Pelo que sei, a doutrina pátria ainda não se ocupou deste tema. Dele me ocupei em antiga palestra proferida em congresso realizado em São Paulo, sobre o Tribunal do Júri, publicada no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=q9B3_ugNLn0 Aliás, tendo em vista as peculiaridades do procedimento do Tribunal do Júri, nele, a questão se torna mais relevante. Nos demais órgãos da justiça criminal, o “fenômeno” ocorre sem que se tenha dado conta disso.
Inicialmente, importa ressaltar que não se trata da controvertida imputação alternativa. Nesta, os fatos são excludentes. O que caracteriza a imputação alternativa é que, ontologicamente, o acusado não pode ter praticado as duas condutas. Vale dizer, ou ele roubou o carro ou comprou o carro de quem o roubou (roubo ou receptação). No caso de imputação sucessiva, as duas condutas narradas na denúncia podem ter sido praticadas pelo acusado, em sequência, como se verá abaixo. Amplia-se o chamado “thema decidendum” e, por conseguinte, os limites objetivos da coisa julgada penal.
Por outro lado, embora pareça óbvio, tem algum relevo salientar que não se cuida aqui de pedidos sucessivos, admitidos expressamente pelo Direito Processual Civil. No processo penal, em se tratando de ação penal condenatória, o pedido é sempre genérico e de condenação. Se o Ministério Público pudesse pedir tempo de prisão determinado, estaria derrogando a norma penal secundária, pois limitaria o juiz, impedindo-o de aplicar a pena dentro dos limites fixados pelo legislador.
Como já afirmamos alhures, a acusação penal se compõe de dois elementos: imputação e pedido de condenação. Note-se que, embora genérico, o pedido é da maior relevância, pois ele exterioriza a pretensão do autor e funciona como um pressuposto de existência da própria ação. Sem pedido de tutela jurisdicional, não temos denúncia ou queixa, mas mera “notitia criminis” fornecida ao juiz.
Aqui, vamos falar apenas do outro elemento da acusação, qual seja, a imputação. Através da imputação, o titular do direito de ação descreve, na denúncia ou queixa, uma conduta delituosa com todas as suas circunstâncias e atribui esta conduta ao acusado, seja na forma de autor, seja na forma de partícipe. Não é suficiente a descrição, como parece fazer crer a defeituosa redação do art. 41 do Cod. Proc. Penal, pois a atribuição ao acusado da infração penal descrita é absolutamente indispensável. Vamos, então, ao nosso tema central.
Para que melhor seja entendida o que chamei de imputação sucessiva, começaremos por um exemplo mais ou menos concreto: suponhamos que o membro do Ministério Público receba os autos de um inquérito policial, estando exauridas todas as investigações. Trata-se de um homicídio doloso. Há prova de que o indiciado foi o autor imediato deste crime, embora a prova não seja contundente. Ademais, este indiciado confessa, ampla e detalhadamente, conduta de participação deste homicídio, sendo tal confissão corroborada por testemunhas. Em resumo: o Ministério Público tem prova mínima (suporte probatório mínimo: condição da ação) da autoria e da participação do homicídio doloso. Como elaborar esta denúncia, o que deve constar da decisão da pronúncia e quais quesitos devem ser submetidos à decisão dos jurados?
Vejam o problema que esta situação concreta pode criar: se o Ministério Público imputa a autoria do homicídio, já que existe prova dela (princípio da obrigatoriedade), a pronúncia será restrita a esta autoria e o quesito também indagará apenas aos jurados se o réu matou o ofendido. A toda evidência, o acusado pode ser absolvido, embora tenha confessado, até mesmo em juízo, a sua conduta de participação, com respaldo na prova dos autos. Lógico que, nesta hipótese, não tendo sido imputada e julgada a conduta de participação, outra denúncia poderá ser oferecida por esta outra conduta, pois, em relação a elas, não haverá coisa julgada, como já decidiu o S.T.F. Entretanto, o desperdício de tempo e atividade processual é patente. Ademais, neste outro processo, os jurados podem entender que não há prova desta conduta de participação, pois o réu se retrata da anterior confissão e as testemunhas não mais são encontradas. Neste caso, ele acabaria absolvido de tudo ...
Desta forma, o nosso entendimento é que, havendo prova para dar lastro ou arrimo às duas imputações, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade de exercício da ação penal pública, o Ministério Público deveria imputar ao indiciado a autoria imediata do homicídio doloso, descrevendo todas as circunstâncias desta conduta e dizer, após, na sua denúncia, que o indiciado, além de praticar a conduta acima descrita, também praticou outra ação de participação do homicídio, descrevendo-a com detalhes.
Cabe ressaltar que esta dupla imputação deve ficar bem clara na elaboração da peça acusatória, pois a futura e eventual pronúncia deverá ser expressa em admitir esta acusação mais ampla, desde que haja prova mínima de ambas as imputações.
À toda evidência, na pronúncia, se pode admitir apenas uma das imputações, dizendo não haver prova mínima da outra (art.408 do CPP) e até impronunciar o réu, não admitindo as duas imputações. O mesmo poderão fazer, futuramente, os jurados, se a pronúncia for integral.
Sendo integral a pronúncia, será primeiramente quesitada aos jurados a autoria do homicídio. Admitida a autoria, fica prejudicado o quesito de participação, pois tal conduta deixa de ter relevância jurídica, já que não há participação em autoria própria ... Entretanto, se os jurados negarem a autoria, seria apresentado, para julgamento, o quesito sobre a conduta de participação, tornando dispensável a instauração de um outro processo. Aqui a economia processual é patente.
Note-se que tudo isso fica mais explícito no Tribunal do Júri, pela necessidade de se especificar, detalhadamente, as condutas nos quesitos. Não mais existindo o antigo Libelo Acusatório a decisão de pronúncia passa a ser a fonte da quesitação. Assim, a pronúncia deve explicitar claramente quais fatos descritos na denúncia são admitidos. Como se sabe, a pronúncia está limitada pelos fatos descritos na denúncia, pelo princípio da correlação entre acusação e decisão judicial.
Nos demais processos, fora do Tribunal do Júri, a imputação sucessiva chega mesmo a ser corriqueira. Normalmente o Ministério Público ou o querelante descrevem todas as condutas na denúncia ou queixa e o juiz diz qual ou quais entende provadas. Não há qualquer problema e nem se percebe a existência deste “instituto” processual ...
De qualquer forma, mesmo nos juízos singulares, entendo de bom alvitre que a peça acusatória seja clara e específica em relação à imputação da autoria e da conduta de participação. Se uma não for devidamente imputada, não poderá o juiz considerá-la na sua sentença final.
Ressalte-se, ainda, que a imputação sucessiva pode resultar de um aditamento no curso do processo, desde que não tenha havido, em relação a uma das condutas, o chamado arquivamento implícito. Se tiver havido tal arquivamento, só com novas provas poderá ser feito o aditamento. Lógico que este aditamento não encontra respaldo nas regras do art. 384 do Cod. Proc. Penal, que cuida de outras hipóteses, mas sim é decorrente do princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública.
Fica aqui essa nossa contribuição doutrinária para melhor compreensão do nosso sistema processual penal. Não estou motivado a criar estratégicas persecutórias, mas apenas pensar a teoria do processo penal, numa perspectiva sistemática e teórica.
Rio de Janeiro, inverno de 2016.
Imagem Ilustrativa do Post: Buch des Lebens // Foto de: Olli Henze // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/gruenewiese/15058588619
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode