A fundamentação da decisão judicial e sua dupla função no estado constitucional (Parte 1) – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

18/04/2016

Leia também a Parte 2.

A fundamentação da decisão judicial deve ser analisada sob a ótica de dois discursos jurídicos[1]: i) discurso voltado ao caso concreto, direito fundamental previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal, com sua inata ligação com o contraditório participativo; e ii) discurso voltado a ordem jurídica, com o objetivo de trazer estabilidade, coerência e integridade ao sistema, dentro da perspectiva do sistema de precedentes judiciais.

Nessa toada, tem-se que buscar analisar a fundamentação da decisão judicial, num primeiro momento, como voltada ao caso concreto, para, ao depois, ser possível se aventurar na perspectiva da construção da ratio decidendi, tarefa que não se mostrará fácil, diante da lacuna ainda existente na doutrina nacional.

1. O Discurso do Caso Concreto: A Garantia Fundamental da Motivação da Decisão Judicial.

A garantia da motivação das decisões judiciais possui natureza de direito fundamental do jurisdicionado.[2] Nesse contexto, deve ser tida como um direito fundamental a ser imposto ao Estado, que tem o dever de fundamentar a decisão judicial. O dever de fundamentação dentro tem dupla função, permitindo, num primeiro momento, que as partes do processo possam controlar a decisão judicial mediante a interposição de eventuais recursos, pois cientes das razões que levaram o magistrado a decidir dessa ou daquela forma, poderão analisar se houve erro na decisão judicial (de procedimento ou de julgamento), passível ser impugnado mediante o recurso cabível, possibilitando, ainda, que os magistrados que compõem o órgão recursal possam reanalisar a decisão, para mantê-la, reformá-la ou invalidá-la. Tal função denomina-se de endoprocessual.[3]

Já a função extraprocessual, que está ligada às garantias fundamentais de administração da justiça, inerentes ao Estado Democrático de Direito, propicia um controle externo difuso do exercício do poder jurisdicional, possibilitando à sociedade conhecer e analisar as razões pelas quais o poder jurisdicional é exercitado no caso concreto. Trata-se, pois, de um valor político fundamental, possibilitando o controle do exercício do poder pela sociedade, como também um valor político instrumental, pois através do controle da motivação da decisão judicial é possível também analisar se outros princípios fundamentais foram realizados.[4]

Em analisando as características da fundamentação, em seu aspecto endoprocessual, tem-se ainda a exigência que a sentença seja clara, consistente e completa. A clareza consiste na necessidade de que as palavras sejam veiculadas, no texto, de forma precisa, aptas a não suscitarem no intérprete ambiguidades e/ou vaguidades. Quanto mais preciso o texto, menor é a possibilidade de significações obscuras ou dúbias, o que desemboca na insuficiência da fundamentação[5].

No que diz respeito à consistência, sua observância visa a impedir o seu contrário, ou seja, a contradição, que deve ser analisada intratexto. A demonstração da contradição deve ser realizada entre os elementos essenciais da decisão e não com algo externo a ela, que consistiria ora em erro de fato, ora em erro de direito. Para a caracterização da contradição basta construir, a partir da fundamentação e do dispositivo, a norma jurídica completa, sendo contraditória a sentença (decisão judicial) cujo antecedente não der causa ao consequente respectivo, seja na norma primária ou secundária, pois a sentença contraditória não é apta a construir uma norma jurídica completa.[6]

A completude pressupõe uma fundamentação completa, sem lacunas ou omissões, impondo ao magistrado que analise todas as questões (ponto prejudicial, questão prejudicial e causa prejudicial, preliminares) de fato e de direito relevantes, antecedentes ao julgamento, que se encerra na parte dispositiva da decisão.[7]

O problema está na identificação de quais seriam essas questões relevantes, pois é certo que o magistrado não é obrigado a se manifestar sobre tudo que for deduzido pelas partes no processo. Dúvidas não há, malgrado o que explicitado acima, que o magistrado é obrigado a analisar todos os argumentos deduzidos pelas partes capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador, o que veio a ser expressamente tipificado pelo Novo Código de Processo Civil (art. 489, § 1º, IV), como espécie de decisão não fundamentada.

