A (IN)VALIDADE DA SUPREMACIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO

30/12/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini 

O último artigo do ano não poderia deixar de tratar de tema tão polêmico e ainda não definido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fazendo com que o ano de 2020 seja de definição dessa questão tormentosa advinda da lei 13.467/17.

A questão referente à prevalência da negociação coletiva em face da legislação trabalhista sempre foi muito discutida, pois o entendimento adotado pela doutrina tradicional era no sentido de que deveria prevalecer a norma mais favorável ao empregado como corolário do princípio da proteção atinente ao Direito do Trabalho, de acordo com o disposto no artigo 7º da Constituição Federal da República.

Admitia-se apenas a flexibilização de direitos trabalhistas por meio de negociação coletiva nas hipóteses de redução de salário, compensação e redução da jornada de trabalho e turnos ininterruptos de revezamento (artigo 7º, incisos VI, XIII e XIV da Constituição da República), objetivando à proteção do emprego e de adaptação às condições sociais e econômicas.

Sendo assim, as negociações coletivas, decorrentes que são da autonomia coletiva de vontade dos particulares, são expressamente reconhecidas no artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição da República.

Antes mesmo da referida questão restar definida em lei, a tendência do Supremo Tribunal Federal era no sentido de prestigiar e reconhecer a prevalência das normas coletivas negociadas, como se pôde verificar pela decisão relativa à adesão ao plano de demissão incentivada (instituído por acordo coletivo), tendo sido firmado entendimento, à época, no sentido de que a quitação ampla abrange todas as verbas do contrato de trabalho extinto caso haja tal previsão na norma coletiva negociada.

Outra questão decidida pelo Supremo Tribunal Federal, antes mesmo da lei 13.467/17 dispor sobre a prevalência do negociado sobre o legislado, dizia respeito à supressão das horas in itinere pactuada coletivamente.

Para melhor compreensão do posicionamento adotado pelo STF, ante da vigência da lei 13.467/17, serão transcritos, abaixo, trechos das decisões, anteriormente, mencionadas:

“Negociado X Legislado I - Reforma Trabalhista “Direito do Trabalho. Acordo coletivo. Plano de dispensa incentivada. Validade e efeitos. 1. Plano de dispensa incentivada aprovado em acordo coletivo que contou com ampla participação dos empregados. Previsão de vantagens aos trabalhadores, bem como quitação de toda e qualquer parcela decorrente de relação de emprego. Faculdade do empregado de optar ou não pelo plano. 2. Validade da quitação ampla. Não incidência, na hipótese, do art. 477, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que restringe a eficácia liberatória da quitação aos valores e às parcelas discriminadas no termo de rescisão exclusivamente. 3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. 4. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida. 5. Os planos de dispensa incentivada permitem reduzir as repercussões sociais das dispensas, assegurando àqueles que optam por seu desligamento da empresa condições econômicas mais vantajosas do que aquelas que decorreriam do mero desligamento por decisão do empregador. É importante, por isso, assegurar a credibilidade de tais planos, a fim de preservar a sua função protetiva e de não desestimular o seu uso. 7. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: ‘A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado’” (STF, Pleno, RE 590.415/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 29.05.2015)”.

“RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N.º 11.496/2007. HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO. NORMA COLETIVA. INVALIDADE.1. O princípio do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, consagrado no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República, apenas guarda pertinência com aquelas hipóteses em que o conteúdo das normas pactuadas não se revela contrário a preceitos legais de caráter cogente.2. O pagamento das horas in itinere está assegurado pelo artigo 58, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, norma que se reveste do caráter de ordem pública. Sua supressão, mediante norma coletiva, ainda que mediante a concessão de outras vantagens aos empregados, afronta diretamente a referida disposição de lei, além de atentar contra os preceitos consti tucionais assecuratórios de condições mínimas de proteção ao trabalho. Resulta evidente, daí, que tal avença não encontra respaldo no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República. Precedentes da SBDI-I.3. Recurso de embargos conhecido e não provido. Os embargos de declaração opostos foram rejeitados. No recurso extraordinário, a parte recorrente aponta, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, violação aos seguintes dispositivos constitucionais: (a) art. 7º, VI, XIII, XIV e XXVI, pois (I) “a Constituição Federal expressamente admitiu a negociação coletiva de questões afetas ao salário e à jornada de trabalho” (fl . 13, doc. 38); (II) “o art. 58, § 2º, da CLT não se qualifi ca como norma de ordem pública, tampouco envolve direito indisponível” (fl . 13, doc. 38); (III) houve “a outorga de diversos benefícios em troca da flexibilização do pagamento das horas in itinere, de modo que, como um todo, a norma coletiva se mostra extremamente favorável aos trabalhadores” (fl . 25, doc. 38); (b) art. 5º, LIV, porque o acórdão recorrido “desborda da razoabilidade, vulnerando a proporcionalidade”, uma vez que desconsiderou “acordo coletivo, veiculando flexibilização salarial em prol dos obreiros (...), obrigando o custeio das horas in iti nere, e, concomitantemente” (fl . 27, doc. 38), manteve as demais vantagens compensatórias. Sem contrarrazões. O recurso extraordinário foi admiti do na origem, sendo determinada sua remessa a esta Corte como representativo da controvérsia, nos termos do art. 543-B, § 1º, do CPC/1973.2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal apreciou discussão semelhante à presente, sob o rito do art. 543-B do CPC/1973, no julgamento do RE 590.415 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 29/5/2015, Tema 152), interposto contra acórdão do Tribunal Superior do Trabalho que negara a validade de quitação ampla do contrato de trabalho, constante de plano de dispensa incentivada, por considerá-la contrária ao art. 477, § 2º, da CLT. Ao analisar o recurso paradigma, o STF assentou a seguinte tese: A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado. O voto condutor do acórdão, da lavra do Ministro Roberto Barroso, foi proferido com base nas seguintes razões: (a) “a Constituição reconheceu as convenções e os acordos coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição de conflitos trabalhistas; tornou explícita a possibilidade de utilização desses instrumentos, inclusive para a redução de direitos trabalhistas; atribuiu ao sindicato a representação da categoria; impôs a participação dos sindicatos nas negociações coletivas; e assegurou, em alguma medida, a liberdade sindical (...)”; (b) “a Constituição de 1988 (...) prestigiou a autonomia coletiva da vontade como mecanismo pelo qual o trabalhador contribuirá para a formulação das normas que regerão a sua própria vida, inclusive no trabalho (art. 7º, XXVI, CF)”; (c) “no âmbito do direito coletivo, não se verifica (...) a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual”; (d) “(...) não deve ser vista com bons olhos a sistemática invalidação dos acordos coletivos de trabalho com base em uma lógica de limitação da autonomia da vontade exclusivamente aplicável às relações individuais de trabalho”.3. No presente caso, a recorrente firmou acordo coletivo de trabalho com o sindicato da categoria à qual pertence a parte recorrida para que fosse suprimido o pagamento das horas in itinere e, em contrapartida, fossem concedidas outras vantagens aos empregados, “tais como ‘fornecimento de cesta básica durante a entressafra; seguro de vida e acidentes além do obrigatório e sem custo para o empregado; pagamento do abono anual aos trabalhadores com ganho mensal superior a dois salários-mínimos; pagamento do salário-família além do limite legal; fornecimento de repositor energético; adoção de tabela progressiva de produção além da prevista na Convenção Coletiva” (fl . 7, doc. 29).O Tribunal de origem entendeu, todavia, pela invalidade do acordo coletivo de trabalho, uma vez que o direito às horas in itinere seria indisponível em razão do que dispõe o art. 58, § 2º, da CLT: Art. 58 (...)§ 2º O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução. O acórdão recorrido não se encontra em conformidade com a ratio adotada no julgamento do RE 590.415, no qual esta Corte conferiu especial relevância ao princípio da autonomia da vontade no âmbito do direito coletivo do trabalho. Ainda que o acordo coletivo de trabalho tenha afastado direito assegurado aos trabalhadores pela CLT, concedeu-lhe outras vantagens com vistas a compensar essa supressão. Ademais, a validade da votação da Assembleia Geral que deliberou pela celebração do acordo coletivo de trabalho não foi rechaçada nesta demanda, razão pela qual se deve presumir legítima a manifestação de vontade proferida pela entidade sindical. Registre-se que a própria Constituição Federal admite que as normas coletivas de trabalho disponham sobre salário (art. 7º, VI) e jornada de trabalho (art. 7º, XIII e XIV), inclusive reduzindo temporariamente remuneração e fixando jornada diversa da constitucionalmente estabelecida. Não se constata, por outro lado, que o acordo coletivo em questão tenha extrapolado os limites da razoabilidade, uma vez que, embora tenha limitado direito legalmente previsto, concedeu outras vantagens em seu lugar, por meio de manifestação de vontade válida da entidade sindical.4. Registre-se que o requisito da repercussão geral está atendido em face do que prescreve o art. 543-A, § 3º, do CPC/1973: “Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal”.5. Diante do exposto, com base no art. 557, § 1º-A, do CPC/1973, dou provimento ao recurso extraordinário para afastar a condenação da recorrente ao pagamento das horas in itinere e dos respectivos reflexos salariais. Após o trânsito em julgado, oficie-se à Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, encaminhando-lhe cópia desta decisão para as devidas providências, tendo em conta a indicação do presente apelo como representativo de controvérsia (STF, RE 895.759/PE, Rel. Min. Teori Zavascki, decisão monocrática, DJe 13.09.2016)”.

