A HORA DE AGIR, POR THOMAS PIKETTY    

18/10/2021

Conforme amplamente noticiado pela imprensa do mundo todo, vieram à tona as revelações dos “Pandora Papers”, resultantes de um novo vazamento de 12 milhões de documentos de finanças offshore; antes, tínhamos já conhecimento dos “LuxLeaks” em 2014, os “Panama Papers” em 2016 e os “Paradise Papers” em 2017, mostrando ao mundo quanto os mais ricos continuam a sonegar impostos.

Comentando este último escândalo mundial, Thomas Piketty, Diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Ecole d'économie de Paris, afirma que, “ao contrário do que se imagina, a situação não melhorou nos últimos dez anos e o site “ProPublica” havia revelado que os bilionários americanos quase não pagavam impostos em comparação com seu enriquecimento e com o que paga o resto da população.[1]

Segundo ele, as primeiras 500 fortunas francesas saltaram de 210 bilhões de euros, para mais de 730 bilhões, entre 2010 e 2020, e tudo indica que os impostos pagos por essas grandes fortunas (informações afinal bastante simples mas que o poder público ainda recusa publicar) têm sido extremamente baixos. Devemos simplesmente esperar pelos próximos vazamentos, ou não é hora de a mídia e os cidadãos formularem uma plataforma de ação e pressionarem os governos a resolver o problema de forma sistemática?”

Para o economista francês “o problema básico é que continuamos, no início do século XXI, a registrar e a tributar os bens apenas com base nas propriedades imobiliárias, utilizando os métodos e cadastros estabelecidos no início do século XIX. Se não criarmos os meios para mudar este estado de coisas, os escândalos vão continuar, com o risco de uma lenta desintegração do nosso pacto social e fiscal e a inexorável ascensão do cada um por si.”

Para ele, “o importante é que o registro e a tributação das propriedades sempre estiveram intimamente ligados. Em primeiro lugar, porque o registro da propriedade dá ao proprietário uma vantagem (a de se beneficiar da proteção do sistema jurídico) e, em segundo lugar, porque apenas um imposto mínimo pode tornar o registro verdadeiramente obrigatório e sistemático. Acrescentemos que a posse de um patrimônio é também um indicador da capacidade contributiva das pessoas, o que explica porque a tributação do patrimônio sempre desempenhou um papel central nos sistemas fiscais modernos, em complemento à tributação que pesa sobre os fluxos de rendas (fluxo que às vezes pode ser manipulado para baixo, em particular para ativos muito elevados, como demonstrou ProPublica).”

Lembrando a Revolução Francesa, o pensador francês afirma que “ao estabelecer um cadastro centralizado para todos os imóveis, tanto para habitação como para bens profissionais (terrenos agrícolas, lojas, fábricas, etc.), a Revolução Francesa instituiu no mesmo gesto um sistema tributário sobre as transações (direitos de transmissão ainda hoje em vigor) e, acima de tudo, sobre a propriedade (com imposto sobre a propriedade).”

Aliás, ainda segundo ele, “na França, como nos Estados Unidos e em quase todos os países ricos, o imposto sobre a propriedade, ou seu equivalente anglo-saxão, a property tax, continua a representar o principal imposto sobre o patrimônio (cerca de 2% do PIB, aproximadamente 40 bilhões de euros de receitas anuais na França). Por outro lado, a ausência de tal sistema de registro e tributação de bens imóveis e propriedades profissionais explica, em muitos países do Sul, a hipertrofia do setor informal e as dificuldades subsequentes na implementação da tributação das rendas.”

Segundo Piketty, “o problema é que esse sistema de registro e tributação de ativos praticamente não mudou em dois séculos, enquanto os ativos financeiros assumiram uma importância preponderante. O resultado é um sistema extremamente injusto e desigual. Se você possui uma casa ou propriedade profissional no valor de 300.000 euros, e se você está endividado em 290.000 euros, então você pagará o mesmo imposto sobre a propriedade que uma pessoa que herdou bem equivalente e possui, além disso, uma carteira financeira de 3 milhões euros. Nenhum princípio, nenhum raciocínio econômico pode justificar um sistema tributário tão violentamente regressivo (os pequenos patrimônios pagam de fato uma taxa efetiva estruturalmente superior àquela dos mais elevados), além do fato de se partir do princípio que seria impossível registrar ativos financeiros. Ora, não se trata de impossibilidade técnica, mas de escolha política: optamos por privatizar o registro de títulos financeiros (junto a depositários centrais de direito privado, como Clearstream ou Eurostream) e, em seguida, estabelecer a livre circulação de capitais garantida pelos Estados, sem qualquer coordenação fiscal prévia.”

Para ele, “a prioridade deveria ser o estabelecimento de um cadastro financeiro público e a tributação mínima de todos os patrimônios, nem que seja para produzir informações objetivas sobre eles. Cada país pode mover-se imediatamente nesta direção, exigindo que todas as empresas detentoras ou operando bens em seu território divulguem a identidade de seus titulares e os tributem de modo transparente e da mesma forma que os contribuintes comuns. Nem mais nem menos. Ao renunciar a qualquer ambição em termos de soberania fiscal e justiça social, não fazemos senão encorajar o separatismo dos mais ricos. Está mais do que na hora de agir. Os ´Pandora Papers` também lembram que os mais ricos conseguem evitar os impostos sobre seus imóveis, transformando-os em títulos financeiros domiciliados offshore, “como mostra o caso casal Blair e de sua casa de 7 milhões de euros em Londres (400.000 euros de direitos de mutação evitados) ou de vilas na Côte d'Azur controladas por meio de empresas de fachada pelo primeiro-ministro checo Andrej Babis.”[2]

As ideias de Piketty já foram muito bem expostas em seus livros, especialmente o seu “Capital e Ideologia”, quando ele apresenta “uma história fundamentada dos regimes desigualitários, desde as antigas sociedades trifuncionais e escravocratas até as sociedades hipercapitalistas e pós-coloniais modernas.”[3]

O economista francês, formado pela London School of Economics, de uma maneira impressionantemente clara, precisa, profunda e com base em dados empíricos e históricos, demonstra “os consideráveis perigos provocados pelo aumento da desigualdade socioeconômica observado desde os anos 1980-1990”, especialmente em razão de que “a coalização social-democrata e o sistema esquerda-direita que, em meados do século XX, haviam possibilitado a redução da desigualdade, desintegraram-se pouco a pouco, por não terem sido capaz de uma suficiente renovação, num contexto marcado pela internacionalização do comércio e pela terceirização educacional.”

Citando expressamente, dentre outros, o caso brasileiro, ele observa atentamente que “essa desigualdade gera tensões sociais crescentes, alimentando o crescimento das clivagens identitárias e nacionalistas observadas hoje em quase todas as regiões do mundo.” Aliás, o Brasil merece um tópico específico no livro: “A politização inacabada da desigualdade no Brasil”, onde ele identifica, “ao longo do período entre 1989 e 2018, a formação de um sistema partidário específico de tipo classista, apresentando desafios ainda maiores em termos de redistribuição e de influências cruzadas com os outros partidos do mundo”, sem esquecer (o que é um mérito) que fomos “o último país do espaço euro-atlântico a abolir a escravidão, em 1888, e em termos gerais, que o país continua a ser um dos mais desiguais do planeta.”