Nessa perspectiva, não basta à parte ter direito de deduzir argumentos em juízo, estes têm que ser contemplados pelo órgão julgador, que tem o dever de a elas conferir atenção, não apenas deles tomando conhecimento, mas os considerando, séria e detidamente, nas razões apresentadas na decisão.[8]

É de lembrar, que a garantia fundamental (ou direito) à motivação da decisão judicial, se levada a sério, tem o condão de limitar decisionismos e solipsismos judiciais, pois está vocacionada ao controle da decisão judicial, que deve considerar, séria e detidamente, os argumentos deduzidos pelas partes, impondo ao magistrado o dever de mesma consideração e respeito com os demandantes. Não se pode mais aceitar o vetusto Princípio do Livre Convencimento Motivado, que, aliás, sequer foi reproduzido no Novo Código de Processo Civil, pois o magistrado não é livre para decidir como bem lhe aprouver, mas deve construir seus argumentos com base no contraditório participativo, que acaba por restringir a discricionariedade judicial.

Não se deve, pois, confundir decisão judicial com ato de escolha. Na decisão judicial o magistrado não está diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto e escolhe aquela que lhe parece mais adequada. Decidir não é sinônimo de escolher.[9] A decisão judicial é um ato de responsabilidade política, legitimado pela sua fundamentação, que deve sempre levar em conta os argumentos deduzidos pelas partes, mesmo porque os limites da fundamentação perpassam os contornos do contraditório participativo e do modelo dialógico de processo.

A motivação da decisão judicial deve ser encarada como Princípio Constitucional, até porque se trata de um direito (garantia) fundamental, sendo da natureza mesma dos direitos fundamentais a sua análise na condição de princípios constitucionais.

Dito de outro modo, o dever de motivar decorre da aplicação de uma norma jurídica de direito fundamental, que impõe ao Estado-Juiz, para o exercício legítimo da função jurisdicional, que a decisão seja fundamentada, sob pena de invalidade (CF, art. 93, IX). Não é demais lembrar que o Brasil é um Estado Constitucional, onde sempre haverá a prevalência dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais de justiça, tudo a legitimar um controle de constitucionalidade em cada decisão emanada do Poder Judiciário, que pressupõe uma escorreita fundamentação.[10]

A distinção entre texto e norma, a utilização de cláusulas abertas, conceitos jurídicos indeterminados, princípios como normas jurídicas, exigem do intérprete um cuidado redobrado com a interpretação, pois o método subsuntivo, inerente à aplicação da regra jurídica, não se mostra mais como o único método para a aplicação do direito, tudo a refletir na fundamentação da decisão judicial, que deve se preocupar sempre em concretizar, com base na faticidade, a norma jurídica, atribuindo-lhe o sentido que a comunidade jurídica entende por autêntico.

Mais que isso, os princípios processuais constitucionais, aqui entendidos não como princípios epistemológicos ou valores, mas como normas jurídicas, que possuem natureza deôntica, conformam o direito processual civil à Constituição Federal, vinculando o magistrado no exercício da função jurisdicional, que deve sempre tê-los em conta quando da prolatação de qualquer decisão judicial. Tal assertiva não se limita aos postulados normativos aplicativos, mas aos princípios constitucionais como um todo, por espelharem a moral política da sociedade, embora a moral não possa ser utilizada como corretiva do direito, mas sempre numa relação de cooriginalidade.[11]

Embora não se visualize os princípios como mandamentos de otimização, à luz da teoria argumentativa de Alexy[12], que no Brasil vem sendo usado como argumentos performativos, a legitimar decisionismos e arbitrariedades, não se pode negar que princípios devem ser vistos como normas jurídicas, mas sua utilização não pode ser tida como uma abertura interpretativa, ao contrário, os princípios tem o condão de fechar a interpretação, diante da reconstrução da história institucional, não se permitindo que se diga qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Se por um lado os princípios constitucionais, no Estado Democrático de Direito, devem ser tomados como normas, por outro, na concretização dessas mesmas normas, a faticidade não pode ser deixada de lado. Na verdade, essa é a função dos princípios, reintroduzir o mundo prático no direito, funcionando como uma chave hermenêutica, a limitar o subjetivismo judicial, o que se obtém com a fusão de horizontes e no direito enquanto tradição.

