A hora da estrela do Jurista  

18/11/2018

 

Macabéa só por existir. Vai levando a vida assim, meio sem mais nem menos. Permite que Rodrigo lhe dite toda uma vida – ou o contrário, faz da vida deste um novo senão a cada dia. Tem uma personalidade que não cabe em gente normal. Não tem, sequer, ira. Aliás, dos pecados capitais, não tem nenhum arbitrariamente. Gosta muito de comer, mas não o faz, nem quando pode, para não passar mal. Macabéa é, como tão bem associou Jacinto Coutinho[1], “a versão mais próxima do homo sacer, de Giorgio Agamben. Eles não sabem, sequer, gritar, nem Macabéa nem Rodrigo, seu locutor, como sugere Jorge Price[2].

Macabéa não sabe o significado das coisas e, por isso, pergunta tudo ao seu namorado e, como não poderia ser diferente, acredita em tudo que ele diz. Macabéa é fruto da explicação dos outros, não lê e ouve o rádio por ouvir. Macabéa, nos idos destes tempos, ficaria amalucada com a quantidade de informações certeiras e precisas sobre tudo, em todos os meios digitais. Macabéa é daquele tipo de pessoa que encaminharia uma Fake News sem titubear, perguntando somente o que é que quer dizer feiquinius.

 A experiência da escrita neste texto não é das maiores em relação à docência do ensino superior de Direito. Muitos outros poderiam fazê-lo de melhor forma pelo tempo gasto em salas de aula. Mas também é de se apontar recente momento em que estava do outro lado da carteira. E, ainda, o presente momento em que podemos estar dos dois lados, eterno aluno do Direito e pretenso facilitador do Direito.

As abordagens jurídicas ao pequeno, porém espetacular livro de Clarice Lispector são inúmeras, basta um simples googar. Sugere-se, no entanto, o brilhante estudo de Direito e Psicanálise coordenado pelo Professor Jacinto Coutinho[3]. Nossa abordagem, contudo, é outra, e busca uma intersecção entre a cara Macabéa e todos nós estudantes de Direito. É mais uma, dentre tantas outras formas, de se ler Macabéa. Se bem que não se pode afirmar com convicção religiosa que os temas e tramas, as formas de se analisar, de se entender e fugir desta história possam ser hermeticamente apartados uns dos outros.

Este trabalho procura encontrar os pontos de encontro entre Macabéa e o Jurista. Não sob o aspecto de encontrar-se sob a égide do Direito mesmo quando nem o Jurista nem a nordestina de Clarice percebem estar, até por que esta alusão é melhor encontrada nas proposições de Alexandre Morais da Rosa[4]. O Jurista Macabéa é aquele que nunca tem certeza donde se encontra e donde irá parar. Somente vai. Esta figura está em toda parte da Justiça. Desde os bancos acadêmicos do primeiro período de Direito até as salas de debates de doutorado passando por todos os Tribunais. E até mesmo poder-se-ia crer que não é privilégio da carreira do Jurista, mas é que é somente esta que nos interessa.

Na Academia de Direito temos inúmeros estudantes. O raiz e o nutella, são os dois mais prestigiados. Mas esquecemo-nos do acadêmico Macabéa. Este não sabe porque escolheu Direito, o que fará com o Direito e que dia é hoje. É alguém que de vez em quando até vai para aula, mas prefere o WhatsApp ao Professor e depois assiste vídeo aulas concentradas e rápidas para tentar responder alguma coisa nas avaliações. Não lê os clássicos. Não lê os básicos. Não lê. Não debate – talvez porque não leia. Confia friamente nos doutrinadores de Facebook. Prefere frases feitas do que digressão de conceitos. Mas está lá, levando de alguma forma a faculdade e sem qualquer percepção de que sua vida, tal qual a de Macabéa, está passando naquele espaço-tempo. Para muitos destes, somente uma estrela Mercedes-Benz para acordar.

Estes acadêmicos estão nas mãos de Professores e dentre estes temos muitos Professores Macabéa, que simplesmente estão. Aquele professor que não precisa preparar aula porque já sabe tudo. Que dita frases feitas ao invés de realizar uma digressão de conceitos. Que não lê os clássicos. Que não os básicos. Que não lê... não escreve. O Professor que sequer percebe a existência do aluno Macabéa. Não busca este aluno, não interage, não procura demonstrar de diversos modos como as coisas podem ser e, a partir disso, chamar a atenção para que o aluno comece a estudar o mínimo necessário (tarefa inglória).

Sobre este Professor há o Orientador do Mestrado e, por aí vai. Não diferente a advocacia, a magistratura, a promotoria etc.

O gigantesco e eterno problema do Direito é a faculdade que se degenera cada vez mais. A perda da razão para que se estude e se aprimore o Direito desde os primórdios acadêmicos – cada período dentro da sua possibilidade –, a discussão, o debate, as leituras, os escritos. A necessidade hodierna de se criarem advogados – que precisam passar na OAB – antes de preparamos Juristas – que precisam saber (questionar) o porquê das coisas. A facilidade de se entrar em um curso de Direito, muitas vezes, é a principal motivação para o ingresso. Uma lástima. Que o Professor pergunte aos alunos e que estes mesmos se perguntem, no primeiro período, a razão de estarem fazendo Direito. E perguntem também ao sexto período, ao décimo. E também se perguntem aqueles que estão há mais de seis anos na faculdade. Será que o Direito é para mim? Perguntemo-nos todos os dias.

Muitos de nós passaram por um incompreendido período de negação existencial. Se considerar impróprio para o Direito, uma ciência tão nobre. É natural se considerar burro demais para ser um bom advogado, um bom juiz, um bom promotor. E este é o momento de se decidir abandonar o curso, a vida profissional – o Direito em si –, aceitar-se um Jurista Macabéa, ou fazer de tudo para convencer, a si mesmo, de que é dedicado o suficiente, tem brio, energia, esperança e coragem de buscar fazer um Direito melhor. Desde o primeiro período da faculdade até a hora da estrela.

 

Notas e Referências

[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Macabreia: A Vida Sem Esperança. Direito e Psicanálise: Intersecções e Interlocuções a partir de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Coordenador: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. 2ª Tiragem. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. p. 19.

[2] PRICE, Jorge E. Douglas. Morir bajo palabra. Direito e Psicanálise: Intersecções e Interlocuções a partir de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Coordenador: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. 2ª Tiragem. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. p. 41.

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda e Outros. Direito e Psicanálise: Intersecções e Interlocuções a partir de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Coordenador: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. 2ª Tiragem. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.

[4] ROSA, Alexandre Morais. Opacidade e Macabéia: duas (im)possibilidades no Direito. Direito e Psicanálise: Intersecções e Interlocuções a partir de A Hora da Estrela de Clarice Lispector. Coordenador: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. 2ª Tiragem. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010. p. 75. “Desde que Macabéia nasceu até o dia em que foi atropelada pela estrela do Mercedez-Benz, ela, sem saber, praticou atos da vida civil sem que se tenha a noção exata, se é que tinha, de todas as normas que regulamentam (ou tentam) a ação humana. Nem os juristas sabem... Carlos Cárcova chama isto de opacidade do mundo jurídico”.

 

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