A GRAVAÇÃO AMBIENTAL CLANDESTINA E A QUESTÃO DA ILICITUDE DA PROVA NO ÂMBITO ELEITORAL    

19/11/2021

Está para ser pautado no TSE o julgamento de um processo que trata da admissibilidade, como matéria de defesa, do uso de gravação ambiental clandestina em ações de natureza eleitoral. Trata-se, no particular, de um recurso especial eleitoral interposto contra uma decisão proferida pelo TRE-SP que cassou o registro de todos os candidatos de um determinado partido político, referente às últimas eleições de 2020. A decisão da corte eleitoral paulista fundamentou-se, basicamente, numa gravação ambiental clandestina, condenando-se a legenda e impedindo a posse de dois vereadores eleitos. À época do julgamento, o tribunal regional decidiu com fulcro na então jurisprudência da corte superior eleitoral que considerava tais gravações provas lícitas nos processos eleitorais.

Efetivamente, na sessão do dia 09 de maio de 2019, o plenário do TSE fixou a tese da admissibilidade, em regra, de gravação ambiental feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro (de forma clandestina, portanto), como prova do ilícito eleitoral, ainda que sem prévia autorização judicial, seja em ambiente público ou privado, ressalvando-se que o entendimento seria válido apenas para casos ocorridos a partir das eleições de 2016.[1]

No entanto, e pouco mais de dois anos depois, exatamente na sessão do dia 07 de outubro de 2021, o Tribunal Superior Eleitoral passou a ter entendimento diverso, especialmente em razão da alteração legislativa promovida pela Lei 13.964/2019 (o chamado pacote anticrime), firmando-se, doravante, numa decisão apertada de 4 votos a 3, o entendimento que nos processos eleitorais são consideradas ilícitas as provas obtidas por meio de gravação ambiental clandestina feita em ambiente privado, sem autorização judicial e sem o conhecimento dos interlocutores; alterou-se, assim a anterior jurisprudência da corte superior eleitoral.

Nesta sessão de outubro, foram julgados três recursos provenientes de ações de investigação judicial eleitoral que tiveram como base informações obtidas por meio de gravações feitas contra candidatos, sem o conhecimento dos mesmos, tendo prevalecido a posição do ministro Alexandre de Moraes, segundo a qual “tais provas são ilícitas porque a privacidade e a intimidade, direitos fundamentais garantidos pela Constituição, devem prevalecer, sob o risco de incentivar essa prática em cenário de disputa acirrada como o eleitoral.” Votaram com o ministro Alexandre de Moraes, relator dos três casos, os ministros Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell e Carlos Horbach, ficando vencidos, por entenderem como lícita as provas decorrentes de gravação clandestina, os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e Sérgio Banhos.

Nessa assentada, lembrou o ministro Luís Roberto Barroso que desde o julgamento ocorrido em 2019, o Tribunal Superior Eleitoral havia julgado 28 casos, sendo que em 22 deles considerou a prova lícita e em outros seis ela foi declarada ilícita, mas por especificidades de cada caso concreto que levaram à conclusão de que houvera “prática indutiva” por quem fez a gravação. Segundo ele, “não seria possível que, para alguns casos de 2016, a decisão seja uma e, para outros, seja outra.”

Foi esse exatamente o ponto que levou o ministro Sergio Banhos a votar com a divergência, afirmando “que gravação ambiental clandestina é prova ilícita, mas que não seria cabível alterar esse entendimento depois de julgar outros casos que ocorreram na mesma eleição de 2016.”

A maioria, no entanto, acolheu a posição do relator, ministro Alexandre de Moraes, segundo a qual “a ilicitude desse tipo de prova é reforçada pela entrada em vigor do pacote ´anticrime` (Lei 13.964/2019), que inseriu o artigo 8º-A na Lei 9.296/1996.” Para ele, “a aplicabilidade do pacote anticrime é imediata e deve influenciar processos eleitorais. A ideia é que se no mais, que é o caso do detentor de mandato público, a gravação ambiental dependerá de autorização judicial para comprovar prática de crime, no menos — o caso do mero candidato — não faz sentido dispensar a autorização judicial para tanto.”

