A (in)violabilidade do domicílio no Estado Democrático de Direito

26/09/2015

Por Ana Luíza Teixeira Nazário  - 26/09/2015

Após mais de vinte anos de trevas, nasce o símbolo de uma nova era: é promulgada a Constituição Federal de 1988. Marco na transição entre a ditadura e a democracia, a Constituição Cidadã veio como um elixir para (tentar) garantir aos cidadãos brasileiros e àqueles que aqui residem direitos fundamentais que hoje nos parecem naturais, mas foram duramente violados durante a Ditadura Militar de 1964 a 1985.

Ao promulgar a então nova Constituição, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte à época, Ulysses Guimarães, disse: “Declaro promulgado o documento da liberdade, da democracia e da justiça social do Brasil”.  Ainda que belas as palavras de Ulysses Guimarães, em muitos aspectos, estas não passaram de mera utopia.

No atual cenário, o que vemos é a Constituição Federal sendo “apenas um documento”, pois, ainda que não estejamos sob a ditadura, grande parte de seus preceitos mais comezinhos são violados diariamente. Mesmo que se reconheça o grande avanço social alcançado por meio da nova Constituinte, é entristecedor ver que alguns dos agentes responsáveis por essas violações são justamente aqueles que deveriam ser os guardiões do Estado Democrático de Direito.

Na esfera penal, não raras vezes, deparamo-nos com verdeiros vilipêndios ao texto constitucional. Um dos direitos fundamentais mais combalidos é o direito à inviolabilidade do domicílio, visto que inúmeros “suspeitos” têm suas residências invadidas pelas polícias civil e militar, sobretudo nas ações das Unidades de Polícia Pacificadora instaladas em comunidades anteriormente “dominadas pelo tráfico de entorpecentes”. Hoje, essas comunidades deixaram de ser reféns do “traficante” e passaram a viver sob a mira (literalmente) estatal. É a norma constitucional sendo derrubada pelo “pé na porta”…

Assegurado a todo cidadão, o direito à inviolabilidade de domicílio vem insculpido no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, in verbis:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial."

Na doutrina, encontramos a seguinte definição:

"A inviolabilidade do domicílio constitui direito fundamental atribuído às pessoas em consideração à sua dignidade e com o intuito de lhes assegurar um espaço elementar para o livre desenvolvimento de sua personalidade, além de garantir o seu direito de serem deixadas em paz, de tal sorte que a proteção não diz respeito ao direito de posse ou propriedade, mas com a esfera 3 espacial na qual se desenrola e desenvolve a vida privada". [1]

Entretanto, sabe-se que em casos de flagrância cabe exceção à norma constitucional, porém para “validar” tal violação se deve trabalhar com a certeza da prática delituosa. No entanto, é odiosa a “pretensão de se presumir” a violação da norma penal buscando a incansável suposição de tal violação tendo como amparo generalidades. Assim, não é cabível uma comprovação posterior à violação do domicílio, sob risco de abater a proteção constitucional que deveria ser garantida a todos os cidadãos e, assim, se tornaria  inválida a prova produzida.

Neste sentido, vem se posicionando a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. LIBERDADE CONCEDIDA. Paciente primário, preso em 20 de novembro de 2014, sendo-lhe atribuída a posse de 357 gramas de crack. Em que pese a expressiva quantidade de droga apreendida, percebe-se que a abordagem feita no estabelecimento de reciclagem foi feita sem mandado de busca e apreensão, o que indica possível violação de domicílio. Se o local era conhecido como ponto de tráfico, conforme foi relatado pelo condutor, deveria ter havido representação por mandado de busca e apreensão a fim de que os atos praticados fossem, incontrastavelmente, lícitos e a apreensão das substâncias fosse legal. Considerando que pode não ter sido observado o direito fundamental de inviolabilidade do domicílio, restam enfraquecidas, em certa medida, as circunstâncias autorizadoras da prisão. A situação de flagrante delito deve ser, como tenho mencionado inúmeras vezes em decisões proferidas nessa matéria, certa, ou seja, antecipada com a qualidade da certeza. ORDEM CONCEDIDA. LIMINAR RATIFICADA.[2]

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. Inviolabilidade do domicílio. Não restou demonstrada a situação de flagrante delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Não ficou evidenciado que o réu estava dispensando substância entorpecente pela janela. Se era do conhecimento dos policiais que aquele era um ponto de tráfico e se a informação anônima indicou o exato endereço do local, deveria ter havido requisição por mandado de busca e apreensão. Certo é que a norma constitucional comporta exceção - flagrante delito, por exemplo - mas, para validade da violação ao direito destacado, deve-se ter certeza da ocorrência do crime, não cabendo sua comprovação a posteriori, depois de já violado o domicílio, sob pena de enfraquecer o comando constitucional, que deveria ser assegurado a todos os cidadãos e, via de consequência, tornar inválida a prova produzida. Insuficiência probatória. Mesmo que fosse superada a violação do artigo 5º, XI, da Constituição Federal, não há provas suficientes para manter a condenação pelo delito de tráfico ilícito de entorpecentes. Para que haja condenação pelo delito de tráfico ilícito de entorpecentes, é indispensável que se comprove a circulabilidade da droga, o que não ocorreu nos autos. A quantidade de droga (53 pedrinhas de cocaína, pesando 10 gramas) não permite, por si só, autorizar a condenação, pois a prova penal não admite presunções. RECURSO PROVIDO. [3]

APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DA PROVA MATERIAL. ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A inviolabilidade do domicílio é a regra (CF, art. 5°, inc. XI); excepcionalmente, diante de "fundadas razões" (fatos indiciados e delimitados temporalmente), nos termos do § 1º do art. 240 do CPP, o juiz, previamente, determinará a busca domiciliar, que deve ser feita de dia; ainda mais excepcionalmente, diante do perigo na demora, agente estatal no exercício do poder de polícia, à noite, poderá ingressar na casa de alguém, quando se depare com flagrante delito. O mínimo que se exige, pena de esvaziar a garantia, é que a situação de flagrante seja percebida ex ante pelo agente que vai operar a ingerência constitucionalmente autorizada. Dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio. As declarações dos policiais que participaram do flagrante foram unânimes no sentido de que havia denúncia anônima sobre eventual traficância no local (denúncias não identificadas, anônimas, rumores - o que enfraquece o teor informativo, mormente quando não circunstanciadas). No entanto, a diligência não decorreu para fins de averiguação de tais denúncias. Os policiais referem que estavam em patrulhamento de rotina e perceberam atitude suspeita de um indivíduo (atitude não circunstanciada), que correu e entrou na casa. Então, os agentes estatais ingressaram na residência. O indivíduo fugiu. Ao que parece, desistiram da perseguição e resolveram revistar a casa. As rés estavam no local e encontraram as drogas aprendidas. A entrada em casa alheia, nesta situação, torna-se, ipso facto, carente de fundamento racional apriorístico e, portanto, desborda das regras do jogo. E não pode, o aleatório subsequente (eventual apreensão de drogas, ou de armas, por exemplo), determinar a licitude de provas produzidas durante intervenção que, à partida, não se amparava em permissivo constitucional. Viciadas tais provas, derivadas da ilicitude do ingresso, é impositiva a manutenção da absolvição. RECURSO DESPROVIDO.

Em louvável decisão, a 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro [5] absolveu dois réus acusados de tráfico de drogas e associação para o tráfico que tiveram a residência invadida pela Polícia Militar na Favela do Muquiço.

Sem mandado judicial e sem autorização, os policiais militares entraram na residência em que estavam os réus. Os policiais relataram em juízo que estavam em “vasculhamento”, durante uma ocupação na Favela do Muquiço, quando avistaram uma residência com as portas abertas e entraram, ocasião na qual supostamente encontraram 151g (cento e cinqüenta e um gramas) de Cannabis Sativa L, distribuídos em 72 (setenta e dois) sacolés, e 17g (dezessete gramas) de Cloridrato de Cocaína, distribuídos em 52 (cinqüenta e dois) sacolés e, ainda, armas, munições e celulares.

Visto o modus operandi dos policiais, os desembargadores entenderam que a prova foi obtida por meio manifestamente ilícito, sem as formalidades constitucionais e infraconstitucionais, violando a garantia de inviolabilidade domiciliar.

Além disso, os julgadores ressaltaram a incapacidade do Ministério Público em demonstrar a configuração dos crimes por que os réus foram acusados. Assim, ensejando a acertadíssima decisão de absolvição.

No acórdão redigido pelo Desembargador Nildson Araújo da Cruz, a memória (seletiva) dos “esquecidos” (por conveniência) recebe um “refresco”:

"E, é bom ter em mente, que a ocupação da Favela do Muquiço pela polícia não permite desconsiderar a inviolabilidade domiciliar. Aliás, nem o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º) autoriza desconsiderar aquele direito à privacidade fora das hipóteses consagradas pelo art. 5º, XI, da Carta Federal".

Não podemos esperar outra postura do Judiciário a não ser a declaração da nulidade de todos os atos processuais dependentes da prova ilícita originária, visto que todos os atos conseguintes derivam de verdadeira anomalia jurídica. Permitir a subversão de um direito fundamental num Estado que se diz democrático em nome da “caça às bruxas” evidencia o quão falido está nosso atual modelo estatal.

A violação de domicílio não pode contar com o respaldo do Judiciário, uma vez que este é um dos responsáveis por garantir as liberdades previstas na Constituição Federal. Permitir que cidadãos tenham suas casas invadidas sem a devida justificação  - quando há mandado ou configurada esta hipótese de exceção - gerará não só insegurança jurídica para a sociedade como também vai legitimar outras arbitrariedades.

Contudo, por vezes o desrespeito aos direitos fundamentais não está restrito à ação e investigação policial. Para que haja processo penal é necessário o oferecimento de denúncia ou queixa, o que cabe, respectivamente, ao Ministério Público e ao ofendido. Em casos de ação penal pública, o Ministério Público receberá documentação referente ao suposto fato criminoso e então, verificará se os elementos oferecidos o habilitam a promover a ação penal. Todavia, em alguns casos, parece ser olvidado pelo nobre órgão verificar não só se as provas recebidas possuem indícios de autoria e prática de fato criminoso, mas também certificar a licitude das provas coligidas.

Nota-se em processos criminais originários de provas ilícitas [6] [7] o intento de condenação indiscriminada, já que nesses casos o próprio Ministério Público, órgão garantidor do Estado Democrático de Direito, viola princípios basilares na busca pela garantia do êxito da acusação. Ora, ao invés de lutar pelo triunfo da condenação, o parquet deveria primeiro zelar pelas garantias dos cidadãos.


Notas e Referências:

[1] KLOEPFER, Michael. Verfassungsrecht II. Band I, München: C.H. Beck, 2011, p. 377 apud SARLET, Ingo Wolfgang; NETO, Jayme Weingartner Neto. A Inviolabilidade do Domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, julho/dezembro de 2013, p. 547.

[2] Habeas Corpus Nº 70062981402, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 12/03/2015.

[3] Apelação Crime Nº 70062203625, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 18/12/2014.

[4] Apelação Crime Nº 70061771804, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 10/12/2014.

[5] Apelação nº. 0024240-10.2012.8.19.0202, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RJ, Relatora: Desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, Julgado em: 09/12/2014.

[6] Artigo 5º, LVI, Constituição Federal: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

[7] Artigo 157, Código de Processo Penal: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.


Ana Luíza Teixeira NazárioAna Luíza Teixeira Nazário é acadêmica do último semestre de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente exerce os cargos de Coordenadora Executiva da Associação dos Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS) e Estagiária no escritório César Peres Advogados Associados. Aprovada no XV Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil.

.

.


Imagem Ilustrativa do Post: Policiais na Favela// Foto de: Núcleo Editorial // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/132115055@N04/17313922452 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura