A incongruência lógica entre o usuário de boa-fé, previsto no art. 45, e o requisito da novidade, previsto no art. 11, parágrafo primeiro, ambos da Lei 9279/96

07/06/2023

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXIX, devido a importância do tema para o desenvolvimento econômico do país, inseriu os bens incorpóreos dentre os Direitos e Garantias Fundamentais, determinando que a lei infraconstitucional assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Nota-se que o legislador constitucional, preocupado com o desenvolvimento tecnológico do país, alçou os bens da propriedade intelectual à categoria de direito fundamental. 

Em virtude de os Direitos e Garantias Individuais serem considerados cláusulas pétreas de acordo com o art. 60, parágrafo quarta, da Magna Carta, podemos perceber a importância que o constituinte atribuiu ao tema relacionado à propriedade intelectual, tornando os imutáveis em face de futuras alterações que o texto constitucional possa a vir a sofrer.                                                            

Estabelecido a importância atribuída à Propriedade Intelectual, é deveras importante assentar que a propriedade intelectual é o gênero da qual são espécies o direito industrial e o direito autoral. O primeiro é objeto de estudo do direito comercial e o segundo pertence ao direito civil. Embora sejam ambos direitos incorpóreos, ou seja, não possuem matéria física palpável, possuem natureza jurídica diversa que o operador do direito precisa conhecer.

Andou mal o legislador em não ter incluído o nome empresarial no âmbito protetivo da Lei 9279/96, pois, na sua essência, este bem incorpóreo pertence à propriedade industrial. Contudo, o desavisado legislador resolveu inseri-lo no âmbito da Lei 8.934/94, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis, estabelecendo, em seu art. 33, que a proteção ao nome empresarial decorre automaticamente do arquivamento dos atos constitutivos da firma individual e das sociedades empresariais na Junta Comercial. Em apertada síntese podemos afirmar que o empresário (pessoa física)  ou sociedade empresária (pessoa jurídica) arquivam os seus atos constitutivos no órgão competente e desse ato surge a proteção concedida ao nome empresarial. Logo, não existe em nosso ordenamento jurídico o registro do nome empresarial como ocorre, por exemplo, com a marca. A proteção ofertada ao nome empresarial decorre de um outro ato que é o arquivamento de atos constitutivos.  Em virtude dessa opção legislativa alguns problemas se apresentam como, por exemplo, o nome empresarial é tutelado apenas dentro da circunscrição administrativa da Junta Comercial.[1]

Por seu turno, a Lei 9279/96, que cuida da obtenção da carta-patente da invenção e do modelo de utilidade, bem como do registro do desenho industrial e da marca possui natureza constitutiva, diferentemente da Lei 9610/98, que cuida dos denominados direitos autorais, em que o registro da obra intelectual possui natureza meramente declaratória. Expliquemos melhor, para que o inventor possa ser considerado titular desse direito, este há que realizar o depósito de seu invento junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Somente com a obtenção da carta-patente é que o inventor incorporará esse direito em sua esfera patrimonial. Por outro lado, para que o escritor se torne titular da sua obra literária basta que o seu trabalho esteja findo que a sua obra automaticamente se integrará em seu patrimônio sem a necessidade de registro. Nesse caso, o registro, de natureza meramente declaratória, da obra literária deverá ser efetuado na Biblioteca Nacional apenas para fins de publicidade.

Em síntese, será titular da patente de invenção aquele que primeiro realizar o seu depósito junto ao INPI. Portanto, o legislador resolveu prestigiar o inventor diligente, ou seja, aquele que procurou realizar, o mais rapidamente possível, o depósito do seu invento no órgão competente. Esse mecanismo, que é adotado pelo direito norte-americano, é também conhecido pelo paradigma first to file first to invent.[2]

Contudo, no mesmo diploma legal, o legislador resolveu inovar, adotando um outro critério,  prestigiando o inventor júnior que, embora não tenha sido o primeiro a realizar o depósito, já utilizava o invento que desenvolvera de boa-fé. Entretanto, olvidou-se de uma regra legislativa básica e elementar. Não se pode inserir um dispositivo destoante que adota regras diferentes em um sistema fechado e regido por princípios e critérios próprios. As normas que forem acopladas em um sistema normativo devem guardar coerência e simetria com o Capítulo ou Título onde foram inseridas; caso contrário seriam apenas um amontoado de regras sem conexão, promovendo o caos legislativo.

Não se atentando a essa  sistemática legislativa, o legislador editou a regra esculpida no art. 45 da Lei de Propriedade Industrial, enunciando que, à pessoa de boa fé que, antes da data de depósito ou de prioridade de pedido de patente, explorava seu objeto no País, será assegurado o direito de continuar a exploração, sem ônus, na forma e condição anteriores, subvertendo, desse modo, toda a ordem vigente, com o intuito de prestigiar o inventor intempestivo, mas que se conduziu de boa-fé durante todo o processo de criação.

Portanto, se o usuário de boa-fé provar que já utilizava o invento, que, no entanto, fora depositado por outrem, este terá o direito de continuar a utilizá-lo sem o pagamento de royalties para o inventor sênior que obteve a carta-patente. Trata-se de um dispositivo que não se justifica, editado em supedâneos que não se justificam e contrariando, além de contrariar o aforismo romano dormientibus non socorrit jus. Trata-se, na verdade, de uma total negação ao sistema atributivo adotada pela nossa legislação, pois, nesse caso, atribui-se direitos para o inventor júnior.[3]

Não contente, o legislador foi mais além, o usuário de boa-fé poderá ainda ceder o invento a terceiros quando houver a alienação do estabelecimento empresarial, por meio do contrato de trespasse, conforme dispõe o parágrafo primeiro[4] do art. 45 da Lei Especial que cuida da  Propriedade Industrial.

Não obstante essa opção legislativa adotada, contemplando o inventor júnior com o direito de utilização e, quando houver trespasse, com o direito de cessão do invento, a inserção do art. 45, em um sistema fechado, que se conduzia por regras e princípios próprios, ensejou algumas contradições que precisarão ser solucionadas pelo exegeta. Vejamos, para a obtenção de uma patente de invenção, o legislador exigiu a presença de três requisitos, sendo que o primeiro requisito é o da novidade[5], devendo-se entender como novo tudo aquilo que não estiver compreendido no estado da técnica. O conceito é de difícil compreensão, pois cuida-se de uma definição que adota uma afirmação negativa. É, portanto, novo tudo o que não estiver compreendido no estado da técnica.

Embora não seja boa técnica legislativa, o legislador infraconstitucional resolveu conceituar o estado da técnica, no art. 11, parágrafo primeiro, da Lei 9279/96, como tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17. Enfim, em apertada síntese, podemos dizer que atende ao requisito da novidade o invento não for acessível ao público ou quando não houver uma divulgação ampla do seu conteúdo para a coletividade.

Portanto, podemos extrair da legislação patentária que o invento somente pode ser considerado novo quando não houver ninguém, além do depositante é claro, que detenha conhecimento desse invento.  Por outro lado, para que haja a presença do usuário de boa-fé deve haver a presença de alguém que detenha esse conhecimento prévio. Ou seja, a presença do usuário de boa fé inviabilizaria a concessão da patente, pois, nesse caso, não se poderia falar em novidade.

Explicando com mais vagar, não há como conciliar este requisito (novidade) com a presença de um usuário de boa-fé. A verdade é que as ideias não se conciliam a favor de um pensamento lógico e coerente, pois se existe a presença do usuário de boa-fé, alguém que utilizava o invento antes do depósito, não se poderia conceder a patente ao depositante, em face da ausência do requisito da novidade.[6]

Nesse caso, para harmonizarmos os dois dispositivos, devemos realizar uma interpretação sistemática-integrativa, tentando conciliá-los para que um não inutilize os efeitos do outro. Portanto, não podemos entender que a presença de apenas um usuário de boa-fé, que tenha conhecimento prévio do invento depositado, possa ser entendido como algo tornado acessível ao público de modo geral.  Logo, se a patente depositada atender aos requisitos legais, ela deve ser concedida pelo INPI mesmo com a presença de um usuário de boa-fé.

