Mais uma vez, vamos tratar da imputação no processo penal. Lógico que a questão está restrita à ação condenatória. Não cuidamos aqui das causas de pedir nas ações penais declaratórias, (des) constitutivas ou mandamentais, como o habeas corpus, mandado de segurança contra ato judicial penal, ação de revisão criminal, etc.
Tenho dito que a acusação, no processo penal, se compõe de dois elementos: imputação e o pedido de condenação. Como este último é sempre genérico, não desperta ele maiores questionamentos. Desta forma, será a imputação que nos permitirá identificar ou distinguir as ações, seja para examinarmos a existência de litispendência, de coisa julgada, etc.
A imputação está explicitada no artigo 41 do Cod. Proc. Penal, quando exige, na denúncia ou queixa, a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. Na verdade, tal dispositivo legal merece uma pequena crítica. Não deve o titular do direito de ação se limitar a descrever o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, pois ele deve atribuir este fato a alguém, deve imputá-lo ao acusado. Vale dizer, na denúncia ou queixa, deve o Ministério Público afirmar que o acusado foi autor ou partícipe de uma conduta criminosa.
Note-se que o mencionado dispositivo legal não fala em conduta típica, mas sim em conduta criminosa (tipicidade, ilicitude e culpabilidade). Pelas circunstâncias da conduta principal, que devem ser narradas, é que se poderá saber se, ao menos em tese, a ação ou omissão típica não está justificada por uma regra excludente de ilicitude e se, naquelas circunstâncias narradas, tal conduta principal se apresenta reprovável, censurável, tendo em vista que o acusado poderia ter agido conforme o Direito.
Por outro lado, é importante que se diga, é absolutamente necessário que tudo o que for narrado na peça acusatória tenha algum respaldo na prova do inquérito ou nas peças de informação. Não se admite ação penal condenatória sem um mínimo de suporte probatório. Não se admite ação condenatória temerária ou leviana no estado de direito.
Cabe aqui um outro esclarecimento prévio: nesta oportunidade, não vamos cuidar da chamada imputação alternativa e nem da imputação sucessiva. Aqui vamos tratar de um outro tipo de imputação, como o título do estudo já sugere.
Na imputação alternativa, as condutas atribuídas ao acusado são excludentes, juridicamente incompatíveis: ou o acusado praticou o roubo do carro ou ele receptou este automóvel. Não fossem excludentes as condutas, a imputação seria cumulativa e teríamos um concurso material de infrações.
Na imputação sucessiva, temos alguma prova de que o imputado foi o autor material do crime e temos ainda alguma prova de que ele também praticou condutas de participação. Entretanto, ele nega a autoria do delito, mas confessa que teria ajudado alguém indeterminado a praticá-lo.
Sobre as imputações alternativa e sucessiva, pedimos licença ao leitor para o remeter ao que deixamos escrito, com detalhes, na 14ª. Edição do nosso livro Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres que, em parceria com o professor Pierre Souto Maior Amorim, publicamos através da Editora Juspodium.
Para melhor compreender esta outra forma de imputação e distingui-la das demais, partimos de um exemplo, que não é muito raro aqui no Rio de Janeiro, lamentavelmente. Situação fática, demonstrada nos autos do inquérito policial: o corpo da vítima é encontrado carbonizado no alto do morro. As perícias não têm condições técnicas de explicitar a causa da morte, sua data exata e mesmo o local da consumação do homicídio. O indiciado nega que tenha sido o autor do crime, dizendo que nada sabe sobre isto, pois apenas rendeu a vítima e a entregou a um grupo de traficantes da localidade. A confissão da participação é detalhada e encontra respaldo em outras provas do inquérito. Como elaborar a denúncia, diante deste quadro probatório?
Partimos de um exemplo de homicídio, porque a questão é mais relevante no Tribunal do Júri, na medida em que os quesitos devem fazer referência expressa às conduta delituosas admitidas na decisão de pronúncia. Entretanto, esta situação pode ocorrer em qualquer outra espécie de delitos e ritos processuais.
Na situação fática trazida à nossa reflexão, não temos desconhecida apenas a autoria do homicídio. Também é desconhecida a própria conduta. Sobre ela, nada se sabe. Na imputação sucessiva, se tem alguma prova desta conduta e de que o indiciado foi o seu autor. Aqui, repito, nada se conhece em termos da conduta de autoria. Então, repito, como elaborar a denúncia?
A solução é a seguinte: na denúncia, deve o Ministério Público dizer que, “em dia não determinado do mês tal, em local não sabido do morro tal, situado no bairro tal, desta comarca, foram efetuados atos agressivos à integridade física da vítima fulano de tal. Estes atos foram perpetrados, visando a morte do ofendido, efetivamente ocorrida, conforme faz certo auto de exame cadavérico de fls. tais. Para a prática deste homicídio doloso, conscientemente, contribui o indiciado fulano de tal pois, no dia tal, no local tal, após render o ofendido, o entregou a traficantes não determinados ... (descrever, detalhadamente, esta conduta de participação).
Desta forma, a conduta de autoria é indeterminada (não só o ato de matar, mas a própria ação é desconhecida) porém, a ação de participação é devidamente imputada ao indiciado, devidamente descrita, com todas as suas circunstâncias, obedecendo-se à regra do art. 41 do Cod. Proc. Penal. O acusado sabe exatamente do que está sendo acusado e pode se defender com eficácia, segundo prova e tese de que dispuser.
Situação semelhante pode ocorrer se o Ministério Público tiver prova mínima de como a conduta de autoria material foi praticada (tempo, local e causa da morte), mas não tem nenhuma prova de quem a praticou. Diversamente, tem o Ministério Público prova da conduta de participação, em detalhes, decorrente até da confissão do indiciado.
Nesta hipótese, dirá o Ministério Público que “pessoa não determinada desferiu tiros contra a vítima fulano de tal ... (descrever a conduta, nexo de causalidade e dolo). Pode dizer, na denúncia, que, “No dia tal, local tal, foram efetuados disparos de arma de fogo contra a vítima ...”, (descrever a conduta de autoria, nexo de causalidade e dolo). Depois, o órgão acusador faz a imputação da conduta de participação no homicídio, descrevendo as suas circunstâncias, segundo prova do inquérito policial.
Fica aqui mais uma nossa contribuição para que o nosso processo penal tenha um tratamento adequado pela doutrina e, especialmente, no aspecto prático, pelos próprios sujeitos processuais, tudo objetivando um processo regido pelo sistema acusatório e pautado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, processo este que pressupõe imputação correta e sua correlação com a eventual sentença condenatória..
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