Coluna Espaço do Estudante
Assistimos, na manhã de sexta-feira aos quatro dias do mês de março de dois mil e dezesseis, as notícias do mandado de condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento à Polícia Federal. Um dia frenético no cenário político, com todo o bramido público que se pode esperar numa situação dessas. Tratava-se da 24ª fase da operação Lava Jato, em que foram expedidos 44 mandados judiciais, sendo 33 de busca e apreensão, e 11 de condução coercitiva nos estados Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. A tônica ficou no fato da condução coercitiva do ex-presidente. Era uma medida necessária, conveniente, apropriada, e, sobretudo, legal? É o que trataremos a seguir.
O direito ao silêncio (não autoincriminação) está celebrizado na Constituição, cujo princípio deriva do aforismo “ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) ”. Em suma, a ninguém é exigido participar de forma ativa na persecução penal, caso a atividade exercida pelo investigado/acusado forneça meios de prova que o incrimine. É, portanto, evidente que tal garantia veda a condução coercitiva. Ninguém pode ser levado coercitivamente à autoridade para prestar depoimento. Ora, se o acusado não foi espontaneamente quando intimado é porque não quer falar; e levá-lo “debaixo de vara” para que diante da autoridade permaneça silente (usando seu direito), demonstra um esforço prescindível e dispendioso ao Estado.
A discussão, portanto, do caso especifico, está justamente em torno do mandado de condução coercitiva ferir o direito de não autoincriminação -- se o fato acontecido com o ex-presidente Lula feriu norma constitucional.
Vamos à análise.
A previsão do mandado de condução coercitiva encontra-se no art. 260, do CPP:
“Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplicável.”
Assim, regra o nosso Código de Processo Penal que, não atendida a intimação do acusado (ou investigado) para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que não possa ser realizado sem ele, a autoridade mandará, por meio do mandado de condução coercitiva, conduzi-lo à sua presença. Significa que o acusado será privado de sua liberdade de locomoção pelo tempo que for necessário para ser levado à presença da Polícia Judiciária ou na Promotoria Criminal e participar de ato de investigação. Trata-se de medida cautelar de coação pessoal. Não será preso (não tem natureza de prisão cautelar), mas somente privado de sua liberdade pelo lapso temporal necessário à sua atuação na investigação.
Abramos um parêntesis. Quanto à autoridade competente, por força da cláusula de reserva jurisdicional, somente a autoridade judiciária poderá expedir o mandado de condução coercitiva (HC 94.173/BA, Rel. Min Celso de Melo). Ou seja, Lula só poderia ser levado coercitivamente por ordem legal do juiz competente, não por ordem do delegado ou promotor de justiça à frente das investigações. Nesse ponto, sabe-se que os mandados foram expedidos pelo Juiz da 13ª Vara Criminal, onde se processa a famigerada operação Lava Jato.
Dito isso, pode um mandado de condução coercitiva servir para interrogar um investigado/acusado? Não só a Constituição garante o direito ao silêncio... (vide art. 5º, inciso LXIII, CF/88), a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu art. 8º., preceitua:
“Garantias judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito que tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.
O Código de Processo Penal vigente foi decretado na década de 1941, devemos, portanto, examiná-lo sob a exegese da CF 1988; e como norma infraconstitucional, deverá acatamento e junção material à Constituição Federal de 1988 para ser recepcionado. Destarte, a interpretação do art. 260, CPP à luz da Constituição deve ser a seguinte: NÃO pode o investigado ou acusado ser INTERROGADO por meio de mandado de condução coercitiva; assim como também não pode, v.g., comparecer a uma audiência de instrução, participar de acareação, prestar declarações, fazer exame pericial, participar da reconstituição, ou qualquer outra ordem que demande comportamento ativo.
No magistério do prof. Renato Brasileiro o investigado pode, contudo, ser levado coercitivamente a atuar na persecução criminal por “qualquer outro ato” (caput, art. 260, CPP), desde que esse outro ato não esteja protegido pelo ‘nemo tenetur se detegere’. Ou seja, o sujeito que, num dado inquérito, precise participar de reconhecimento pode ser levado pela autoridade coercitivamente, pois dele não é exigido nenhuma ação capaz de contra ele produzir elementos probatórios. Ser suspeito é um ônus ao qual todos estamos sujeitos.
Então qual o sentido do mandado de condução coercitiva efetuado hoje contra o ex-presidente da república, já que não poderia ele prestar depoimento por este meio de mandado? Tem sido comum a expedição de mandados desse tipo, sobremaneira, quando há a deflagração de grandes operações policiais. Isso porque, quando vários mandados de busca e apreensão são expedidos, habitualmente se expede também outros tantos de condução coercitiva aos sujeitos relacionados na operação, a fim de que o investigado em liberdade não atue destruindo provas. A finalidade se encaixa, assim, por “qualquer outro ato”, qual seja, o de não sonegar as provas colhidas nos mandados de busca e apreensão. É uma privação de liberdade que não tem natureza de prisão cautelar (preventiva ou temporária), com o fim de manter o investigado longe da operação principal. Este parece ser o entendimento do Juiz Sérgio Moro e do STF, como já visto no HC supracitado[1].
Com a devida vênia, entendo o art. 260, CPP como revogado do ordenamento jurídico pela não recepção material da norma, pois, incompatível com Constituição Federal de 1988, no que tange especialmente aos comportamentos exigidos que criem provas contra o acusado. A parte materialmente revogada possui destoante mitigação do direito a não autoincriminação.
Contudo, ainda que o STF venha a reconhecer a recepção da norma pela Constituição, temos de, ainda, entender que a perquirição da polícia judiciária, do parquet autorizada pelo do juízo não pode simplesmente alastrar o art. 260, CPP por uma interpretação extensiva para alcançar um "fim maior"; o legislador não disse menos do que queria dizer (minus scripsit quam voluit), ele disse: se o acusado não atender. Ponto. Logo, ainda que o mandado seja “por outro motivo”, esse outro motivo deverá obedecer à pretérita intimação do inquirido, e este tenha se recusado a comparecer – não foi o que aconteceu com o ex-presidente. É o que diz a lei (dura lex, sed lex). Ou estaríamos criando nova norma capaz de restringir a liberdade de investigados/acusados que não tenham pretérita recusa de comparecimento por intimação, para proteger as provas produzidas na busca e apreensão. A norma do 260 nem de longe prevê uma analogia como essa.
Notas e Referências:
[1] Cf. Renato Brasileiro: https://youtu.be/yXal8HW5wOE
. . Yuri Calixto é acadêmico de Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). . . .
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