A gestão pública do Brasil e da Argentina na área de preservação permanente

11/03/2018

Introdução

É possível afirmar sob o ponto de vista histórico que o desenvolvimento da agricultura nunca esteve, como agora, condicionado à garantia de sustentabilidade ecológica. A gestão pública no desenvolvimento rural, resguardadas algumas poucas exceções, ao longo do tempo, foi permissiva quanto as práticas rurais insustentáveis ambientalmente. Assim, o Estado não interferiu no processo de expansão das áreas de cultivo, “permitindo” a realização de desmatamentos; o Estado financiou, por meio de recursos oriundos de bancos públicos a produção agrícola intensiva, mecanizada e com o uso de agrotóxicos; o Estado “incentivou” a monocultura em detrimento do zoneamento da produção agrícola e o Estado “autorizou”, em nome do desenvolvimento econômico e da geração de emprego e renda, a intervenção devastadora no meio ambiente.

O Estado, portanto, “promoveu” o incremento da agricultura intensiva e da produção em larga escala, mantendo-se, entretanto, “inerte” quanto às culturas agrícolas extensivas e a práticas sustentáveis de produção de alimentos, quanto a fixação do homem no campo e quanto a preservação do meio ambiente.

Atualmente, porém, vive-se uma realidade diferente. A partir da Conferência de Estocolmo, em 1973, quando houve um acirramento entre aqueles que defendiam o prosseguimento do desenvolvimento a qualquer preço, mesmo pondo em risco a própria natureza (e a existência humana) e os partidários das questões ambientais e preservacionistas; a relação entre a agricultura e o meio ambiente passou, paulatinamente, a ser tratada pelo princípio do ecodesenvolvimento. Amazile López Netto[1], sobre o tema, afirma que o ecodesenvolvimento é um estilo de desenvolvimento adaptado para áreas rurais do Terceiro Mundo, baseado na utilização criteriosa dos recursos locais.

A ideia de ecodesenvolvimento evoluiu, rapidamente, dando lugar ao conceito de desenvolvimento sustentável. O termo foi proposto por Maurice Strong e, em seguida, ampliado pelo economista Ignacy Sachs, que, além da preocupação com o meio ambiente, incorporou as devidas atenções às questões sociais, econômicas, culturais, de gestão participativa e ética.[2]

Segundo Ignacy Sachs, citado por Amazile Lópes Netto[3], para que o desenvolvimento rural atenda as diversas dimensões de sustentabilidade, exige-se a presença de seis  aspectos: a) a satisfação das necessidades básicas; b) a participação do público alvo; c) a conservação do meio ambiente; d) a elaboração de um sistema social que garanta empregos; e) a segurança social e o respeito a outras culturas, e f) a existências de programas de educação.

Nesse contexto, o Estado passou a ser o agente responsável pela fixação de parâmetros legais de sustentabilidade; pela revisão das políticas públicas e modelos de desenvolvimento rural, pelo financiamento de boas práticas ambientais no desenvolvimento da agricultura; pela educação ambiental.

Mariana Mazzucato[4], ao discutir a importância do Estado na consolidação da revolução industrial verde, propõe que o Estado seja responsável por impulsionar e transformar a infraestrutura energética atual em energia limpa.

A premissa elevada por Mariana Mazzuccato, quanto ao papel do Estado, de igual forma, é aplicável no desenvolvimento rural sustentável. Primeiro em razão de que o Estado é responsável por impulsionar e transformar a infraestrutura agrícola do país. Segundo, pelo fato de que o Estado deve fomentar, constantemente, a cultura da preservação ambiental, da educação ambiental, da agricultura sustentável e responsável e da valorização e fixação do homem no campo, inclusive por meio da agricultura extensiva e familiar. Terceiro que, sucessivamente, o Estado deve buscar a produção de alimentos saudáveis.

Dentro desse contexto, as áreas de preservação permanente, a partir da definição de desenvolvimento rural sustentável, tornaram-se ambientes estratégicos para o desenvolvimento da agricultura, pois, de igual forma, foram (e são) ambientes atingidos pela degradação humana e pela produção agrícola. Sabe-se, entretanto, em razão de aspectos geográficos e culturais, que grande parte da agricultura praticada no Brasil e na Argentina depende da utilização de áreas de preservação permanente e da agricultura praticada em pequenas propriedades rurais; exigindo-se a presença do Estado por meio de gestão pública, legislação adequada e sistema de manejo apropriado. 

Aspectos legais sobre o uso da área de preservação permanente no Brasil para prática agrícola

O Código Florestal, Lei n.º 12.651/2012, redimensionou o regime jurídico das Áreas de Preservação Permanente. Pelo conceito, conforme leciona José Affonso Leme Machado[5], cuida-se de área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

A definição de Área de Preservação Permanente incorporou cinco características, a saber: a) é uma área e não uma floresta; distinguindo-se da ideia do código florestal de 1965 quando fazia referência a Floresta de Preservação Permanente; b) é uma área protegida pela Constituição Federal de 1988, art. 225, §1º, inciso III, cuja regra veda expressamente a utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; c) é uma área com proteção permanente, quer dizer: (i) proteção não eventual ou temporária e (ii) proteção condicionada à criação, manutenção e/ou recuperação; d) é uma área com funções ambientais específicas, destacando-se: a função de proteção dos recursos hídricos, da estabilidade geológica, do solo e da biodiversidade e a função facilitadora do fluxo gênico da fauna e da flora; e e) é uma área que possui natureza jurídica de direito real, transmitindo a obrigação de criação, manutenção ou recuperação aos herdeiros.

Entretanto, embora a Área de Preservação Permanente detenha, constitucionalmente, características de proteção, o novo Código Florestal acabou adotando regra jurídica interna contraditória à Constituição Federal, mitigando a proteção do ambiente de preservação permanente e atentando contra o direito de todos ao meio ambiente sadio e equilibrado.

É o caso do art. 61-A do Código Florestal quando fixa que nas Áreas de Preservação Permanente, é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008.

Da leitura do dispositivo legal, evidencia-se, primeiro, a existência de um conflito de natureza ideológica dentro do Congresso Nacional, envolvendo a bancada ruralista, os agricultores, os produtores rurais, os empresários do agronegócio, os socioambientalistas e os preservacionistas. Em segundo lugar, revela um problema de controle de constitucionalidade do art. 61-A do Código Florestal, pois, em confronto com o art. 225, §1º, inciso III da Constituição Federal, permite a utilização da Área de Preservação Permanente para o desenvolvimento de atividades agrárias e turísticas. 

Aspectos legais sobre o uso da área de preservação permanente na Argentina para prática agrícola

Quando o assunto é a sustentabilidade, o modelo e as consequências do desenvolvimento agrário e da urbanização na Argentina não se diferem dos demais países da América do Sul. A Constituição Federal da Argentina[6], após a revisão constituinte, estabeleceu os denominados novos direitos e garantias, dentre os quais pode se destacar o art. 41, relativo ao meio ambiente: 

Articulo 41. Todos los habitantes gozan deI derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actlvidades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo. EI dano ambiental generará prioritariamente la obligación de recomponer. según lo establezca la ley. Las autoridades proveerán a la protección de este derecho. a la utllización racional de los recursos naturales. a la preservación dei patrlmonio natural y cultural y de la diversldad biológica. y a la información y educación ambientales. 

O art. 41 da Constituição Argentina guarda simetria com o art. 225 da Constituição do Brasil de 1988, pois, ambos os textos garantem o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, que satisfaça as necessidades das gerações do presente e das futuras gerações e o direito ao desenvolvimento sustentável.

No que toca a proteção das áreas de preservação permanente, o texto constitucional argentino retrata a matéria de forma indireta ao dispor da garantia de utilização racional dos recursos naturais; da preservação do patrimônio natural e cultural e, ainda, da garantia da diversidade biológica.

A APP na Argentina é denominada, de acordo com a legislação, como de elevado valor de conservação e de intangibilidade. São inclusas áreas, que por suas aplicações se caracterizam pela preservação; pela conectividade, pelo valor biológico e pela proteção da bacia as quais pertencem.

A gestão do manejo nas áreas ditas como de APP na Argentina é legada aos organismos federais e as províncias, assim indicadas para atuar em cada jurisdição, tendo tais órgãos autonomia de ação, porém desde que respeitada a hierarquia, sendo a Secretaria Ambiental e do Desenvolvimento Sustentável o órgão de maior posição hierárquica.

Na legislação Argentina, entretanto, não há norma administrativa ou legal que condicione ou restrinja o uso de áreas quantificadas como APP. Assim, em tese, toda área de APP é plausível de manejo desde que tomadas as devidas precauções com a minimização do impacto e conservação da qualidade da água e da vida silvestre e aquática, bem como a perpetuidade das mesmas[7]

Conclusão

Decorre, dos apontamentos, que o Estado Brasileiro por muitos anos se manteve inerte quanto as práticas agrícolas sustentáveis de produção de alimentos, quanto a fixação do homem no campo e quanto a preservação do meio ambiente. As áreas de preservação permanente, embora possuíssem proteção legal, na forma do antigo código florestal, foram relegadas ao plano secundário de atenção do Estado, cuja gestão desprezou atributos geográficos e culturais. Como consequência, o Estado Brasileiro cunhou as mazelas da agricultura insustentável, com impacto direto na biodiversidade e no fornecimento de recursos essenciais à vida, como é o caso da produção de água, atingida pelo assoreamento das nascentes e cursos d’água.

No que se refere ao Estado Argentino, o presente escorço indica que a gestão das áreas de preservação permanente é mais adequada, pois, destina às províncias, em atenção aos aspectos geográficos e culturais, a decisão sobre o uso e manejo do ambiente. Por outro lado, há uma preocupação, pois, a literatura estudada, até o presente momento, indica a ausência de norma específica para proteção das áreas de preservação permanente.

 

[1] LÓPES NETTO, Amazile. Políticas públicas para o desenvolvimento rural sustentável em ambientes de montanha no Brasil e na Argentina. 2013. 167 f. Tese (Doutorado em ciência, tecnologia e inovação agropecuária. Universidade Rural do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2013. 

[2] Ecodesenvolvimento. Disponível em http://www.ecodesenvolvimento.org/ecodesenvolvimento - acesso em 07 de setembro de 2017

[3] LÓPES NETTO, Amazile. Políticas públicas para o desenvolvimento rural sustentável em ambientes de montanha no Brasil e na Argentina. 2013. 167 f. Tese (Doutorado em ciência, tecnologia e inovação agropecuária. Universidade Rural do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2013.

[4] MAZZUCATO, Mariana. Estado empreendedor. Desmascarando o mito do setor público vs o setor privado. Tradução Elvira Serapicos. 1ª ed. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.

[5] MACHADO, José Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21ª ed. Malheiros: São Paulo, 2012, pg. 870

[6] ARGENTINA. Constitucion. Constitucion de La Nacion Argentina. Santa Fé. Congreso General. 1994. 

[7] Disponível em http://www.fmase.com.br/FMASE/arquivos/bibliotecavirtual/estudos/25.03.2010%20-%20Estudo%20comparativo%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20florestal%20-%20APP%20e%20RL.pdf – acesso em 01 de set. 2017.

 

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