A história do Senador que foi preso...

03/12/2015

Por Escola Mineira de Processo Penal[1] - 03/12/2015

A história do Senador que foi preso...

... em flagrante de crime inafiançável por ordem do STF...

... sem inafiançabilidade, sem flagrante, sem crime e sem competência do órgão judiciário.

Era uma vez um Senador da República Federativa do Brasil, que foi preso. A situação estarreceu os brasileiros e ocupou as manchetes de todas as mídias. Apesar de a tristeza se abater sobre alguns, o ódio sobre outros, a indignação sobre outros mais, o sentimento de “até-que-enfim” foi compartilhado pela maior parte da opinião publicada. Passou-se a ver no evento a possibilidade de uma grande reviravolta naquele país quanto à proteção da moralidade pública, à responsabilização de criminosos, ao amadurecimento, enfim, da sociedade.

Como aconteceu? Dizem que o filho-ator de um ex-diretor da PETROBRÁS percebeu que o advogado do pai, já encarcerado e prestes a assinar uma delação premiada, fazia jogo duplo para proteger o importante Senador e outras figuras políticas e econômicas eminentes da República contra investigação criminal em curso há mais de um ano. Então, preparou com o auxílio da polícia uma série de gravadores para registrar as conversas que mantinha em luxuoso hotel brasiliense com o Senador, seu chefe de gabinete e o advogado. Conseguiu. O conteúdo da conversa registrada, que envolvia planos de fuga por fronteira seca (Paraguai), viagem de avião sem escala para além-mar (Espanha), mesada à família do fugitivo paga por banqueiro riquíssimo, promessa de intervenção política no tribunal supremo, com citação nominal de quatro de seus membros, além da Presidente e do Vice-Presidente da República e do Presidente do Congresso Nacional, foi entregue às agências punitivas estatais. Todos ficaram chocados. Veio a ordem monocrática (proferida por apenas um julgador) de prisão à noite. Pela manhã, mais quatro julgadores da turma (órgão fracionário do tribunal) referendaram a decisão, em meio a promessas de que o crime não venceria a justiça, os juízes, a Constituição.

Segundo a Constituição (art. 53) “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” e, (art. 53, § 1.º, e art. 102, I, c) “desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. A competência do STF para processar e julgar parlamentar não engloba, porém, a análise de eventual prisão em flagrante, porque, (art. 52, § 2.°) “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. Ainda de acordo com a Constituição, o conjunto de imunidades de um parlamentar possui tanta importância, que (art. 52, § 8.º) “as imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida”. Estado de sítio é uma situação jurídica de gravíssima instabilidade institucional, caracterizada pelo fracasso de medidas em estado de defesa, comoção de âmbito nacional, declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (arts. 137 a 139 da CRFB). Mesmo nessa situação de profunda instabilidade institucional, as imunidades dos parlamentares não podem ser suspensas, salvo por deliberação qualificada (2/3 dos membros) da Casa legislativa do parlamentar. É fora de dúvida, por outro lado, que proposta de emenda à constituição, aprovada por 3/5 dos parlamentares, em dois turnos, em cada qual das casas legislativas federais, pode reformar a Constituição e reduzir ou minorar, com o argumento da isonomia, as imunidades materiais e processuais de parlamentares, chefes do Executivo, juízes e acusadores. Mas o STF, por seu órgão pleno ou por suas turmas, a menos que se coloque na condição de superego da sociedade[2], poder constituinte permanente[3] ou operador de ficções de liberdade e dignidade para todos[4], não tem autorização constitucional para (r)estabelecer os marcos da própria competência, sobretudo se isso implica usurpação de atribuições de outro órgão de função constituída, a saber, a função de reformar a Constituição, exclusiva do Congresso Nacional (art. 2.º da CRFB).

O juízo natural para o controle processual da legalidade e da constitucionalidade da prisão em flagrante de Senador, segundo a Constituição, é o Senado, casa legislativa a que vinculado, não o STF. Falta ao STF competência para exercer esse controle, embora possua a competência de processar e julgar o caso penal que envolva parlamentares federais por crimes comuns (art. 102, I, c, da CRFB). A prisão preventiva de Senador ou Deputado Federal não pode ser decretada de forma alguma. Literalmente, a Constituição a veda e nenhuma leitura autoritária do flagrante como indutor da presunção de culpabilidade e, por conseguinte, da prisão preventiva sobrevive, salvo por alguma sorte de messianismo judiciário ou acusatório, ao prodigioso conjunto de garantias constitucionais que limitam a prisão no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que se admitisse, a partir de uma interpretação historicista do CPP e da Lei 6.416/77 em detrimento da ruptura democrática operada pela Constituição de 1988, a decretação de qualquer medida cautelar contra o parlamentar, para além do flagrante, competente para fazê-lo jamais seria qualquer órgão da estrutura judiciária, sob pena de se chancelar, repita-se, usurpação de atribuições do Senado (art. 2.º da CRFB).

