A IMPETRAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA E A LITISPENDÊNCIA COM OUTRAS AÇÕES

24/03/2024

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

Vários assuntos estão interligados ao objeto deste ensaio, como os elementos da ação, os conceitos de litispendência e coisa julgada, a necessidade de extinção do processo idêntico em tramitação ou já estabilizado em definitivo e a eventual identidade jurídica entre o mandado de segurança e outra demanda judicial.

Aliás, tema dos mais interessantes em Teoria Geral do Processo e que se estende ao Direito Processual é o relativo ao conceito e aos aspectos práticos ligados à litispendência e coisa julgada.

Quanto ao ponto, inicialmente é necessário analisar os critérios de comparação entre várias ações (inclusive com procedimentos diferentes) que podem configurar litispendência ou coisa julgada e as soluções para os problemas ligados à verificação de qual é a repetida para fins de aplicação do disposto nos arts 337, §§1º, 2º e 3º c/c  485, V, do CPC.

A palavra litispendência pode ter, no mínimo, dois significados, o que muitas vezes não é percebido pelo intérprete. O primeiro está ligado a própria existência de lide (lide pendente) e, o outro, no quadro comparativo entre duas ou mais ações, como pressuposto processual negativo, gerando a extinção do processo repetido, além de eventual apuração da conduta do advogado.

Visando atender ao objeto aqui pretendido, e análise da possibilidade de litispendência entre ações com procedimentos diferentes (como é o caso do mandado de segurança e outra com procedimento comum), é mister enfrentar o segundo conceito (comparação entre duas ações).

O legislador processual civil consagra a identidade entre duas ou mais ações quando possuem as mesmas partes, pedido e causa de pedir (art. 337, §§1º e 2º) – os três elementos da ação.

Assim, ocorre a litispendência ocorre quando há a tramitação de duas ações idênticas, tanto no aspecto subjetivo, quanto no objetivo, ocasionando a extinção da repetida. Como consta na passagem da Ementa do Acórdão da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça: “Nos termos do art. art. 337, §§ 1º e 3º, do CPC/2015, a existência de ação anterior com as mesmas partes, causa de pedir e pedido, induz a litispendência, impondo-se, neste caso, a extinção do feito sem resolução de mérito (art. 485, V, do CPC/2015)” (AgInt no MS 28795/DF – Rel. Min. Benedito Gonçalves – J. 03.10.2023, DJe 05/10/2023).

Contudo, a conceituação legislativa deve ser interpretada com parcimônia. Não é necessário o absoluto rigor no quadro comparativo entre duas ações para se afirmar se há ou não litispendência, tendo em vista que, às vezes, a diversidade dos elementos da ação é apenas aparente – estando presente o pressuposto processual negativo em razão da existência do mesmo objeto litigioso ou mesma identidade jurídica, devendo ser extinto o segundo feito (art. 485, V, do CPC).

Portanto, a configuração da litispendência deve levar em conta o elemento objetivo (mesmo objeto litigioso/identidade jurídica) e não necessariamente a interpretação estática da causa de pedir (remota e próxima) e do pedido (imediato e mediato). Se as demandas possuírem a mesma questão – mesma identidade jurídica/mesmo objetivo pretendido, há de se decretar a litispendência, mesmo que possuam procedimentos, competência ou denominações diferentes.

Aliás, vale citar a seguinte passagem da Ementa de Acórdão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, com indicação de vários outros julgados da Corte:

“No ponto, a questão é adequada à teoria dos tres eadem (mesmas partes, causa de pedir e pedido) pois a coisa julgada, assim como a litispendência, ocorre à vista do mesmo resultado prático pretendido, ainda que por meios processuais diversos. Neste sentido: AgInt no MS 23.245/DF, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/04/2018, DJe 19/04/2018; MS 19.095/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/05/2015, DJe 02/06/2015; AgRg no MS 20.548/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2015, DJe 18/06/2015; MS 19.095/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/05/2015, DJe 02/06/2015”.(AgInt no MS n. 24.832/DF, relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 23/10/2019, DJe de 28/10/2019.)

Neste contexto, apesar da redação do art. 337, §§1º e 2º, do CPC, indicar que apenas induz litispendência quando houver a identidade máxima entre partes, pedido e causa de pedir, é dever ressaltar que este pressuposto processual negativo poderá estar presente quando houver o mesmo elemento objetivo, a mesma questão (thema decidendum), a mesma identidade jurídica e objetivo pretendido nas demandas que tramitam simultaneamente, independentemente da denominação dada à ação pelo autor, da competência e do procedimento.

Portanto, duas ou mais demandas tramitando simultaneamente contendo as mesmas partes (elemento subjetivo), com procedimentos e denominações aparentemente diversas, podem induzir litispendência, mesmo sem a máxima identidade nos elementos objetivos (causa de pedir e pedido).

Adentrando no tema central deste ensaio, é mister indagar: será possível, por exemplo, a ocorrência de litispendência (ou mesmo de coisa julgada – art. 337, §§1º e 2º, do CPC) entre o mandado de segurança (procedimento especial previsto na Lei 12.016/09) impetrado junto a uma Corte do Sistema de Justiça em razão da competência fixada pela Autoridade Coatora, e uma ação de conhecimento com procedimento comum em tramitação no 1º Grau, proposta em face da Pessoa Jurídica de Direito Público?