Essa interpretação permite que os dois dispositivos possam conviver em harmonia sem que um inutilize os efeitos produzidos pelo outro. Embora não concordemos com a opção adotada pelo legislador, ao editar o art. 45 da Lei 9279/96, procurando prestigiar e garantir direitos àquele que, mediante o esforço e dedicação tenha desenvolvido trabalho intenso de pesquisa, foi surpreendido pelo depósito efetuado por um inventor sênior.  A nosso ver, a proteção ofertada ao usuário de boa-fé nos parece possuir raízes em um exacerbado  protecionismo de origem latina, que deseja contemplar todos com algum direito, mesmo aqueles que não atenderam aos mandamentos legais. Na verdade, o usuário de boa-fé é aquele que, não realizou o depósito em tempo hábil, mas mesmo assim terá algum direito preservado em face da ordem vigente.

Desse entendimento não comunga Denis Borges Barbosa[7], que assim se manifestou: “O sentido do dispositivo é enfatizar que o direito de pedir patente é uma faculdade do inventor, e não um dever. Ao inventor que preferir manter sua criação em sigilo, sem constituir anterioridade é facultado continuar a exploração, ainda que sem a exclusividade do titular da patente. Garante-se formalmente o direito ao sigilo, que é paralelo ao direito ao inédito da lei autoral, com ser o direito de não tornar pública a sua criação.”

Ousamos discordar do renomado professor, o nosso sistema é conhecido como atributivo, ou seja,  para que o inventor possa obter o domínio pleno da sua invenção, podendo utilizá-la e explorá-la com exclusividade ou, ainda, cedê-la a terceiros, é curial que o inventor detenha a carta-patente e, para tanto, o registro, junto ao INPI, é compulsório. A faculdade do inventor manter o seu invento em segredo não tem o condão de transformá-lo em facultativo; até porque, se este for surpreendido com o depósito realizado por outrem, o invento passará a ser titularizado pelo primeiro depositante e não pelo usuário, mesmo que esteja de boa-fé.

Por outro lado, concomitantemente ao direito de sigilo do inventor sempre existirá o ônus de não lhe ser concedido o domínio do seu invento. Caberá a este balancear as vantagens e desvantagens da sua escolha. Há inventos mantidos em sigilo por décadas como a Coca-Cola. 

No mais, essa utilização concomitante do invento pelo titular da patente e pelo usuário de boa-fé certamente poderá ensejar algumas situações indesejáveis de conflito, pois o direito de uso permitido ao usuário de boa-fé poderá, em algumas situações, conflitar com o direito de domínio do titular da patente.

 

Notas e referências

[1] Art. 1.166 do Código Civil assim dispõe: a inscrição do empresário, ou dos atos constitutivos das pessoas jurídicas, ou as respectivas averbações, no registro próprio, asseguram o uso exclusivo do nome nos limites do respectivo Estado.  (grifo nosso)

[2] The first to file rule states that whoever is the first to file a patent on an invention owns the rights to that invention, even if it is a  provisional patent or if that person didn't come up with the idea. After the America Invents Act went into effect in March 2013, the United States switched from a "first to invent" to a "first to file" rule.

[3] Vamos denominar de inventor sênior aquele que primeiro efetuou o depósito e obteve a carta-patente junto ao INPI e de inventor júnior, o usuário de boa-fé que obteve o direito de utilizar o invento

[4] O direito conferido na forma deste artigo só poderá ser cedido juntamente com o negócio ou empresa, ou parte desta que tenha direta relação com a exploração do objeto da patente, por alienação ou arrendamento. (Grifo nosso)

[5] Art. 8º da Lei 9279/96 É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.

[6] A legislação norte-americana também exige que a invenção atenda ao requisito da novidade, conforme preceitua o section § 102 of the Patente Act. A person shall be entitled to a patent unless the claimed invention was patented, described in a printed publication, or in public use, on sale, or otherwise available to the public before the effective filing date of the claimed invention; or the claimed invention was described in a patent issued under section 151, or in an application for patent published or deemed published under section 122(b), in which the patent or application, as the case may be, names another inventor and was effectively filed before the effective filing date of the claimed invention.

[7] Tratado da Propriedade Industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2017. p. 1.350.

 

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