Ao acompanhar o relator, o ministro Luís Felipe Salomão defendeu “que as nuances e especificidades do processo eleitoral recomendam cautela redobrada quanto à admissão de gravações, pois além de afrontarem direitos fundamentais, representam ameaça à estabilidade do Estado Democrático de Direito”, posição também adotada pelo ministro Mauro Campbell que destacou “o risco da Justiça Eleitoral se tornar palco de permanente judicialização das eleições, transmutando seu papel em agente de desestabilização das eleições, pois o reconhecimento da ilicitude, ao invés de fragilizar atuação dessa Justiça, potencializa seu papel de garantidora de direitos constitucionais de primeira grandeza.”

Na mesma oportunidade, divergindo do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, apesar de admitir “não ter simpatia pelo uso de gravações ambientais”, ressaltou que “segurança jurídica e a isonomia são valores também protegidos constitucionalmente, razão pela qual a norma do pacote ´anticrime` não deveria ter aplicabilidade imediata na seara eleitoral.” Segundo ele, “trata-se de norma de natureza processual que não criou ou eliminou um tipo penal, mas apenas regulamentou um meio de prova, de forma que se aplica daqui para frente, mas não à prova produzida preteritamente. Senão, seria uma invalidação superveniente de algo que era considerado licito no momento em que foi produzido.”

Também divergiu do relator o ministro Luiz Edson Fachin, fazendo uma distinção entre quem supostamente pratica um crime (cuja situação é abordada no pacote anticrime) e o candidato que pratica um ilícito eleitoral, asseverando que “o réu penal não tem qualquer distinção para outros cidadãos, mas o candidato, sim, pois no exercício dessa condição jurídica, todos seus atos têm interesse público e devem ser transparentes.” Neste sentido, para ele, não seria permitido “que o candidato use de direitos fundamentais como escudo para ocultar a prática de ilícitos eleitorais e torne putativa a realidade presenciada pelo eleitor. Prerrogativas fundamentais devem ser lidas em perspectiva macro, em ordem a não infirmar direitos medulares de igual dimensão, dentre os quais está a liberdade de sufrágio, a igualdade de candidatos e a legitimidade do direito das eleições.” Assim, “se a privacidade dos candidatos é relativizada em favor da ampla informação ao eleitor e se a legitimidade das eleições tem como espinha dorsal o controle dos atos e a efetiva responsabilização desses candidatos, não é automaticamente aplicável o artigo 8º-A da Lei 9.296/1996.”

Eis, até o momento, o cenário da questão posta no TSE. No STF, aliás, o tema também está sendo apreciado no RE 1.040.515, tendo sido reconhecida repercussão geral; o julgamento do recurso extraordinário começou depois do julgamento na corte eleitoral e até agora o único a votar foi o relator ministro Dias Toffoli, em junho de 2021, tendo sido interrompido o julgamento por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Na Suprema Corte, o ministro Dias Toffoli defendeu a ilicitude do meio de prova, “pois reveste-se de intenções espúrias e indica a indução ou instigação de um flagrante preparado, excetuando-se a hipótese de registro de fato ocorrido em local público desprovido de qualquer controle de acesso, pois, nesse caso, não há violação à intimidade ou quebra da expectativa de privacidade”, propondo-se, então, “que o entendimento fosse aplicado a partir das eleições de 2022, em homenagem ao princípio da segurança jurídica.”

Ao julgar agora o recurso especial eleitoral interposto contra o acórdão do TRE-SP, caberá ao TSE verificar se a ilicitude das gravações ambientais é suficiente para reverter a condenação, e se podem ser usadas no processo como tese defensiva. Foi exatamente essa questão que levou o Tribunal Superior Eleitoral, na sessão do último dia 11 de novembro, por maioria de votos, denegar uma ação cautelar, com pedido de tutela de urgência para suspender os efeitos do acórdão do tribunal paulista. O relator, ministro Sérgio Banhos, afirmou que “em uma situação dessas, em que não se trata de um adversário contra o outro, de uma pessoa querendo prejudicar outra, mas de alguém querendo fazer a defesa contra uma eventual imputação de um crime, é preciso fazer uma maior reflexão.”[2]

Pois bem.