Sobre o presidente da República, reconhece “que ele não esconde sua simpatia pela ditadura militar e sua preferência pela ordem social, pelo respeito à propriedade e pelas políticas duras de segurança pública”, comparando-o a Donald Trump, quando “também se fundamenta na exploração das diferenças raciais e da nostalgia da ordem do homem branco, num país onde os ´brancos` oficialmente deixaram de ser maioria”, concluindo que “no Brasil, como na Europa e nos Estados Unidos, é impossível reduzir a desigualdade, como seria desejável, sem modificar também o regime político, institucional e eleitoral.”[4]

Na Quarta Parte do livro, no Capítulo 17, Piketty, fundamentado fortemente na experiência histórica, conclui ser “possível erradicar o sistema capitalista atual e traçar os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, ou seja, uma nova perspectiva igualitária universal baseada na propriedade social, na educação e no compartilhamento de conhecimentos e poderes.”

Para isso, ele estabeleceu determinados “elementos” que permitiriam uma ruptura com este sistema capitalista desigual, injusto, perverso, elitista e, sobretudo, gerador de crises sociais absurdas. Afinal, conforme Beluzzo e Galípolo, “em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos, manifestando-se esta exclusão no desemprego dos jovens, no desemprego estrutural promovido pela transformação tecnológica e pela migração da manufatura para as regiões de baixos salários.”[5]

O primeiro “elemento” indicado pelo autor francês seria o que ele chama de “propriedade justa”, a ser atingida a partir do “desenvolvimento de novas formas de propriedade social, de divisão dos direitos de voto e de participação na tomada de decisão nas empresas, substituindo-se a noção de propriedade privada permanente pela de propriedade temporária, por meio de um imposto fortemente progressivo sobre as grandes fortunas, permitindo-se financiar uma dotação universal em capital e assim organizar a permanente circulação dos bens e da riqueza.”[6]

Picketty considera como um dos pilares para um novo socialismo participativo e erradicante do capitalismo selvagem, o imposto progressivo sobre a renda e a renda básica, “a fim de evitar que uma concentração desmedida da propriedade volte a se reconstituir”, defendendo “impostos progressivos sobre a herança e a renda, para que cumpram no futuro o papel que tiveram ao longo do século XX, com alíquotas atingindo ou ultrapassando 70%-90% no topo da hierarquia dos patrimônios e das rendas durante décadas (em especial nos Estados Unidos e no Reino Unido), décadas que, olhando hoje em retrospectiva, parecem os períodos de maior crescimento jamais observado na história.”[7]

Evidentemente, e segundo ele próprio adverte, apenas estes dois impostos (sobre a herança e a renda) não bastam, devendo “ser complementados com um imposto progressivo anual sobre a propriedade, a ser considerado como ferramenta central para que se possa assegurar uma verdadeira circulação do capital.” Eis, então, o tríptico pikettyano do imposto progressivo: propriedade, herança e renda!

E o que se vê no Brasil, desde uma lógica neoliberal concebida a partir de uma visão canalha da economia e do mercado? Tenta-se rigorosamente o contrário: ressuscitar com uma justificativa falsa (substituir os tributos cobrados sobre a folha de pagamento das empresas) a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira, conhecida como CPMF, tributo que incidiu sobre quase todas as movimentações bancárias e que vigorou no Brasil por 11 anos, sendo extinta apenas em 2007.

Como se sabe, a ideia gestada no gabinete do ministro da Economia é criar um imposto sobre transações digitais, ainda que se saiba que tributos sobre transações financeiras são um dos fatores mais prejudiciais para o crescimento da economia, pois, além de ser nitidamente cumulativo (exigido a cada transação e em quase todos os elos da cadeia produtiva), é indireto e regressivo (cobrado a partir de uma relação inversa com os rendimentos do contribuinte), onerando, em razão disso, as pessoas com menor poder aquisitivo.

Um outro caminho apontado por Piketty é a justiça educacional, abandonando-se o que ele chama de “hipocrisia educacional”, o que exige a promoção de “uma substancial transparência em termos de alocação de recursos”, tendo em vista que, atualmente, “na maioria do países, os procedimentos para regular os gastos com educação são relativamente opacos e não permitem uma apropriação coletiva dos cidadãos.”