Não é necessário ter acumulado saber ou experiência forense na área do Direito Penal e do Processo Penal para perceber que a decisão[5] do STF que determinou o encarceramento do Senador tem conteúdo de prisão preventiva (cautelar), não de prisão em flagrante (confira-se em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304788). Mencionam-se proteção à ordem pública, conveniência da instrução criminal, o art. 312 do CPP e uma série de outros elementos característicos de uma prisão preventiva. Nada se diz sobre a imediaticidade e a visibilidade do fato aparentemente delitivo, típicos do estado de flagrância, a merecer pronta cessação. O flagrante é a situação jurídica que autoriza por si só a intervenção em conduta alheia aparentemente delitiva com o único propósito de impedir que gere todos os seus efeitos[6]. Tivesse a polícia intervindo no momento da suposta negociata, poderia haver, em tese, situação flagrancial de crimes contra a administração da “justiça” (talvez arts. 348, 349, 351, 357 do CP), se iniciada a execução (art. 31 do CP). Estendê-la a vinte, trinta dias depois dos acontecimentos, ao argumento de que se trata de crime permanente (organização criminosa, art. 2.º da Lei 12.850/2013), aquele cuja consumação se protrai no tempo, é o mesmo que responder afirmativa e erroneamente à famosa pergunta de David Hume sobre se o fato de o sol ter nascido todos os dias assegura que ele nascerá amanhã, ou se o conhecimento do presente e do futuro é uma repetição do passado[7]. Uma resposta positiva e errada a essa pergunta não passa de mera crença infundada.

Nenhum dos crimes acima referidos é inafiançável. Os crimes inafiançáveis são arrolados exaustivamente pela própria Constituição (art. 5.º, XLII a XLIV). A interpretação da segunda turma do STF, a partir do art. 324, IV, do CPP, sobre a inafiançabilidade gerada para qualquer crime, como o epifenômeno negativo do cabimento da prisão preventiva, não supera o primeiro e mais simples contraponto de fiscalização das decisões daquele tribunal: a sua jurisprudência (confira-se o HC 97.256/RS, sobre a impossibilidade de a lei ordinária reforçar o discurso dos crimes de regime jurídico mais gravoso, estabelecido no art. 5.º, XLII a XLIV). Quanto a esse ponto, não há o que acrescentar aos artigos diferenciados de MOREIRA e ROSA (http://emporiododireito.com.br/para-nao-entender-a-prisao-de-um-senador-pelo-stf-por-romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa/), que ainda discorre sobre a ilicitude do elemento de prova da gravação clandestina sem ciência dos envolvidos, e de BADARÓ (http://justificando.com/2015/11/26/o-supremo-e-a-inafiancabilidade-ou-por-que-prenderam-o-delcidio/), que também tece considerações sobre a desvalia da fiança como critério balizador da prisão cautelar no processo penal constitucionalizado, contexto lógico-jurídico em que a regra é a liberdade e a prisão, exceção.

Finalmente, se o filho-ator do ex-diretor se preparou com o auxílio da polícia para registrar o crime flagrante, se ele não estava ali para negociar nada, para aceitar de fato qualquer promessa dos investigados, se então os crimes contra a administração da “justiça” não poderiam se consumar (art. 17 do CP), que dizer do enunciado da súmula 145 do próprio STF: “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”?

Este poderia ser o conto fictício de uma terra em que ainda se acreditasse, infantilmente[8], que ao Judiciário é dado conduzir com soberania os rumos democráticos de uma nação, mediante interpretações dos textos legais inspiradas e inspiradoras, poéticas até, mas excetivas[9] e supressivas de garantias constitucionais. A ficção se agudiza quando a interpretação judicante excetiva repercute no incremento da intervenção penal e do encarceramento como remédios, embora amargos, mas sempre irrenunciáveis, à solução da criminalidade. De se assombrar que seja uma história bem próxima ao real, havida em pleno século XXI, e que venha encontrando aplausos...!


Notas e Referências:

[1] Leonardo Augusto Marinho Marques, Vinícius Diniz Monteiro de Barros, Fábio Presoti Passos, José de Assis Santiago Neto, Leonardo Avelar Guimarães, Leonardo de Carvalho Barbosa, Leonardo Marques Vilela, Lucas Laire Faria Almeida, Marcelo Peixoto de Melo são professores de Direito Penal e Processo Penal em várias faculdades e universidades, públicas e privadas, em Minas Gerais. Escrevem em torno da linha de pesquisa “Processo na construção do Estado Democrático de Direito”, do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas (CAPES 6). Leonardo Marinho, Fábio, José, Leonardo Guimarães, Leonardo Barbosa, Leonardo Vilela, Lucas e Marcelo são advogados com dedicação e atuação prioritárias em casos penais. Vinícius é defensor público federal em Belo Horizonte.

[2] “Na verdade, revela-se aqui na forma de sua completa destruição a ligação entre legislação e independência da Justiça. Uma Justiça que não precisa fazer derivar a legitimação de suas decisões das leis vigentes torna-se no mínimo dependente em face das necessidades políticas conjunturais, degradando-se a mero instrumento de aparelhos administrativos. Esse processo foi direcionado mediante uma problemática moralização do conceito de direito. É, nesse contexto, em 1942, em meio à extrema perversão da Justiça alemã, que se formula esta bela máxima: ‘o juiz é a corporificação da consciência viva nacional’.” MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. In Novos Estudos CEBRAP. N. 58. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. Novembro de 2000. P. 183-202. P. 197.