Como se sabe, a Lei 13.964/2019 (o chamado pacote anticrime) acrescentou o artigo 8º-A à Lei 9.296/1996, permitindo, para investigação ou instrução criminal, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis e igualmente eficazes; e quando houver elementos probatórios razoáveis de autoria e participação em infrações criminais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou em infrações penais conexas, devendo o requerimento descrever circunstanciadamente o local e a forma de instalação do dispositivo de captação ambiental; ademais, a captação ambiental não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por decisão judicial por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio de prova, e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada.  

Outrossim, o § 4º do mesmo art. 8º-A estabelece que “a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.” Portanto, de lege lata, a captação ambiental feita por um dos interlocutores sem autorização judicial, nem prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, somente pode ser admitida como meio lícito de obtenção de prova desde que seja utilizada em matéria de defesa e, evidentemente, demonstrada a integridade da gravação.

Ora, os termos da lei são claros, não admitindo quaisquer dúvidas quanto à possibilidade de utilização da gravação ambiental clandestina em favor da defesa, nada obstante a ilicitude do meio de obtenção de prova, não havendo, tampouco, qualquer limitação a processos de natureza exclusivamente criminal.

Obviamente, não há dúvidas em relação à ilicitude de uma gravação ambiental (ou de qualquer outra natureza) feita sem o conhecimento do interlocutor, atentando-se para a lição de Muñoz Conde que, “no âmbito da evolução dos meios de prova processualmente admissíveis, e não somente no sistema de castigo, passamos da fase que caracteriza Foucault como ´controle do corpo` (a tortura) para a fase de ´controle da alma` (a captação da palavra, da imagem ou do som, como elementos mais característicos do núcleo estrito da intimidade e, portanto, da parte espiritual da personalidade).[3]

Assim, no dizer de Gössel, “ilimitadamente, são somente permitidas aquelas gravações ou filmagens que não incidem em absoluto na esfera da proteção privada.”[4]; de tal maneira que, “caso as interceptações tenham sido executadas fora das hipóteses permitidas ou de maneira diversa da prevista em lei, os respectivos resultados não podem, em hipótese alguma, ser utilizados, ainda que demonstrem a culpabilidade do acusado”, como ensina Tonini, analisando o direito italiano.[5]

Não se pode infirmar o quanto acima referido sob o argumento, absolutamente falacioso, de que se busca a verdade, pois, conforme escreve Quiroga, após afirmar que a verdade não é um valor absoluto (e não é mesmo!), “a teoria da prova ilícita não esgota sua eficácia no efeito negativo, pois tem um duplo efeito: positivo um e negativo o outro. O efeito negativo é o que dá lugar à falta de efeitos da prova ilicitamente obtida, a sua impossibilidade de apreciação e, inclusive, a sua entrada no processo.”[6]

Tampouco aqui (nessa matéria) cabe uma ponderação entre interesses, como se costuma fazer muito no Brasil, inclusive utilizando-se indevidamente o princípio jurídico da proporcionalidade, afinal, “a confrontação dialética entre o interesse público e o privado deve buscar novos e permanentes equilíbrios entre o garantismo e a impunidade.”[7] A propósito, com razão Aury, ao afirmar “que o próprio conceito de proporcionalidade é constantemente manipulado e serve a qualquer senhor, bastando ver a quantidade imensa de decisões e até de juristas que ainda operam no reducionismo binário do interesse público x interesse privado, para justificar a restrição de direitos fundamentais (e, no caso, até a condenação) a partir da ´prevalência` do interesse público...”[8]

