A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA HISTÓRIA PARA A FORMAÇÃO INTELECTUAL EM MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS  

02/07/2020

Ao longo dos tempos, no curso da história, foi possível constatar que, apesar de serem formalizados diversos sistemas formais de direito, muitos deles não ensejaram, efetivamente, autênticas garantias, em termos de proteção e segurança para os indivíduos em geral, privilegiando-se, ao contrário, por exemplo, em direito processual, a forma pela forma, como se fosse um fim em si mesmo, sendo até utilizada em detrimento das pessoas que visaria proteger.

Eugênio Raul Zaffaroni, Nilo Batista, Alagia & Slokar: “Uma dogmática do gênero ‘arte pela arte’ transforma o operador judicial num perigoso autômato, que manobra um programa cuja função ignora – mas que se exercerá inexoravelmente, apesar de manobrado por um néscio que julga dispensável saber para que e a quem serve aquilo que ele faz”[1]

Neste sentido, foi possível constatar a existência e construção de sistemas persecutórios formais pautados em pressupostos absolutamente irracionais e arbitrários (aos olhos de hoje) e violadores dos direitos mais básicos, em uma sociedade que se pretenda justa. 

A esse respeito, citam-se, a título ilustrativo:

- (i) o direito romano, no qual, por vários séculos, vigorou o sistema inquisitorial (monarquia e império), havendo grande concentração de poder nas mãos do julgador, sendo tolerado todo tipo de arbitrariedades[2], entre as quais o emprego da tortura, já existente desde os tempos da Grécia Antiga, como adverte Ada Pellegrini Grinover[3];

- (ii) o direito barbárico, ou germânico, no qual o imputado era submetido, não raras vezes, às mais duras provações (conhecidas como provas mágicas ou Juiízos de Deus), das quais, geralmente, sequer conseguia sair com vida[4];

- (iii) o direito canônico (da Igreja Católica), que, apesar de ser um direito um pouco mais evoluído, ostentava cunho inquisitorial (concentração de poderes nas mãos do juiz), permitindo largo emprego da tortura, com éditos condenatórios calcados em débeis inferências probatórias e indiciárias (conforme a “lógica” das provas legais)[5];

- (iv) o direito secular (da realeza), em que, não raro, eram aplicáveis punições exemplares, por meio de processos penais arbitrários, que culminavam, em muitos casos, na pena de morte, executada, em regra, do modo doloroso e cruel.

Foi só com o Iluminismo que surgiram formas de direito e de processo mais comprometidas com a segurança e liberdade do indivíduo.

Isso não significa que o Iluminismo inventou a roda de tudo (ou melhor, de tudo que seja bom), tampouco significa que não houvesse manifestações de direito importantes e garantistas antes do Iluminismo, como alguns pensam, mesmo porque, em nome dos ideais iluministas, é importante lembrar, muitos “iluministas” ou “iluminados” cometeram diversas atrocidades inomináveis.

Do exposto, cabe ressaltar que tanto a humanização quanto uma maior racionalização da persecução penal não ocorreram de modo repentino, mas, muito ao contrário, se deram aos poucos, sendo toda essa marcha histórica envolta por conquistas e diversos retrocessos[6], já que as arbitrariedades se repetiram ao longo dos tempos e ainda ocorrem (rotineiramente) até os dias atuais.

A previsão de um direito formalizado, apesar de importante, não representou ainda uma efetiva garantia, já que a forma, especialmente quando desacompanha de uma boa função, pode ser utilizada para qualquer fim, até mesmo para a violação dos direitos que, a princípio, visaria tutelar.

O formalismo no Direito, muito embora seja um valor irrenunciável, pode servir a qualquer senhor, até mesmo a fins espúrios e despropositados, sem que haja uma razão legítima que o inspire.

Foi devido a experiências históricas traumáticas do passado que se passou a entender, seja por racionalidade ou outros fatores (éticos, valores religiosos, etc.), que determinados princípios deveriam ser observados e tutelados, os quais hoje são reconhecidos internacionalmente, passando a conferir novos contornos à feição garantista do direito e do processo justo.

Por exemplo, no direito penal, para uma maior proteção do indivíduo, passou-se de um modelo de (mera) legalidade (inscrição de crimes, muitos deles de conteúdo vago e aberto, em variados instrumentos normativos) para um sistema de estrita legalidade (ao haver a necessidade de as condutas delituosas estarem bem descritas e delimitadas, por meio de lei).

Princípios e novos vetores enriqueceram o direito penal, tais como a taxatividade e os preceitos que informam um direito penal mínimo.

Tudo isso só foi possível porque as formas jurídicas foram preenchidas por valores fundamentais.

Paralelamente, o mesmo veio a ocorrer no processo, pois as garantias processuais, para serem efetivas, precisavam ser bem pensadas e ordenadas.

Migrou-se de um modelo de devido processo legal formal (necessidade de algum tipo de regramento do processo) para um sistema de devido processo legal material (necessidade não só de um regramento qualquer, mas do que se mostre mais justo para todos, tendo em vista valores fundamentais).

Falar um pouco do processo histórico pelo qual esses direitos e garantias foram conquistados é importante, para mostrar que eles são, genuinamente, conquistas humanas, que, se desprezadas, podem ser perdidas.

Não são um dado conferido ou revelado pelo Divino, ou, quiçá, algo natural, a que se chegaria, invariavelmente, por uma falsa ideia de evolucionismo ou de continuidade histórica, sendo que, por isso mesmo, tais conquistas precisam ser preservadas e, mais do que isso, efetivadas na prática, em prol do exercício da cidadania, com vistas à “emancipação política do homem”, como bem ensina a Professora Valquíria Ortiz Tavares Costa[7], só possível por meio de uma educação contínua sobre a importância destes direitos.

 

Notas e Referências

[1] BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugênio Raúl; ALAGIA, Alejandro & SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: segundo volume, parte I. Teoria do delito, introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 25-26.

[2] O próprio processo contra Jesus Cristo dá o tom das arbitrariedades que eram cometidas à época. A respeito, vide: NOVAES, André Santos. Comentários e anotações sobre o processo penal de Jesus – O Galileu – nulidades, ilegalidades, arbitrariedades e abusos praticados dois mil anos atrás. São Paulo: Ltr, 2001.

[3] “... é também preciso lembrar que justamente no sistema ateniense se encontram traços de tortura, como meio de prova. A tortura era utilizada geralmente para os escravos, porquanto não podiam eles, por sua condição, prestar juramento, entendendo-se, assim, possível dar um crédito de verdade a seus depoimentos, através da tortura; e é necessário sublinhar a presença desse meio de prova entre os atenienses, para refutar o entendimento bastante corrente pelo qual a tortura teria nascido com o sistema inquisitório” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal, p. 40)(grifamos e destacamos).

[4] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal, p. 44.

[5] A respeito da lógica dessas provas: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 108-109.

[6] “A crítica e a superação das provas legais representam uma conquista do pensamento iluminista e da Revolução Francesa” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 110). Importante destacar que “o abandono das provas legais em favor da livre convicção do juiz, contudo, do modo como foi concebido e praticado pela cultura jurídica pós-iluminista, correspondeu a uma das páginas politicamente mais amargas e intelectualmente mais deprimentes da história das instituições penais. A fórmula da ‘livre convicção’, que por si mesma expressa apenas um trivial princípio negativo, que deve ser integrado com a indicação das condições não legais, mas epistemológicas da prova, na realidade foi acriticamente entendida como um critério discricionário de valoração, substitutivo das provas legais. (...) E terminou por transformar-se em um tosco princípio potestativo, idôneo para legitimar o arbítrio dos juízes” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 112-113)(grifamos e destacamos)

[7] COSTA, Valquíria Ortiz Tavares. Cidadania: a educação em direitos e a emancipação política do homem. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018.

 

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