A IMPORTÂNCIA DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO        

19/07/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

No dia 24 de abril de 1998, foi decretado feriado em Ruanda, para que milhares de pessoas lotassem cinco estádios para assistir ao fuzilamento de 22 pessoas condenadas pela participação no genocídio ocorrido em 1994, o qual resultou na morte de nada menos do que um milhão de pessoas (isso mesmo: 1.000.000 de pessoas foram mortas).

A professora Flávia Piovesan, abordando o tema, assim registra: Não bastando tal violência, pelas estimativas da ONU, pelo menos 250 mil mulheres foram estupradas em Ruanda. Em consequência, calcula-se que cerca de 5 mil crianças tenham nascido. Elas foram estupradas individualmente ou em grupos e violadas com objetos como pedaços de pau afiados e canos de armas, sendo sexualmente escravizadas e mutiladas.[1]

Enquanto nós, brasileiros, estávamos preocupados com a preparação da nossa seleção brasileira de futebol, que viria a ganhar a Copa de Mundo realizada naquele ano, a situação em Ruanda, em 1994, era de flagrante desumanidade, com pessoas sendo mortas, estupradas ou mutiladas, havendo incontestável violação aos direitos humanos.

Portanto, não estamos falando de uma história passada em séculos distantes, em condições que sequer conseguimos compreender ao certo por força da carência de registros históricos. Sob o ponto de vista histórico, estamos falando de ontem. E não se trata de um episódio isolado. Poderíamos falar das atrocidades que ensejaram a criação do Tribunal de Nuremberg, do Tribunal de Tóquio, do Tribunal da antiga Iugoslávia, do Tribunal de Serra Leoa ou daquelas violações a direitos humanos que são levadas a julgamento no Tribunal Penal Internacional.

Apenas para reforçar a importância do que estamos falando, não custa lembrar que o professor M. Cherif Bassiouni esclarece que, entre os anos de 1945 e 2008, ocorreram nada menos do que 313 conflitos que representaram graves violações aos direitos humanos, estimando-se que tenham sido mortas de 92 milhões a 101 milhões de pessoas (isso mesmo: de 92.000.000 a 101.000.000 de pessoas foram mortas), sem contar os estragos causados em um número incalculável de pessoas, as quais sofreram graves ofensas físicas, psicológicas e materiais.[2]

Nesse contexto, entendemos que deva ser dada a máxima importância ao estudo da chamada Justiça de Transição (que também pode ser chamada de Justiça Pós-Conflito, Estratégias de Combate à Impunidade, Consolidação da Paz ou Reconstrução Pós-Conflito) por uma questão simples: como esperar que países que sofrem esses tipos de violações aos direitos humanos estabilizem a sua situação e sigam a história normalmente, sem traumas ou problemas decorrentes das atrocidades ocorridas?

Portanto, a Justiça de Transição pode ser definida como sendo a implementação de medidas cuja necessidade decorre das graves violações a direitos humanos ocorridas em determinadas regiões, seja com a punição dos seus responsáveis, seja com a reparação dos prejuízos experimentados pelas vítimas, seja com a restauração e a manutenção da paz.

Em geral, as Faculdades de Direito dão pouca atenção ao tema. É possível compreender que o programa a ser desenvolvido junto aos alunos da graduação precisa ter um limite, até porque há uma carga horária a ser respeitada. Ao contrário do que acontece em outras áreas, no Brasil, não se pode esperar que o graduando de Direito tenha aulas durante todo o dia, o que certamente limita a extensão do programa que lhe é conferido. No nosso país, em razão das condições sociais e econômicas, sequer se pode esperar que alunos apenas dediquem o seu tempo ao estudo do Direito, sendo certo que grande parte dos estudantes fazem verdadeiros malabarismos para conciliar as suas atividades laborativas e os seus estudos. Tudo isso é compreensível.

Mas tais circunstâncias não nos impedem de lamentar a pouca atenção que é dada nas Faculdades de Direito a um tema tão relevante. Como esperar que os países que sofreram atrocidades, que tiveram milhares de mortos em curto espaço de tempo e que têm gerações de pessoas traumatizadas com as guerras, se recuperem de uma hora para outra? Como não conferir a atenção devida a um tema tão importante?

Apenas para despertar o interesse dos nossos leitores sobre o tema, já que, por motivo óbvio, este espaço não permite o seu desenvolvimento com a profundidade adequada, é preciso registrar que a Justiça de Transição pode ser dividida em três fases, cada qual com a sua importância, cada qual merecedora de um estudo cuidadoso.

A primeira fase da Justiça de Transição é marcada por um momento de cooperação entre os Estados e por um importante internacionalismo, o que começou a ocorrer após a Primeira Guerra Mundial, a qual pretendia colocar fim a todas as demais guerras, mas, em verdade, acabou se tornando uma grande catástrofe. Na verdade, essa fase ganhou verdadeira consistência após a Segunda Guerra Mundial, inclusive com a criação do Tribunal de Nuremberg e com a criação do Tribunal de Tóquio.

A segunda fase da Justiça de Transição caracterizou-se por uma onda de democratização, ocorrendo uma verdadeira disseminação do regime democrático, sendo certo que muitos países romperam com o autoritarismo. Houve um aumento significativo do número de nações que aderiram a regimes democráticos, o que, sem dúvida, favorece a adoção de medidas que buscam diminuir os efeitos nefastos decorrentes das graves violações aos direitos humanos.

A terceira fase da Justiça de Transição parte da premissa segundo a qual não se deve discutir se a comunidade internacional deve atuar nos casos de graves violações a direitos humanos. A questão passa a se referir à forma como a justiça deve ser feita, ou seja, são examinadas questões de ordem prática alusivas ao enfrentamento das situações nas quais ocorrem as graves violações aos direitos humanos. O nosso professor Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Marcela Siqueira Miguens, nesse sentido, enfatizam que a terceira fase da Justiça de Transição se caracteriza pela criação do Tribunal da antiga Iugoslávia, do Tribunal de Ruanda, do Tribunal de Serra Leoa e também pela criação do Tribunal Penal Internacional, a partir da ratificação do Estatuto de Roma.[3]

Portanto, o que se percebe com clareza é a importância do tema sob destaque, em especial porque diretamente relacionado às graves violações de direitos humanos. Entendemos que é fundamental dispensar maior atenção a essas questões, até para compreender a realidade existente em outros países.

É evidente que temos muitos problemas em nosso país, inclusive graves violações a direitos humanos, com relação às quais pouco se diz. É evidente que o estudante de Direito é instado a estudar muitas disciplinas durante a sua graduação e mesmo após, em seus estudos de pós-graduação. É evidente que quase ninguém tem tempo sobrando, sendo certo que muitas pessoas se desdobram para conciliar todas as suas tarefas.

Mas, na nossa opinião, é fundamental que as Faculdades de Direito e os seus alunos – verdadeiramente interessados em aprofundar os seus conhecimentos – dediquem um tempo relevante à Justiça de Transição. É preciso conhecer as graves violações aos direitos humanos que ocorreram e que ainda estão ocorrendo, neste momento, em vários locais do mundo, assim como é preciso compreender o tratamento que está sendo dado a essas atrocidades, em especial a forma como o Tribunal Penal Internacional tem julgado as questões que lhe são submetidas.

 

 

Notas e Referências

[1] PIOVESAN, Flávia. Ruanda e direitos humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_ruanda.html>. Acesso em: 05 jul. 2019.

[2] BASSIOUNI. M. Cherif. Introduction. In: The pursuit of international criminal justice: a world study on conflicts, victimization, and pos-conflict justice. Vol. 1. BASSIOUNI, Mahmoud Cherif. (ed.). Antwerp – Oxford – Porland: Intersentia, 2010, p. xiii.

[3] JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; MIGUENS, Marcela Siqueira. Justiça de transição: uma aplicação dos princípios de Chicago à realidade brasileira. Revista Eletrônica de Direito Penal. Ano 1, vol. 1, n° 1, 2013, p. 22.

 

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