A fundamentação da decisão judicial e sua dupla função no estado constitucional (Parte 2) – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

25/04/2016

Leia também a Parte 1.

O DISCURSO DA ORDEM JURÍDICA: FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL E A CONSTRUÇÃO DA RATIO DECIDENDI.

Saindo da perspectiva do discurso do caso concreto, abordada na coluna anterior, é certo que as razões da decisão importam, no sistema de precedentes, não apenas às partes, mas aos juízes e à sociedade como um todo. Para os juízes, porque são eles que devem dar coerência à aplicação do direito; para os jurisdicionados, porque necessitam de segurança jurídica e previsibilidade para desenvolverem suas atividades cotidianas.[1]Abandona-se, portanto, a ideia do discurso para o caso concreto e passa-se à análise da decisão judicial (seus fundamentos), na ótica do sistema de precedentes judiciais.

Nessa senda, incumbe asseverar que um precedente é uma decisão judicial que contém em si mesma um princípio, esse princípio subjacente que forma a parte impositiva (vinculante) da decisão é o que se denomina de ratio decidendi.[2] Numa visão mais direcionada ao sistema do common law, Neil Maccormick tece os seguintes comentários acerca da ratio decidendi:

Uma ratio decidendi é uma decisão expressa ou implicitamente dado por um julgador que é suficiente para sedimentar uma questão do Direito colocada em discussão pelos argumentos das partes num caso, sendo uma questão para a qual uma decisão era necessária para a justificação (ou para uma de suas justificações alternativas) do julgamento no caso.[3]

Percebe-se dessa singela incursão pelo conceito de ratio decidendi, que ele se mostra ambíguo[4] e carece de maiores enfrentamentos, o que não perpassa o objeto da presente coluna, pois o que se propõe aqui é um contributo à construção da ratio decidendi, por meio de uma releitura da garantia da motivação da decisão judicial, e não a sua conceituação, como se deixou claro já na coluna anterior.

Importante voltar os olhos, portanto, ao art. 926, do NCPC, que exige que os tribunais mantenham sua jurisprudência estável, íntegra e coerente, sendo certo que a polissemia da palavra “jurisprudência”, nesse caso, engloba a súmula e, principalmente, o precedente judicial, do qual aquela é sempre dependente, sem perder de vista a fundamentação da decisão judicial.

Sobre o alcance da coerência e integridade no Novo Código de Processo Civil, Lênio Streck assim vaticinou:

A coerência e a integridade são, assim, os vetores principiológicos pelos quais todo o sistema jurídico deve ser lido. Em outras palavras, em qualquer decisão judicial a fundamentação — incluindo as medidas cautelares e as tutelas antecipadas — deve ser respeitada a coerência e a integridade do Direito produzido democraticamente sob a égide da Constituição. Da decisão de primeiro grau à mais alta corte do país. Se os tribunais devem manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, logicamente os juízes de primeiro grau devem julgar segundo esses mesmos critérios, a partir da “chave de leitura” estabelecida no parágrafo 4º do artigo 943 [927], que sequencia o artigo 942 [926], holding hermenêutico do capítulo e de todo o NCPC.[5]

Se por um lado a coerência vincula o juiz ao que restou decidido no passado, por outro a integridade não permite que decisões erradas sejam perpetuadas, pois o direito que todos têm de ser tratados com mesma consideração e respeito impõe que o Poder Judiciário leve o caso a sério e o trate com extremo cuidado e não apenas como mais um de uma série.

Parece evidente, que a construção da ratio decidendi depende de uma correta fundamentação da decisão judicial, ou seja, que o magistrado realmente leve a sério os argumentos das partes e com eles dialogue, deixando-se influenciar por aquilo que de relevante foi deduzido pelas partes no processo.

Mostra-se imprescindível, ainda, que o magistrado realmente enfrente todos os fundamentos deduzidos pelas partes, criando, assim, um princípio jurídico que possa ter pretensão de universalização, abarcando os casos similares vindouros, o que apenas se consegue com uma atenção redobrada à motivação da decisão judicial, na linha do que foi salientado na coluna da semana passada.

A releitura do contraditório não permite que o magistrado não leve a sério as razões deduzidas pelas partes no processo, até porque qualquer fundamentação só é legítima dentro do Estado Democrático de Direito se for balizada pelo contraditório. O juiz não é livre para decidir como bem entender, houve uma razão para a supressão do solipsista princípio do livre convencimento motivado do Novo Código de Processo Civil.

Para a construção da ratio decidendi, tem o tribunal que analisar todos os fundamentos da tese jurídica discutida pelas partes, sejam elas favoráveis ou contrárias, não se limitando a analisar somente aquelas que poderiam infirmar a conclusão, isso em razão da pretensão de universalização dos motivos determinantes da decisão, ainda que a Lei nº. 13.256, tenho revogado o NCPC, ainda antes da sua entrada em vigor, nesse especial, limitando o enfrentamento das questões àquelas tidas como relevantes à tese jurídica discutida (art. 1.038, § 3º, do NCPC, com a redação dada pela Lei nº. 13.256/2016).

Já foi objeto de reflexão aqui nesta sessão, que a forma como as Cortes Supremas[6] do Brasil decidem, não corrobora com a aplicação da Teoria dos Precedentes Judiciais Obrigatórios. Salientou-se naquela coluna, que no Brasil impera um tipo de argumentação fundada em argumentos de autoridade[7], com opiniões pessoais dos ministros das cortes (autoridades), que decidem por mera agregação de opiniões, onde “a pessoa que toma a decisão e a decisão em si mesma são mais importantes do que o raciocínio desenvolvido para se chegar nela”.[8]

José Rodrigo Rodriguez, em estudo de cunho inclusive sociológico, assim se manifesta acerca do que denomina de Jurisdição Opinativa:

O caráter opinativo de nossa jurisdição fica mais claro quando examinamos julgamentos colegiados, por exemplo, os do STF, em que vários juízes, ou seja, várias autoridades devem opinar sobre o mesmo caso. Mesmo nos casos em que há unanimidade no julgamento, ou seja, em que os 11 juízes do STF decidem no mesmo sentido, todos eles fazem questão, especialmente em casos de grande repercussão pública, de externar sua opinião.[9]

Não se tem nas cortes supremas uma unicidade de julgamento, tampouco elas se preocupam em redigir a opinião da corte sobre os casos ou teses jurídicas. Limitam-se elas a juntar um emaranhado de opiniões, previamente fornecidas nos votos individuais escritos de cada ministro, ou com a juntada das notas taquigráficas, sem qualquer organização, tornando o acórdão um documento longo, desconexo, assistemático, “que torna praticamente impossível reconstituir a argumentação do tribunal de maneira racional e unificada”.[10]

O problema é ainda maior. Trouxe grande preocupação aos magistrados brasileiros o § 1º, do art. 489, do NCPC. Os argumentos contra referido dispositivo são variados, desde a perda da autonomia do Poder Judiciário à demora na solução dos litígios, o que levou, inclusive, à edição do Enunciado nº. 47 do ENFAM, que assevera: “o art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais”.

Referido enunciado, ainda que analisado com parcimônia, ao fim e ao cabo, afirma que o sistema de juizados especiais brasileiros não deve obedecer à garantia fundamental à motivação das decisões judiciais, bem assim, no que também interessa ao presente texto, a eles não se aplica o sistema de precedentes obrigatórios, ainda que tais precedentes sejam provenientes das cortes supremas.

Convém esclarecer, para se evitar mal entendidos, que não se está afirmando que as decisões das turmas recursais e das turmas de uniformização de jurisprudências, segundo o novo código, seriam precedentes obrigatórios, não é isso. Mas se não se aplica ao sistema de juizados as regras insertas no § 1º, do art. 489, do NCPC, decerto nenhum precedente poderá ser aplicado naquele sistema, pois para o manejo escorreito da ratio decidendi, faz-se imprescindível a observância integral do que preceituado no referido parágrafo. Ninguém, seriamente, pode crer que não serão aplicados nos juizados especiais os precedentes emanados das cortes supremas, o que torna letra morta o Enunciado nº. 47, do ENFAM, para dizer o mínimo.

Diante dessas inexoráveis constatações, sobretudo, de que as cortes supremas decidem com agregação de opiniões, estas quase sempre alicerçadas em argumentos de autoridade, sem que haja qualquer preocupação das cortes em redigir um acórdão sistemático, de onde seja possível se extrair a ratio decidendi, decerto o manejo dos precedentes obrigatórios no Brasil será tarefa hercúlea, empresa que levará tempo e esforço contínuo da dogmática jurídica, notadamente da doutrina.

Tem-se, pois, que o discurso da ordem jurídica, naquilo que diz respeito à garantia fundamental à motivação das decisões judiciais, imprescinde de uma mudança de paradigmas e de um abandono das tentativas de objetivação do direito, bem como da consciência de si do pensamento pensante. Para o uso correto dos precedentes judiciais há de se dar ênfase ao diálogo, à garantia do contraditório, como também à fundamentação da decisão judicial levando-se em consideração a intersubjetividade, abandonando os argumentos de autoridade que permeiam o imaginário das Cortes Supremas. Se o novo impõe uma releitura das premissas dogmáticas atuais, esta tem que ser realizada tendo em conta a Constituição, somente assim qualquer interpretação se mostrará legítima. É o que esperamos e lutaremos para conseguir.


Notas e Referências:

[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, p. 221.

[2] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes Judiciais e Segurança Jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 216.

[3] Apud BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz. op. cit. p. 216. A ratio decidendi is a ruling expressly or impliedly given by a judge which is sufficient to settle a point of law put in issue by the parties arguments in a case, being a point on which a ruling was necessary to his/her justification (or one of his/her alternative justifications) of the decision in the case. Tradução livre do autor.

[4] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, pp. 261/262.

[5] STRECK, Lênio. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? In:  Conjur – Consultor Jurídico. 18.12.2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-combater-decisionismos-arbitrariedades>. Acesso em 10.08.2015.

[6] Cortes Supremas aqui entendidas como cortes de precedentes e não de revisão, das quais o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, no que interessa ao presente trabalho, são espécies. Cf. MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013.

[7] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013, p. 62.

[8] Idem. ibidem.

[9] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013, p. 70.

[10] Idem. ibidem.


 

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