Em sua obra “A Construção do Idiota: o processo de idiossubjetivação”[1], o jurista e pensador crítico RUBENS CASARA traça a diferença entre “’idiotice”, “ignorância” e “burrice”. Segundo o autor
A “idiotice” é a postura, por excelência, do sujeito neoliberal que atua egoisticamente a partir de cálculos de interesse que visam exclusivamente o lucro ou a obtenção de alguma vantagem pessoal. Nada inegociável interessa ao sujeito idiota. A “ignorância”, por sua vez, apresenta-se como um fenômeno tendencialmente provisório, ligado ao desconhecimento em relação a um assunto ou a um conjunto de assuntos. Por fim, a “burrice” é um fenômeno cognitivo, ético e político relacionado ao fechamento (voluntário ou não) em relação ao outro do conhecimento ou da diferença.[2]
No chamado “processo de idiossubjetivação”, ao que se refere CASARA, não se pode desprezar o avanço punitivista que se dá através do autoritarismo e do populismo penal.
Referindo-se ao “autoritarismo e populismo penal”, CASARA aponta a dupla “ignorância” e “egoísmo” para, também, explicar a naturalização das campanhas da “lei e ordem” (law and order),
movimento de política criminal que defende o aumento da repressão e a intolerância com os desvios sociais como resposta aos mais variados problemas sociais e conflitos (inclusive os mais insignificantes), e o “populismo penal”, a manipulação política dos sentimentos de medo e de insegurança a partir do fenômeno criminal como aumento de penas, a instrumentalização do Direito Penal, a relativização da formas processuais (nas democracias, as formas e as “regras do jogo” processuais são garantias contra a opressão) e a redução dos direitos e garantias fundamentais.
No Brasil, as últimas décadas foram marcadas por uma verdadeira “inflação legislativa”. A nomorréia penal (Carrara) se deve à uma série de fatores, que vão desde o forte apelo popular, passando pela influência midiática e até a demagogia dos legisladores. Lamentavelmente, o chamado “populismo penal” vem dominando a política-criminal atual. As leis penais no Brasil são elaboradas sem qualquer verificação prévia e empírica de seus verdadeiros impactos sociais e econômicos.
A cultura punitiva embalada pelo populismo penal, espécie de mantra de inúmeros políticos de “direita” e de “esquerda” - tanto do executivo como do legislativo - que se utilizam do discurso oco da impunidade e da propagação do medo, se traduz no uso abusivo e sistemático da pena privativa de liberdade que tem levado ao encarceramento em massa, notadamente, dos mais vulneráveis (jovens negros, pobres, de baixa escolaridade e residentes das periferias e das favelas).
Aproveitando-se do medo gerado pela violência e pela criminalidade, amplificado pela mídia, o legislador brasileiro utiliza-o como verdadeira arma política para seduzir os eleitores.
O medo fomentado pela mídia, na maioria das vezes, está relacionado aos crimes praticados com violência[3], contra a vida, contra o patrimônio (vis fisica ou vis compulsiva) e os crimes sexuais (contra a dignidade e a liberdade sexual), além dos crimes de “tráfico de drogas”, geralmente, associados, pelos meios de comunicação de massa, as “organizações criminosas”. Como bem observa EUGENIO RAÙL ZAFFARONI, “os meios de comunicação de massa são os grandes criadores da ilusão dos sistemas penais” e que desencadeiam as campanhas de “lei e ordem”.[4]
De acordo com CASARA,
A ignorância aumenta o medo ligado ao desconhecido e, assim, instaura uma espécie de fervor punitivo que se acredita útil à redução da insegurança gerada por esse quadro. A racionalidade neoliberal fomenta esse medo, que também se transforma em uma oportunidade de negócios. A segurança torna-se uma mercadoria a ser explorada tanto por particulares como por governantes e, ao mesmo tempo, um dos principais temas políticos da sociedade.[5]
Diante deste contexto, o medo da violência e da criminalidade, fomentado e amplificado pela mídia, faz com que a política criminal se volte para medidas populistas que ganham cada vez mais espaço na sociedade e que, evidentemente, são utilizadas de forma leviana pelos políticos, para gozo dos seus eleitores.
Leis draconianas, fruto da sanha punitivista, que extinguem direitos e garantias fundamentais, que criminalizam o agente (direito penal do autor) e que elevam penas a patamares estratosféricos – como se o direito penal fosse a panaceia de todos os males da sociedade - em nada, absolutamente em nada, contribuem para o enfrentamento da violência.
Por tudo, é necessário repudiar a “idiotice”, a “ignorância” e a “burrice” que através do “processo de idiossubjetivação” alavancam o punitivismo penal.
Notas e referências:
[1] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024.
[2] Idem, p. 24-25.
[3] GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 138.
[4] ZAFFARONI, Eugênio Raul Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 128.
[5] CASARA... Op. cit. p. 114.
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