[3] “O Supremo Tribunal Federal não pode, sob a desculpa de querer guardar a Constituição, privatizar, apropriar-se da Constituição. Não se pode afastar a cidadania, nem do seu momento de criação, nem do seu processo de in­terpretação. Somos todos intérpretes da Constituição. Uma postura contrá­ria a uma ‘sociedade aberta de intérpretes da Constituição’ não contribui (…) para a reafirmação, mais uma vez, de um projeto constitucional, que na verdade, não surgiu em 1988 e não se esgotou em 1988 [...]” (grifos acrescidos) CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito, política e filosofia: Contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 67.

[4] “O que os juristas, em seus vários matizes positivistas, não se permitem investigar é a causa do “mito do poder” (...), que, como vírus não isolável, vem orientando a produção e a aplicação do Direito ao longo dos séculos. (...) Queixam-se amargamente da violência social que os cerca, olvidando (?) que os “aparelhos” de matança coletiva têm como oficina fabril o âmago de suas universidades diplomadoras. (...) Diz Popper que só é ciência o que se destina a reduzir o sofrimento humano. Entendo que não há sofrimento maior, ainda mais no panorama que nos exibe a atualidade histórica, quando a vida humana vem desgarrada do exercício da ampla defesa (no sentido de minha teoria neoinstitucionalista) ante imputações infracionais ou lesões de direito que o homem possa sofrer. O Estado, porque se veda saber o que ele é, mas já desmentido em seus fetichizados propósitos, emerge desveladamente como organização criminosa (art. 5.º, LIV e LV, da CB/88), que, por álibi, de uma sabedoria fortemente armada [autoridade], diz o que é lícito e ilícito por seus “poderes” harmônicos e independentes entre si. Qualquer conquista crítico-teórico-constitucional que se possa fazer (como o devido processo construtivo de uma normatividade não repressiva) é distorcida em seus conteúdos epistemológicos em prol do romanismo arcaico da ars inveniendi que pela tópica e retórica elege o autoritarismo do Estado-juiz, aplicador e intérprete exclusivo do direito, como operador das ficções de liberdade e dignidade, que alardeiam assegurar para todos (positivismo pragmático-semântico dos direitos humanos)”. LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. P. 75-76.

[5] A decisão, decretando a prisão “cautelar” em flagrante, é sem igual. Expedição de mandado para prisão em flagrante é outra singularidade, um verdadeiro ornitorrinco. Ornitorrinco é um dos poucos membros da ordem Monotremata (abertura única para os sistemas digestivo, urinário e reprodutivo), classe Mammalia, filo Chordata, reino Animalia, endêmico na região da Austrália e da Tasmânia, que, apesar de mamífero, possui bico, membranas interdigitais, hábito noturno e semiaquático. A fêmea bota ovos, parcialmente chocados dentro do corpo, amamentando os filhotes não por mamilos, ausentes, mas por poros na barriga. O macho ainda produz veneno, inoculável nas presas por ferrões próximos às patas (informações fornecidas pelo Prof. Doutor em Ensino de Ciências (FIOCRUZ) Marcelo Diniz Monteiro de Barros). A comparação de uma situação jurídica brasileira com o ornitorrinco, por sua singularidade, já foi feita por SAMPAIO, José Adércio Leite. Introdução. In SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Quinze Anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. P. 5: “É um monstro sem o ser. É o domínio do contraste e do que não era para ser (assim). Algo como um país do agrobusiness, mas com fome no campo; (...) um sistema econômico financeirizado à custa da dívida pública (e social) em detrimento de empréstimos aos setores produtivos. (...) Também na política ele (o bicho) é um projeto de polis sem civitas, de uma política como vazio da plebe e o domínio da elite técnico-financeira que alimenta o ornitorrinco econômico. (...)”. Agora, o ornitorrinco jurídico ganha sua versão processual penal.

[6] Para uma abordagem mais pormenorizada sobre o tema, MONTEIRO DE BARROS, Vinícius Diniz. A prisão em flagrante no modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: Arraes, 2013. Esp. P. 45-47.

[7] POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo. Tradução de Mil­ton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. P. 13-41.

[8] MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Tradução de Martonio Lima e Paulo Albuquerque. In Novos Estudos CEBRAP. N. 58. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. novembro de 2000. P. 183-202. P.190.  “O infantilismo da crença na Justiça aparece de forma mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional alemão (TFC) uma retificação da própria postura em face das questões que envolvem a cidadania. As exigências de justiça social e proteção ambiental aparecem com pouca frequência nos próprios comportamentos eleitorais e muito menos em processos não institucionalizados de formação de consenso, sendo projetada a esperança de distribuição desses bens nas decisões da mais alta corte.”

[9] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. Coleção Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2008.


Imagem Ilustrativa do Post: Instalação e eleição do presidente e do vice-presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), para o biênio 2015/2016 // Foto de: PT no Senado // Sem alterações.

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/118578171@N02/16094778373

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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