Como ele nota, sempre a partir de dados historicamente comprovados – e isso caracteriza toda a obra de Piketty, o que a torna, sob este aspecto também, absolutamente confiável -, “em algumas situações, a remuneração média dos professores aumenta à medida que o estabelecimento recebe mais alunos socialmente favorecidos.” Ademais, para agravar a questão da desigualdade educacional, especialmente nos países periféricos (mas não apenas), “em outras situações, o investimento público em educação é quatro vezes mais elevado para certos grupos (por acaso também os mais privilegiados) do que para outros de uma mesma geração.”[8]

E, o pior: “tudo isso é feito com a consciência limpa, sem que ninguém tenha jamais, de fato, feito, examinado e debatido tais escolhas ou contribuído para a sua evolução.”

Ainda neste aspecto, outro problema enfrentado por Piketty – também, e mais uma vez, de forma empírica – é o da “coexistência de estabelecimentos públicos e privados, tanto no primário e no secundário quanto no ensino superior.” Como acontece no Brasil, onde a “hipocrisia educacional” é uma realidade absolutamente visível, “na prática, os estabelecimentos particulares costumam receber financiamentos públicos, direta ou indiretamente, através de um estatuto jurídico e tributário específico, exercendo, sobretudo, uma atividade do serviço público essencial, a saber, o direito de cada criança à formação e ao saber.”

É preciso que estes estabelecimentos privados de ensino “estejam sujeitos a uma regulação comum em conjunto com os estabelecimentos públicos, tanto no que diz respeito aos recursos disponíveis quanto aos processos de admissão”, sob pena de que “todos os esforços para estabelecer padrões de justiça aceitáveis no setor público sejam, de imediato, ignorados e desviados para as escolas privadas.”[9]

Lembro, então, dois grandes educadores brasileiros que, cada um a seu tempo e em sua época, já denunciavam algumas das mazelas da educação no Brasil. Paulo Freire, por exemplo, já afirmava que, “do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvidas de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades.”[10] E também Anísio Teixeira apontava alguns problemas que dificultavam a restauração do sentido democrático da expansão educacional brasileira, a saber: “a aceleração do processo histórico sob o impacto do progresso material, a ignorância generalizada em virtude das deficiências e perversões do processo educativo e o clima de conservadorismo, senão reacionarismo social.”[11]

Finalmente, como um último “elemento” que permitiria avançar na direção de uma perspectiva igualitária universal, o economista francês aborda a questão “da democracia e da fronteira, e o modo como é possível repensar a atual organização da economia global em benefício de um sistema democrático transnacional, fundamentado na justiça social, tributária e climática, rumo a uma democracia participativa e igualitária.”

Como fica demonstrado ao longo do livro, “todas as trajetórias históricas mostram o quanto a estrutura da desigualdade está intimamente ligada à forma do regime político em vigor”, pois, qualquer que seja a sociedade, “o modo de organização do poder político permite que um certo tipo de regime desigualitário perdure.”

Nesta parte do Capítulo, Piketty atenta para um outro aspecto: “o financiamento da vida política e da democracia eleitoral”; afinal, se na teoria “o sufrágio universal se assenta num princípio simples (uma mulher ou um homem, um voto), na prática os interesses financeiros e econômicos, sejam diretamente por meio do financiamento dos partidos e das campanhas, sejam indiretamente através das mídias, dos thinks tanks ou das universidades, podem ter um efeito dez vezes maior nos processos políticos.”[12]

De certa maneira, Milton Santos já alertava para este fenômeno, quando dizia que a “concorrência superlativa entre os principais agentes econômicos, a competitividade, ocasiona a emergência de um lucro em escala mundial, buscado pelas firmas globais que constituem o verdadeiro motor da atividade econômica, produzindo ainda mais desigualdades. E, ao contrário do que se esperava, crescem o desemprego, a pobreza, a fome, a insegurança do cotidiano, num mundo que se fragmenta e onde se ampliam as fraturas sociais.”[13]

Citando, inclusive, o caso brasileiro, Piketty acentua como um dos maiores óbices para a democracia participativa e igualitária “os financiamentos privados que distorcem de modo considerável os processos políticos, com regras insatisfatórias e às vezes totalmente escandalosas.”

