prevê cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal admitia a concessão de medida cautelar, “pois o poder de acautelar é imanente ao de julgar” (STF, ADC-MC 4/DF, rel. min. Sydney Sanches, j. 11/02/98). Sob uma compreensão de contraditório constitucionalmente adequada e albergada pelo CPC. 2015, ver: NUNES, Dierle; Pedron, Flávio; BAHIA, Alexandre. Teoria Geral do Processo. 2ª ed., Salvador: JusPodivm, 2021.

[16] STF, pleno, RE 1101937 / SP, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 08/04/2021. Em virtude desse julgamento foi adotada a seguinte tese: I - É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original. II - Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). III - Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas.

 

 

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