Em sendo realizada análise simples e restrita, a resposta poderia ser negativa, tendo em vista que possuem causa de pedir ou pedido com alguma diferenciação, além das questões ligadas à competência jurisdicional diferente e a posição da Autoridade Coatora no mandamus (se é parte ou interveniente - assunto que aqui não será tratado).

Contudo, o estudo comparativo deve ser feito de forma dinâmica e não estática, eis que é possível a ocorrência da litispendência, mesmo quando se tratar de demandas com procedimentos e competências diferentes.

Vejamos uma situação: impetração de Mandado de Segurança no Superior Tribunal de Justiça em face de ato praticado pela Autoridade Coatora Ministro de Estado (art. 105, I, i,  da CF/88) e, em seguida, a propositura de ação de conhecimento com procedimento comum em face da União, em Vara da Justiça Federal, com o mesmo objetivo pretendido no writ. Os procedimentos e a competência jurisdicional são diferentes, mas é possível a identificação da litispendência com a extinção do segundo processo.

Este assunto não é novo em sede jurisprudencial. Vale citar passagens de acórdãos prolatados em recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

A jurisprudência do STJ orienta-se no sentido de que "o fenômeno da litispendência se caracteriza quando há identidade jurídica, ou seja, quando as ações intentadas objetivam, ao final, o mesmo resultado, ainda que o polo passivo seja constituído de pessoas distintas; em um pedido mandamental, a autoridade administrativa, e, no outro, a própria entidade de Direito Público.' (AgRg no MS 18.759/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, DJe 10/5/2016). Nesse sentido: MS 21.734/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, DJe 9/12/2016 (...) Uma vez reconhecida a litispendência, deve ser extinto o presente writ". AgInt nos EDcl no MS 15782 / DF - 1a Seção / STJ - Rel. Min. Assusete Magalhães - J. 19/09/2023.

“6. De notar que, conforme asseverado pela embargante, o objeto do presente writ, ajuizado no STJ em 21.5.2021 (ou seja, quando a impetrante já tinha tomado conhecimento da sentença de improcedência na Justiça Federal do DF) coincide integralmente com o da Ação Ordinária. A única diferença, irrelevante no contexto acima descrito, é que o polo passivo, neste feito, por imposição legal, é a autoridade que dirige o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, órgão integrado na estrutura do Poder Executivo Federal, enquanto que na Ação Ordinária o polo passivo é ocupado, evidentemente, pela pessoa jurídica de Direito Público (União). Configurada, portanto, a tramitação de demandas que perseguem idêntico resultado. 7. Embargos de Declaração acolhidos, com atribuição de efeitos infringentes, para denegar a Segurança, nos termos do art. 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009”. EDcl no AgInt nos EDcl no MS n. 27.747/DF, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 22/3/2023, DJe de 04/04/2023.

Portanto, a litispendência estará configurada independentemente do procedimento de cada uma das ações em curso, desde esteja presente o mesmo thema decidendum, sendo possível a sua configuração acaso proposta ação de conhecimento com procedimento comum e mandado de segurança, com o mesmo elemento objetivo e mesma tutela jurisdicional.

É possível aduzir, neste contexto, que o art. 337, §§1º e 2º, do CPC é insuficiente para solucionar todos os problemas práticos que o conceito pode provocar ao intérprete, especialmente nos casos envolvendo o procedimento especial do Mandado de Segurança em que a competência é dada pela presença da Autoridade Coatora. De toda sorte, como bem ressaltou a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, “verificado que a providência requerida na ação mandamental e aquela pleiteada em anterior ação ordinária convergem, ao final, para o mesmo resultado prático pretendido e sob a mesma causa petendi, há pressuposto processual negativo apto a obstar o regular processamento deste segundo feito” (RMS 68337 – 1ª T/STJ – Rel. Min. Sérgio Kukina – J. 26/09/2023 - DJe 02/10/2023).

Não se pode olvidar que no quadro comparativo entre ações, a litispendência e a coisa julgada geram a extinção do processo repetido, ao passo que a conexão e a continência, em regra, a reunião (arts. 54 e 55 CPC). Outrossim, o estudioso deve ter cautela ao comparar duas ou mais ações que aparentemente possuem elementos em comum para, com isso, estabelecer a solução a ser dada (reunião ou extinção do processo repetido).

E no caso específico do mandado de segurança, trata-se de ação constitucional não obrigatória que tende a ser objeto de escolha pelo autor. O que é vedado, portanto, é impetrar Mandado de Segurança que tem procedimento especial consagrado na Lei 12.016/09 e,  simultaneamente, promover ação de conhecimento com procedimento comum contra o Ente Público (ou vice-versa), contendo identidade jurídica e objetivo prático idênticos. A utilização de meios processuais aparentemente diferentes pode induzir litispendência, além de configurar litigância de má-fé (arts. 80 e 81, do CPC).

São estas as considerações sobre o tema.

 

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