Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
O Direito da Criança e do Adolescente passou por diversas fases, iniciando-se em uma cultura autoritária em relação aos adolescentes, pois eram vistos como delinquentes, por outro lado, foi um marco importante no que tange à necessidade de especificação dos juízes no primeiro Juizado de Menores. Até chegar na fase da Doutrina da Proteção Integral, que trouxe uma mudança de paradigmas, no qual vivemos até hoje, iniciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, em que as crianças e adolescentes passaram a serem vistas como sujeitos de direitos e não mais como objetos de providências.
Assim, percebe-se que a visão juridical-social que começou a nascer a partir do primeiro Juizado de Menores, trazendo a importância da existência da equipe técnica multidisciplinar para assessorar e assistir os casos da Vara da Criança e do Adolescente. No mesmo sentido, continuou o Código de Menores de 1979 que apenas fez pequenas modificações, sendo mantidas as funções das equipes técnicas.
Diante do crescimento das demandas coletivas e difusas que atacaram o Judiciário a partir do século XX, uma nova visão começou a nascer, a partir da necessidade de uma resolução de conflitos através da pacificação social. Outrossim, a desigualdade social e a desestruturação das famílias brasileiras proporcionou uma alta demanda de processos na Justiça da Criança e do Adolescente, ocasionando, cada vez mais, uma necessidade de especialização de toda equipe da Justiça da Criança e do Adolescente em razão da complexidade dos casos.
Nesse contexto, destaca-se que, paulatinamente, as áreas estudadas em torno da criança e do adolescente, como a educação, psicologia, pedagogia, direito, assistência social e entre outras, foram evoluindo de acordo com a sociedade e com o modo de viver de cada família e cada criança e adolescente. Dessa forma, o Direito da Criança e do Adolescente também foi percebendo a necessidade de se aproximar dessas outras áreas. Portanto, nota-se que, apesar de muito importante essa área do conhecimento, por si só, não resolve todas as questões e conflitos que chegam ao Judiciário, pelo contrário, se não houver a multidisciplinariedade dos conhecimentos poderá faltar a real resolução de conflitos, o que poderá acarretar em mais processos e mais famílias repetindo os padrões transgeracionais, não tendo suas questões solucionadas na raiz do problema.
Nesse sentido, reflete-se: afinal, para o quê serve o Direito da Criança e do Adolescente? Em suma, pensa-se que, em essência, o Direito da Criança e do Adolescente serve para proteger as crianças e adolescentes de negligências, violências e abusos sempre que estiverem sendo desrespeitadas e violadas em seu ser. Entretanto, isso não é uma tarefa simples porque, muitas vezes, quem negligencia, violenta e abusa é a própria família e por isso, quando se trata de criança e adolescente deve ser enxergado o que há por trás de todo um sistema familiar. Dessa forma, quando os conflitos geram processos e procedimentos na Vara da Criança e do Adolescente se chega ao ápice, as crianças gritam por socorro. Contudo, para proteger e auxiliar as crianças e adolescentes, é preciso enxergar os conflitos de um olhar mais profundo, pois, geralmente, eles começam na base da família.
Os conflitos que chegam à Vara da Criança e do Adolescente, segundo VALENTE (2007) podem ser consideradas de famílias com problemas situacionais ou com problemas transgeracionais. Seguindo essa definição, famílias com problemas situacionais são aquelas quando a criança é retirada da família por violência cometida por seus membros, porém no conhecimento da problemática se percebe problemas pertinentes ao seu período de vida, podendo ser momentâneo, tais como: dificuldade de adaptação e cuidado com a prole, imaturidade dos pais, desemprego, entre outros. São famílias que possuem histórias, muitas vezes, positivas de relacionamento passado, mas que se encontram em situação de afrouxamento da rede pessoal e de serviços. Quanto às famílias com padrões transgeracionais são caracterizadas por diversas modalidades de violência e apresentada características específicas em cada uma delas. A fragilidade nas relações interpessoais, a inexistência de uma rede de apoio e relações, problemas de ordem psíquica, relações violentas reproduzidas, drogadição, pactos, entre outros, repercutem situações problemas de âmbito maior e exigem trambém uma atenção ampliada envolvendo toda a rede de proteção. Dessa forma, a atenção continuada a essas famílias pode ser determinante, pois é através de vários atendimentos, orientações, apoios, escuta, encaminhamentos, parcerias que ocorre a formação de um vínculo entre seus membros e a equipe ténica.