A propósito, segundo Boaventura de Souza Santos, a democracia participativa, mais do que a democracia semidireta, deve significar uma nova gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade. Trata-se de uma visão não hegemônica da democracia, representando uma verdadeira e legítima forma de romper (positivamente) com tradições estabelecidas pelas visões hegemônicas sobre a democracia, estabelecendo-se novas determinações, novas normas e novas leis no sistema político, jurídico e econômico.

Neste sentido, Boaventura critica inclusive a posição de Habermas – segundo a qual “a esfera pública seria um espaço no qual indivíduos (mulheres, negros, trabalhadores, minorias raciais) podem problematizar em público uma condição de desigualdade na esfera privada” -, afirmando que o pensamento harbemasiano “tende a se concentrar em uma proposta de democracia para certos grupos sociais e para os países do Norte.”

Numa democracia efetivamente participativa, concebe-se os movimentos sociais como forma de transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais excluídos, inclusive e principalmente, como uma forma de libertação do colonialismo (como ocorreu na Índia, em Moçambique e na África do Sul), ou mesmo como um ideal de democratização (exemplos de Brasil, Portugal e Colômbia).

Para Boaventura, a democracia representativa possui algumas características marcantes que levam ao fortalecimento de uma visão eurocêntrica e hegemônica da própria ideia democrática; neste sentido, seria uma forma de privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, além de estabelecer uma distância crescente entre representantes e representados; priorizar a acumulação de capital em relação à redistribuição social, além de limitar a participação cidadã para não “sobrecarregar” o regime democrático com demandas sociais (“sobrecarga democrática”). Então, aponta o que seria “a crise da dupla patologia, a patologia da participação (tendo em vista o aumento dramático do abstencionismo) e a patologia da representação, em razão dos cidadãos considerarem-se cada vez menos representados por aqueles que elegeram.”

Assim, para a superação desta crise democrática, ainda segundo Boaventura, impõe-se a possibilidade da participação ampliada de atores sociais de diversos tipos no processo de tomada de decisões, “protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos e de democracia de mais alta intensidade, tratando-se de iniciativas locais, em contextos rurais ou urbanos, em diferentes partes do mundo, que vão desenvolvendo vínculos de interconhecimento e de alteração com iniciativas paralelas.”

Nada obstante, aponta o que ele chama de vulnerabilidades e ambiguidades da democracia participativa, que é o perigo da cooptação ou a integração pelas elites metropolitanas, citando, então, para exemplificar, o caso brasileiro: “o ativismo social dos empresário brasileiros contra a exclusão social mostra como o ideal da participação da sociedade civil pode ser cooptado por setores hegemônicos para cavalgar o desmonte das políticas públicas, sem o criticar e, pelo contrário, aproveitando-o para realizar uma operação de ´marketing social`.

Para a implementação efetiva e gradual da democracia participativa, ele indica três teses: 1) o fortalecimento da demodiversidade, com a coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas. Para ele, “se a democracia tem um valor intrínseco e não é uma mera utilidade instrumental, esse valor não pode mais se assumir como universal. A modernidade ocidental pode coexistir com outras em um mundo que agora se reconhece como multicultural, não podendo reivindicar a universalidade dos seus valores.” Para isso, é necessário que o sistema político abra mão de prerrogativas de decisão em favor de instâncias participativas, devendo existir uma combinação entre democracia participativa e democracia representativa, seja pela coexistência, seja pela complementaridade; 2) o fortalecimento da articulação contra-hegemônica entre o local e o global, pois “experiências alternativas bem-sucedidas precisam ser expandidas para que se apresentem como alternativas ao modelo hegemônico, sendo fundamental para o fortalecimento da democracia participativa, a passagem do contra-hegemônico do plano local para o global”; 3) e a ampliação do experimentalismo democrático, a partir de “novas gramáticas sociais” (histórica, social e cultural).[14]