Feita estas considerações acerca da ilicitude de uma gravação ambiental clandestina, ressalva-se que nada impede, ao contrário, impõe-se juridicamente, a possibilidade da defesa utilizar-se da mesma gravação para evitar uma condenação, seja, como se disse acima, em uma ação penal, seja em um processo civil ou mesmo um feito de natureza eleitoral. Neste sentido, Carbone, após afirmar que “a licitude da prova, em princípio, relaciona-se com a forma e modo de obtenção da fonte de prova”, explica que esta teoria aplica-se “ao processo penal, ao processo civil, ao direito civil, ao direito do trabalho, ao direito de família, etcétera.”[9]

Tal excepcionalidade, ou seja, a admissibilidade da prova ilícita pro reo, decorre não somente do texto legal acima transcrito, mas, principalmente, do amplo direito de defesa assegurado constitucionalmente a todo acusado (independentemente de qual processo se trate), especialmente em razão do favor rei, “princípio base de toda a legislação processual penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade, não havendo, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento.”[10]

Evidentemente, com todas as vênias, não se pode admitir a distinção feita pelo ministro Luiz Edson Fachin entre um réu no processo penal e um candidato num processo eleitoral (que também é um acusado de um ilícito eleitoral), mesmo porque o caráter sancionatório da ação processual eleitoral é indiscutível, podendo cassar o mandato do condenado, torná-lo inelegível, aplicar multas, etc.

Tampouco deve ser considerada, nada obstante a autoridade intelectual do ministro Luís Roberto Barroso, a tese de que “a norma do pacote ´anticrime` não deve ter aplicabilidade imediata na seara eleitoral, pois se trata de norma de natureza processual que não criou ou eliminou um tipo penal, mas apenas regulamentou um meio de prova, de forma que se aplica daqui para frente, mas não à prova produzida preteritamente.”[11]

Neste aspecto, é preciso atentar para a questão das normas de caráter material que exige a aplicação retroativa das disposições legais mais benéficas ou mais garantidoras que, segundo Taipa de Carvalho, têm uma natureza mista, pois, “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Sendo assim, e desde um ponto de vista da “hermenêutica teleológico-material, determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[12]

Enfim, e para concluir, é preciso, “aceitar, seja do nosso agrado ou não, que a investigação humana tem seus limites naturais, que não chega até as estrelas, mas, pelo contrário, as proibições de prova são limitações autoimpostas ao conhecimento.”[13]

 

Notas e Referências

[1] Conferir o Recurso Especial Eleitoral 408-98.2016.6.24.0051/SC.

[2] Processo 0600400-24.2021.6.00.0000.

[3] CONDE, Francisco Muñoz. Valoración de las grabaciones audiovisuales en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 2004, p. 28.

[4] GÖSSEL, Karl-Heinz. El proceso penal ante el Estado de Derecho – Estudios sobre el Ministerio Público e a prova penal. Lima: Editora Jurídica Grijley, 2004, p. 85.

[5] TONINI, Paolo. A prova no Processo Penal italiano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2002, p. 252.  

[6] QUIROGA, Jacobo López Barja de. Las escuchas telefónicas e a prova ilegalmente obtida. Madrid: Ediciones Akal, 1989, p. 100.

[7] CASTRILLO, Eduardo de Urbano e MORATO, Miguel Angel Torres. La prueba ilícita penal – Estudio jurisprudencial. Navarra: Editorial Arazandi, 2000, p. 55.

[8] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 447.

[9] CARBONE, Carlos Alberto. Grabaciones, escuchas telefónicas y filmaciones como medios de prueba. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 2005, p. 110.

[10] BETTIOL, Giuseppe. Instituições de Direito e Processo Penal. Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295.

[11] A propósito conferir: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-supremo-tribunal-federal-e-a-acao-penal-no-crime-de-estelionato. Acesso em 18 de novembro de 2021.

[12]  CARVALHO, Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/223.

[13] BELING, Ernst. Las prohibiciones probatórias. Bogotá: Editorial Temis, 2009, p. 6.

 

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