Verifica-se pela leitura das decisões que o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal era no sentido de haver a possibilidade de restrição a alguns direitos dos trabalhadores, desde que houvesse contrapartida a ser oferecida.

A contrário senso, o Tribunal Superior do Trabalho interpretava restritivamente a possibilidade da negociação coletiva, considerando os princípios que regem o Direito do Trabalho, especialmente o protetivo, limitando a extensão do que poderia ser negociado coletivamente. Cita-se como exemplo um precedente do TST no sentido de que a negociação coletiva não poderia representar vilipêndio a direitos indisponíveis dos trabalhadores:

''AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – ACORDO COLETIVO – LIMITES À NEGOCIAÇÃO COLETIVA. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 7º, XXVI, ao permitir que as categorias profissionais e econômicas disciplinem as relações por ela travadas, não o fez de maneira a possibilitar o vilipêndio a direitos indisponíveis dos trabalhadores. Dessa forma, o negociado somente se afigurará passível de se sobrepor ao legislado, naquelas situações em que ausente a afronta aos aludidos direitos, o que não ocorre nos casos em que desrespeita normas inerentes à saúde do trabalhador, como é o caso da duração diária da jornada do trabalho. Agravo de Instrumento desprovido”. (Agravo de Instrumento em Recurso de Revista AIRR - 77140-17.2005.5.01.0056, Órgão Julgador: 1ª Turma; Publicação: 07/08/2009; Relator: Ministro Vieira de Mello Filho).

Após o advento da lei 13.467/17, no intuito enfrentar o cenário de insegurança jurídica existente, a Reforma Trabalhista introduziu os artigos 611-A e 611-B na Consolidação das Leis do Trabalho, sendo que o artigo 611-A da CLT elencou, em rol meramente exemplificativo, como se observa pela expressão ''entre outros'', as matérias que podem ser objetos de flexibilização, sendo que eventual negociação desses direitos prevalecerá sobre o disposto em legislação; ao passo que no artigo 611-B da CLT a reforma trabalhista trouxe de forma taxativa um rol de direitos cuja supressão ou redução em acordo coletivo ou convenção coletiva consistiria na ilicitude da pactuação.

Portanto, a lei 13.467/17 alterou o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de não mais ser necessário o estabelecimento de contrapartidas nos instrumentos coletivos a fim de não caracterizar vício do negócio jurídico. Assim, a interpretação restritiva da lei reformista faz com que seja possível haver posicionamento jurisprudencial admitindo a celebração de acordo coletivo ou convenção coletiva que importem atos de mera renúncia por uma das partes, havendo apenas uma hipótese de contrapartida obrigatória nos casos em que haja redução de salário ou jornada, devendo a convenção ou acordo coletivo prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada, nos termos do que dispõe o parágrafo terceiro do artigo 611-A da CLT.

Portanto, nos termos da lei, é possível a prevalência do negociado sobre o legislado nos itens arrolados no art. 611-A da CLT, ou em outras matérias, sendo admissível a redução ou supressão de direitos se houver negociação coletiva.

Ocorre, todavia, que a questão ainda está longe de ter uma definição, já que o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, determinou a suspensão de todos os processos que tratem da validade da norma coletiva que restrinja direitos trabalhistas não previstos constitucionalmente nos autos da ADPF 381, com base em decisão já adotada no ARE1.121.633 (tema 1046 de repercussão geral)

Portanto, um dos principais pontos da reforma trabalhista será resolvido em 2020, estando na pauta de julgamento do STF, do dia 06 de maio do próximo ano, o julgamento de referida questão, onde a Corte decidirá se norma coletiva de trabalho poderá limitar ou restringir direito trabalhista não assegurado constitucionalmente.

Nesse caminhar, o Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (art. 1º, incisos III e IV, da Constituição da República), deverá observar que a autonomia coletiva dos particulares necessita ser exercida com o objetivo de melhoria das condições sociais e aperfeiçoamento da disciplina das relações de trabalho e adaptação do sistema jurídico às necessidades dos tempos contemporâneos.

Caberá não apenas aos operadores do direito, mas igualmente a todos os interessados, acompanhar a evolução legislativa e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre relevante questão que será definida em maio de 2020.

 

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