Além disso, se acredita que a solução para os conflitos pode ser encontrada a partir do olhar para a raiz dos problemas e não apenas para a “ponta do iceberg”, para o que está na superfície. Entretanto, raras as vezes esses conflitos que chegam no Judiciário são olhados na causa desde o início porque muitas vezes essas equipes, como o Conselho Tutelar e CRAS (Centro Referencial da Assistência Social de Média Complexidade), não são preparados para isso, falta especialização e treinamento. Por isso, percebe-se a importância de uma equipe multidisciplinar preparada e em contínua capacitação para que possa acompanhar todo o processo, todo o conflito que vem acontecendo e poder auxiliar o Magistado no embasamento de sua decisão para que seja voltada ao melhor interesse da criança e do adolescente.
Acrescenta-se, ainda, que quando se trata de questões relacionadas aos padrões transgeracionais, importante trazer luz através da neurociência e das constelações familiares, temas que merecem destaque e aprofundamento, pois não há como falar em cuidar das crianças e adolescentes sem se atentar para as suas famílias. Para que as crianças e adolescentes possam voltar para casa, é necessário que hajam transformações dentro do sistema familiar, isto é, que o comportamento padrões situacionais ou transgeracionais dessa família mude, e é nesse momento que se nota a importância de começar a se abrir para essas outras alternativas que vem sendo estudadas e experienciadas.
Outras vezes, sabe-se que essa criança ou adolescente não poderá voltar para a família na qual foi desrespeitada, dependendo da violência perpretada, mas poderá, em primeira instância, caso seja possível, ser colocada em família extensa ou, por última análise, em uma família substituta, mas para que isso seja analisado da melhor forma é necessário o acompanhamento dessa equipe multidisciplinar.
Nesse sentido, conforme VERONESE (2020) uma equipe multidisciplinar ou interprofissional (Lei n. 8.069/1990) é composta por profissionais de diversas áreas ligados aos saberes da criança e dos adolescentes, tais como, psicólogo, pedagogo, assistente social e entre outros. Essa equipe busca analisar o caso concreto de cada processo da Vara da Criança e do Adolescente de forma específica, sempre focando no melhor interesse da criança e do adolescente, unindo assim as informações, a fim de que haja uma completude em prol de um resultado.
Inicialmente, os técnicos desse grupo interdisciplinar eram voltados apenas a pedagogos, psiquiatras e psicólogos, entretanto, atualmente, tem se avançado cada vez mais em outras áreas, em busca de ampliação e novas respostas como, por exemplo, sociólogos, antropólogos e neurocientistas. Segundo VERONESE (2020), é o caso de quando os processos envolvem patrimônio genético e discussões da vida.
Ademais, outro aspecto importante a ser destacado é a especialização dos profissionais que compõe a equipe técnica, conforme as Regras de Beijing, é indispensável o treinamento e a reciclagem, conforme a regra 22[1]. E, para isso, é necessário um plano orçamentário por conta do Poder Judiciário. Nesse sentido, conforme confere o art. 150[2], do ECA e a Recomendação nº 02 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a competência é do Poder Judiciário em prever recursos para manutenção de equipe interdisciplinar na elaboração da proposta orçamentária. Ainda, o Provimento 36 do CNJ determina a instalação de varas de competência exclusiva em matéria da infância e juventude nas Comarcas e Foros Regionais que atendem mais de 100.000 habitantes, além das equipes multidisciplinares com, ao menos, psicólogo, pedagogo e assistente social.
Com a Lei n. 8.069/1990, em seu art. 19, §1º[3] e §6º[4], bem como o art. 46, §4º[5], é reafirmada a importância da equipe multidisciplinar bem como estabelecido suas funções de proteger os direitos e valores das crianças e adolescentes, tanto sua integridade física quanto moral, devendo o comprometimento ser o cuidado com as crianças e adolescentes. Nessa base, VERONESE (2020, grifo nosso) ensina que a equipe:
[…] detém o condão colaborativo de fazer com que, crianças e adolescentes sejam reconhecidos como cidadãos, sujeitos de direito e, por usufruírem da condição de estar em situação peculiar de desenvolvimento, seja este, físico, mental, espiritual, moral e social, o Estado e toda a Sociedade, precisam criar mecanismos favoráveis de proteção desse status quo, para o qual a equipe interdisciplinar detém múnus de importância fundamental.
Além do mais, verifica-se que através da opinião técnica oferecida pela equipe, o juiz tem a possibilidade de fortalecer sua decisão e fundamentá-la, se utilizando dos conhecimentos técnicos apropriados para cada caso concreto. Conhecimentos, os quais, se complementam em prol do bem-estar da criança e do adolescente. Entretanto, o juiz não está sujeito ao laudo, conforme o art. 479, do Código de Processo Civil e art. 182, do Código de Processo Penal, regras que decorrem do princípio do livre convencimento da autoridade judiciária. De acordo com VERONESE (2020), os laudos e pareceres técnicos possuem o objetivo de auxiliar o juiz para a construção de uma sentença justa.
As responsabilidades, funções e lugares de atuação da equipe multidisciplinar em geral nas Varas da Criança e do Adolescente são em procedimentos de: (a) perda e suspensão do poder familiar (ECA, 1990, art. 161, §1º[6]), a fim de descrever as condições em que as crianças estão submetidas, mas sempre lembrando que a falta ou carência recursos materiais não constitui motivos suficientes para a perda ou suspensão do poder familiar, conforme o art. 23, do ECA; (b) colocação em família substituta (ECA, 1990, art. 167[7]): haverá uma determinação judicial para realização de estudo social ou perícia interprofissional para decidir sobre a concessão da guarda provisória, assim como casos de adoção e estágio de convivência; (c) apuração de ato infracional (ECA, 1990, art. 112): a equipe terá a função de emitir parecer quanto à medida socioeducativa do adolescente em conflito com a lei, devendo levar em consideração o ato infracional, a personalidade e as circunstâncias familiares, sociais e culturais do adolescente; (d) dar subsídios para a decisão do Magistrado, além do aconselhamento e encaminhamento de famílias em processo de pré, durante e pós adoção e também para as famílias acolhedoras.
Portanto, percebe-se o Direito da Criança e do Adolescente vai muito além do que a letra da lei, é uma área sensível aos olhos de quem vê, de quem lê e de quem toca. Por essas razões, a equipe multidisciplinar deve ser composta por profissionais de diversas áreas e formações, havendo a necessidade de investimento em capacitações contínuas como prioridade, pois suas funções e responsabilidades também são diversas, mas devendo ser pensadas sempre em prol do melhor interesse da criança e do adolescente. Contudo, para que isso aconteça na prática é necessário ampliar o treinamento da escuta ativa, tanto dos próprios profissionais entre eles quanto na escuta das crianças, adolescentes e das famílias destas. Nesse sentido, como afirma VERONESE (2020, p. 739), “caso contrário, tudo se perde, o que é absolutamente um desastre no sistema de justiça: perde-se a criança, o adolescente.
Notas e referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 jan. 2023.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 29 jan. 2023.
CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n. 2. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/854. Acesso em: 29 jan. 2023.
NAÇÕES UNIDAS. Regras de Beijing das Nações para a administração da justiça, da infância e da juventude. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/lex47.htm. Acesso em: 29 jan. 2023.
PROVIMENTO Nº 36. Dispõe sobre a estrutura e procedimento das Varas da Infância e Juventude. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/provimento/provimento_36_05052014_07052014134459.pdf. Acesso em: 29 jan. 2023.
VALENTE, Jane. Uma reflexão sobre o acolhimento familiar no Brasil. Revista serviço social e sociedade n. 92, Editora Cortez, São Paulo. 2007.
VERONESE, Josiane Rose Petry (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente - 30 anos: grandes temas, grandes desafios. In: Desafios da equipe multidisciplinar da justiça da criança e do adolescente. Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 727-740.
[1] 22.1 Serão utilizados a educação profissional, o treinamento em serviço, a reciclagem e outros meios apropriados de instrução para estabelecer e manter a necessária competência profissional de todo o pessoal que se ocupa dos casos de jovens.
[2] Art. 150. Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.
[3] Art. 19, § 1 o Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 3 (três) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou pela colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017)
[4] Art. 19, § 6 o A mãe adolescente será assistida por equipe especializada multidisciplinar. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
[5] Art. 46, § 4 o O estágio de convivência será acompanhado pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
[6] Art. 161, § 1º A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério Público, determinará a oitiva de testemunhas que comprovem a presença de uma das causas de suspensão ou destituição do poder familiar previstas nos arts. 1.637 e 1.638 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) ou no art. 24 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017)
[7] Art. 167. A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério Público, determinará a realização de estudo social ou, se possível, perícia por equipe interprofissional, decidindo sobre a concessão de guarda provisória, bem como, no caso de adoção, sobre o estágio de convivência.
Imagem Ilustrativa do Post: The Marathon // Foto de: Sergio Boscaino // Sem alterações
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