Inobstante a visão hermenêutica dos princípios constitucionais, que não os têm como uma autorização para aberturas interpretativas, essa mudança de paradigmas, das regras aos princípios, tem reflexos interessantes na fundamentação da decisão judicial, pois na utilização de princípios como razões de decidir, tem o magistrado o dever de lhes atribuir sentido normativo, o que apenas se obtém através da applicatio[13], ou seja, a atribuição de sentido a ser dada a norma jurídica (princípios e regras) deve sempre levar em consideração a faticidade, o caso concreto.

Não por outro motivo, o Novo Código de Processo Civil, no seu já tão comentando art. 489, § 1º, I e II, busca reintroduzir o mundo prático no direito, vinculando o juiz ao caso concreto, quando reputa não fundamentada uma decisão judicial que se limitar a reproduzir atos normativos e/ou conceitos jurídicos indeterminados sem que se lhes explique o alcance no caso concreto. Até mesmo a ponderação, bem ao gosto da teoria da argumentação jurídica, foi contemplada no parágrafo único do mesmo dispositivo, tudo a indicar que a aplicação de princípios como razão de decidir não afasta, ao contrário, impõe um dever redobrado de motivar as decisões judiciais.

A garantia fundamental à motivação da decisão judicial, como norma de direito fundamental, impõe ao magistrado o dever de fundamentar as suas decisões sob pena de exercício ilegítimo da função jurisdicional, não havendo, nessa perspectiva, qualquer necessidade de se regrar esse dever em normas infraconstitucionais, daí ser desmedida a preocupação dos juízes com o art. 489, § 1º, do NCPC. A Constituição Federal já lhes impunha o dever de motivar as decisões, se este dever não estava sendo cumprido dentro dos moldes do Estado Constitucional, nunca é tarde para se conformar a atividade jurisdicional aos preceitos constitucionais.

Por fim, o reconhecimento de que o Brasil é um Estado Constitucional, onde prevalecem os direitos fundamentais, os princípios constitucionais de justiça, a descoberta dos princípios como normas jurídicas, as cláusulas gerais, os conceitos jurídicos indeterminados, tudo isso atribui ao juiz ônus argumentativo redobrado quando da prolatação das decisões judiciais, para não incorrer em decisionismos e arbitrariedades, mesmo porque a decisão judicial é um ato de responsabilidade política e não da moral individual corretiva do direito.

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Na próxima coluna abordarei o discurso voltado a ordem jurídica, com o objetivo de trazer estabilidade, coerência e integridade ao sistema, dentro da perspectiva do sistema de precedentes judiciais e da chave hermenêutica contida no art. 926, do NCPC. Até lá!


Notas e Referências:

[1] MITIDIERO, Daniel. Fundamentação e Precedente: dois discursos a partir da decisão judicial. in: MARINONI: Luiz Guilherme (Org.) A Força dos Precedentes: estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012, pp. 125-142.

[2] DIDIER, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael A. Curso de Direito Processual Civil. 10ª ed. v. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 314. Não é demais lembrar, que há na doutrina quem defenda ser a fundamentação da decisão judicial uma garantia, pois asseguraria a própria coexistência dos Poderes da República, possibilitando a existência do Estado de Direito. Por todos, Beclaute Oliveira Silva, A Garantia Fundamental à Motivação da Decisão Judicial. Salvador: Juspodivm, 2007, p. 111.

[3] Cf. TARUFFO, Michele. A Motivação da Sentença Civil. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 20.

[4] Idem. ibidem. p. 21

[5] Cf. SILVA, Beclaute Oliveira. A Garantia Fundamental à Motivação da Decisão Judicial. Salvador: Juspodivm, 2007, p. 170.

[6] Idem. ibidem. p. 171.

[7] Idem. ibidem. p. 172.

[8] MENDES, Gilmar. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 168

[9] STRECK, Lenio. O Que É Isto – Decido Conforme a Minha Consciência? 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 107.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, pp. 99-156.

[11] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

[12] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[13] GRAU, Eros Roberto. Por que Tenho Medo dos Juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6ª ed. refundida. São Paulo: Malheiros, 2014.


 

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