Voltando a Piketty, ele faz referência àquilo que reputa “a mais delicada questão para definirmos a sociedade justa: a fronteira justa, como forma de repensar o federalismo social em escala global.” Assim, a globalização deve ser organizada de forma diferente, “substituindo os atuais acordos comerciais por tratados bem mais ambiciosos, visando a promoção de um modelo de desenvolvimento equilibrado e duradouro, incluindo objetivos comuns passíveis de deliberação e processos de deliberação democrática adequados.”

Atualmente, “o modo de organização da livre circulação de bens e dos capitais reduz consideravelmente as capacidades dos Estados de escolherem suas políticas tributárias e sociais”, de uma tal maneira que, “longe de fornecer o contexto neutro que pretendem, as regras internacionais levam à adoção de certas políticas e violam as soberanias sociais.”

E como definir a justiça em termos transnacionais? Para ele, fundamental “é poder delegar a uma assembleia transnacional a tarefa de tomar decisões comuns relativas aos bens públicos globais, como o clima, a pesquisa ou a justiça tributária global, incluindo a possibilidade de votar impostos comuns referentes às mais altas rendas e patrimônios, às maiores empresas e às emissões de carbono.”[15] Neste aspecto, veja-se no Brasil, no atual governo, a dificuldade que há em aceitar, por exemplo, as orientações da Organização Mundial da Saúde acerca da pandemia do novo coronavírus, como se o mundo estivesse conspirando contra nós.[16]

E, afinal, o que seria mesmo uma sociedade justa? Para Piketty, seria “aquela que permite ao conjunto de seus membros o maior acesso possível aos bens fundamentais, sobretudo a educação, a saúde, o direito a voto e, em termos mais amplos, a participação de todos nas diferentes formas da vida social, cultural, econômica, civil e política”, de uma tal maneira que os seus “membros menos favorecidos se beneficiem das mais elevadas condições de vida possíveis, a partir das relações socioeconômicas e de propriedade, além da distribuição de renda e de patrimônio.”

Obviamente que uma sociedade justa não implica uma absoluta uniformidade ou uma igualdade total. Mas – isso é importante -, “resulta de aspirações distintas e opções de vida diferentes, em que se permite melhorar as condições de vida e aumentar o leque de oportunidades abertas aos mais desfavorecidos; então a desigualdade de renda e de propriedade pode ser justa. Mas isso deve ser demonstrado e não pressuposto, e tal argumento não deve ser usado, como se costuma fazer, para justificar qualquer nível de desigualdade.”

Tratar-se-ia a proposta de Piketty uma utopia? Talvez, mas, conforme acentua Dowbor, analisando exatamente as ideias do economista francês, também “já foram utópicos o imposto de renda (´os ricos nunca aceitariam`), a renda mínima, o direito de greve e tantas outras impossibilidades, até que essas ideias encontraram âncoras na mente das pessoas.” Ademais, Piketty, “sem ceder a ódios, nem preconceitos, oferece bases empíricas extremamente sólidas para se entender quão nocivo se tornou o reinado dos rentistas para a economia e para a política, trazendo a ferramenta mais útil, nas últimas décadas, para compreendermos as dinâmicas econômicas, sociais e políticas atuais, pois foi quem compreendeu que a desigualdade se tornou o desafio principal, e o imposto progressivo sobre o capital acumulado a sua principal ferramenta.”[17]

Enfim, trata-se de um livro cuja leitura é importante para compreender algumas das questões mais urgentes do mundo atual, desde a visão de um economista que se nega, tal como Simone de Beauvoir, a “arrastar consigo, para a morte, a humanidade inteira.” Seu pensamento não é, como diria Beauvoir, “catastrófico e vazio.”[18]

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: https://www.propublica.org/article/the-secret-irs-files-trove-of-never-before-seen-records-reveal-how-the-wealthiest-avoid-income-tax). Acesso em 12 de outubro de 2021.

[2] Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-Depois-das-revelacoes-de-Pandora-Papers-e-hora-de-agir-/4/51835. Acesso em 12 de outubro de 2021. Artigo traduzido por Aluisio Schumacher a partir do  original publicado originalmente em “Le Monde”. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2021/10/09/thomas-piketty-apres-les-revelations-des-pandora-papers-il-est-plus-que-temps-de-passer-a-l-action_6097704_3232.html. Acesso em 12 de outubro de 2021.

[3] PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020.

[4] Este tópico específico sobre o caso brasileiro está incluído no Capítulo 16, da Quarta Parte (pp. 808-812).

[5] BELLUZZO, Luiz Gonzaga e GALÍPOLO, Gabriel. A Escassez na Abundância Capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 193.

[6] Aliás, a preocupação de Piketty com a tributação sobre o patrimônio já havia sido claramente demonstrada em sua obra anterior, o clássico O Capital no Século XXI, publicada em 2014, quando, sempre desde uma visão empírica que caracteriza a sua vasta produção intelectual e acadêmica, ele comprova ter havido um aumento exponencial na desigualdade de renda nas principais economias do planeta.

[7] Ele demonstra tal afirmação, claramente, no Capítulo 10 da Terceira Parte, nos Gráficos 10.11 e 10.12 (pp. 400-401).

[8] Aqui, ele mostra com o Gráfico 17.1 a desigualdade existente na França quanto à distribuição global do investimento educacional por geração (p. 851).

[9] “Desoneração da folha de escolas particulares não reduz mensalidades”, “Faculdades que recebem recursos do Fies reajustam preços acima da inflação” ou “Faculdades privadas tentam cobrar de aluno reajuste do Fies barrado pelo MEC”: esses são os títulos de apenas três das notícias encontradas numa rápida pesquisa no Portal da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, entidade que representa mais de um milhão de professores e técnicos administrativos que atuam no setor privado de ensino em todo o Brasil. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-parentesco-desastroso-para-a-educacao/. Acesso em 28 de julho de 2020.

[10] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 99.

[11] TEIXEIRA, Anísio. Educação não é Privilégio. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1957, p. 108.

[12] Segundo Inderjeet Parmar, professor da Universidade de Londres e presidente da British International Studies Association, “a crise do capitalismo liberal que vivemos hoje possui diversos fatores que se relacionam, todos eles construídos pelo o que ele chama de ´Elite do Conhecimento`, constituída, organizada e comandada pelo poder de corporações gigantes (think tanks), como a Rockefeller, por exemplo.” Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-controle-das-Think-Tanks-nos-Estados-Unidos-e-o-alcance-global-de-suas-redes-de-poder/4/45973. Acesso em 21 de julho de 2020.

[13] SANTOS, Milton. O País Distorcido. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 80.

[14] SANTOS, Boaventura de Souza Santos (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 26, 42, 51, 52, 64, 77, 78.

[15] Para ilustrar esta sua proposta, ele elabora a Tabela 17.2, propondo uma nova organização da globalização: “a democracia transnacional.” (p. 864).

[16] A propósito: https://jornalggn.com.br/noticia/o-artigo-em-que-ernesto-o-idiota-fala-do-comunavirus-e-compromete-ainda-mais-relacoes-com-a-china/. Acesso em 21 de julho de 2020.

[17] DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo – A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 149.

[18] BEAUVOIR. Simone de. O Pensamento de Direita, Hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 112.

 

Imagem Ilustrativa do Post: martelo // Foto de: Wesley Tingey // Sem alterações

Disponível em: brown mallet on gray wooden surface photo – Free Law Image on Unsplash

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura