A FUNÇÃO ECOLÓGICA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

10/07/2024

Uma visão de curto prazo para o colapso de ecossistemas – capitaneados pelo alerta da crise ecológica climática e das enchentes no Rio Grande do Sul – deve ser a centelha para a tomada de medidas em todas as esferas científicas, pelo que se propõe – no recorte de uma análise voltada a um campo específico do Direito, o Civil – o estudo da adequação da Sustentabilidade na estrutura normativa do ordenamento jurídico pátrio e, por meio dessa conceituação, elaborar como pode se dar o seu desdobramento efetivo como norma que oriente as relações privadas que atingem a vida cotidiana, principalmente através do princípio da Boa-fé.

Embora o Direito Civil tenha se consolidado numa linha de abrangência de eficácia horizontal dos direitos fundamentais às suas relações, no que tange à proteção ecológica, essa incidência ainda é incipiente. A livre iniciativa ainda é o principal vetor da dinâmica econômica dos países, o que torna esse capítulo instigante, tornando-se necessária a averiguação sobre uma segunda onda de constitucionalização, que possa levar às relações privadas comuns (como os contratos e o Direito das Coisas) aos ditames protetivos ecológicos.

Os princípios ambientais avançam para o interior do direito subjetivo da propriedade, como supervalor metaindividual que irá concretamente fundamentar a tensão entre as funções individual e social da propriedade (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 333).

Assim como foi – e ainda o é – com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a Sustentabilidade – como norma de Direito -  passa a informar que os preceitos da eticidade, sociabilidade e operabilidade ou concretude – principalmente por meio do princípio da Boa-fé – possibilitem um arsenal teórico que permita reprimir/reparar condutas; restringir a liberdade contratual, quando os negócios envolvam problemas ao meio ambiente, para exigir condutas protetivas diretas e indiretas (deveres anexos); para justificar invalidades verificadas no objeto dos negócios ou na vulnerabilidade da vontade das partes (nas espécies de atos nulos ou anuláveis); e, principalmente, servir como base hermenêutica e integradora de condutas.

Os tratados, leis e princípios jurídicos existentes devem ser interpretados à luz do princípio da Sustentabilidade. Ele fornece orientações fundamentais para a interpretação das normas jurídicas e estabelece a referência para a compreensão da justiça, direitos humanos e soberania do Estado. Ao fazer isso, a Sustentabilidade representa o conceito fundamental de emergentes “direitos sustentáveis”, baseados na justiça ecológica, direitos humanos e instituições (BOSSELMAN, 2015, p. 64).

Quando do surgimento do princípio na teoria geral dos contratos, os exemplos e aplicações foram demasiadamente marcantes, pois, como o contrato faz parte do âmago da sociedade, atingindo a todos direta ou indiretamente, a função social e a Boa-fé puderam permitir a interferência externa (estatal, em muitos casos), impedindo determinadas contratações draconianas, norteando planos empresariais em prol do consumidor e/ou do idoso, além de outras medidas em busca de isonomia, redução da vulnerabilidade – sem se perder a sua questão primordial interpretativa aos conflitos surgidos.

Em se tratando das origens no direito contratual – que repercutiu em todo o ordenamento – o princípio da Boa-fé é norma que exige transparência e lealdade aos atos jurídicos em geral, obrigando aos partícipes ao cumprimento de forma direta, e também em condutas acessórias como nos deveres anexos que exigem informação e segurança; não apenas antes, mas durante e depois das contratações.

Torna-se agora fundamental que na aplicação no princípio da Boa-fé, lhe seja agregado subsídio ecológico ao seu próprio conceito, ou seja, para que toda a característica normativa que exige lealdade, transparência e correição aos atos de Direito, possa também carregar a Sustentabilidade aos negócios em que atue como norma obrigacional, direta ou indiretamente. Sugere-se, desta feita, que as três funções clássicas do princípio – (1) função de controle, (2) função de integração e (3) função interpretativa – possam contar com mais uma, a (4) Função Ecológica, que vai beber na fonte das demais, interagindo, bem como buscar nessas primeiras, com premissas teóricas para aplicação específica. Ficam renovados, assim, os próprios deveres anexos e de conduta da Boa-fé (MACEDO, 2023, p.217).

Dessa maneira, sob os impulsos da dimensão civil da Sustentabilidade, a sua função protetiva ecológica tanto vai reverberar nesses deveres – levando proteção e controle ecológico, obrigação de decodificação das informações ambientais, transparência ao descarte dos produtos, por exemplo – quanto vai também receber deles características próprias da Boa-fé tradicional, da Boa-fé objetiva, do venire contra factum proprium e demais deveres de conduta do princípio.

Nessa linha, interessante a doutrina argentina acerca do “eco-abuso”, que já incorpora essa linhagem da Boa-fé e da função de controle no próprio código vizinho em legislação estrita, mas que serve de referência ou alinhamento à cláusula geral do art. 187 do CC/2002, como abertura para verificação de situações que exijam o controle pela Boa-fé. Enfim, os deveres integrativos, de controle, e interpretativos, também devem passar a trazer os ditames da proteção ambiental, já que ainda são inexistentes no código tais dispositivos específicos, o que também pode reverberar em medidas de controle acerca da obsolescência de produtos, nos moldes do que vem ocorrendo no modelo europeu.

Outro aspecto relevante no desenvolvimento deste novo instituto de direito privado (o abuso da lei ambiental ou eco-abuso) é o elemento "Boa-fé" que a caracteriza, porque o princípio da Boa-fé, não apenas é um princípio geral de direito, conforme estabelecido no Artigo 9 do CCYC, mas também porque a Boa-fé, que é “o farol que ilumina toda a lei”, é um elemento essencial para o exercício do direito ambiental (CAFFERATTA, 2020a, s/p., tradução nossa).

O professor Sozzo (2020), que também é referenciado como o autor da expressão “eco-abuso”, ajuda a conceituar o próprio abuso de direito, assim como identifica o “eco-abuso” como “cláusula de sociabilidad” e como “herramienta para la protección de los ecossistemas”, no seguinte:

[...] Então, o que significa agir de Boa-fé? Comportar-se bem com o outro e não abusar dos direitos individuais? Atender a função social que eles desenvolvem ou exercê-los de forma que satisfaça as necessidades individuais e, ao mesmo tempo, sociais? Este é o primeiro contexto em que deve ser realizada a análise das normas que fundamentam o eco-abuso de direitos (arts. 10 e 14 do CCC). [...] O segundo contexto, que é próprio da cláusula de eco-abuso de direito (art. 14, parágrafo segundo), é o da introdução no CCC do princípio da Sustentabilidade dos ecossistemas que está expressamente formulado no artigo 240 que articula o dispositivo de normas distribuídas por toda a CCC e que têm por objetivo contribuir para a proteção dos ecossistemas nas relações entre os indivíduos. (5) Este segundo contexto explica o rumo especial que o abuso de direitos tem tomado em relação à Sustentabilidade dos ecossistemas e à defesa da propriedade coletiva em geral. Em particular, este segundo contexto permite dimensionar o eco-abuso de direito como a forma pela qual a função ecológica é introduzida na estrutura dos direitos subjetivos, que tem um significado crucial, e como a partir daí uma conexão com a função preventiva de responsabilidade por danos para obter a cessação das ações ou a recomposição (art. 10, parágrafo terceiro) (SOZZO, 2020, p. 25, tradução nossa).

Também torna-se pertinente estudar e sugerir o dever de decodificação – que é a explicação pormenorizada das questões ecológicas envolvidas nos produtos e contratos - por meio da transparência exigida pelo princípio, tanto por seu próprio conceito (pois o princípio da Boa-fé exige a transparência como um dos seus escopos), quanto pelo dever acessório de capacitação sobre a informação, no sentido de levar as especificações nos produtos (e projetos de lei e políticas públicas) de maneira traduzida em linguagem comum.

E para além do dever de informar de forma transparente, exige-se a capacitação da população, permitindo, mais do que a visualização clara sobre os conteúdos dispostos, a possibilidade de compreensão sobre os termos específicos ambientais, possibilitando cobrança e ações que reforcem a cidadania de um consumo adequado ao que clama o planeta.

Assim, como sucedâneo dessa nova roupagem da Boa-fé objetiva, que sejam decodificadas como informação qualificada as leis e questões ambientais técnicas, aos contratos, cláusulas, produtos, rótulos e toda gama informes que fazem essa conexão civil-ambiental ao cidadão comum, o que pode colaborar na redução de sua vulnerabilidade volitiva, capacitando-o para os devidos usos, reclames e fiscalização.

Assim, tais funções tratadas principalmente nos artigos 113, 187 e 422 CC/2002, sobreditos, remetem ainda à Boa-fé objetiva e os seus deveres anexos (ou implícitos), já que oriundos das funções de interpretação e integração, principalmente; bem como a função de controle, que reforça que o descumprimento às normas de Boa-fé, e que é ato ilícito passível de reparação, além da necessidade de obrigação de informação e transparência.

Vale frisar que o princípio é um conceito aberto e adequado ao caso concreto, onde não há modelo fixo e pré-determinado, como em uma característica positivista de aplicação direta da regra ao fato. Assim, que as quatro funções da Boa-fé (já contando com a protetiva ecológica) vão reverberar em condutas ativas, passivas, e nos deveres anexos de informação e cuidado – antes, durante e depois dos atos jurídicos – de forma dinâmica e não fechada, ou estanque.

Isto sem falar em outros inúmeros exemplos, que ficarão ainda mais maleáveis, e outros tantos para aplicabilidade do princípio ao se pensar nessa quarta função protetiva, como ao se imaginar que a informação sobre o destino do lixo derivado de um condomínio (num eventual conflito de normas que ditam a obrigatoriedade de fossa séptica ou não, por exemplo) é tanto dever de integração, quanto de controle, e até mesmo de interpretação que irá ditar e determinar, em conjunto e com a nova missão, tal desígnio.

Também a nova função protetiva ecológica, aliada às funções de controle e integração, deve passar a exigir condutas em um processo permanente de caráter pedagógico, fazendo introduzir nas atitudes cotidianas a ideia de proteção ecológica, além de inserir a certeza pela ilicitude do ato (e suas consequências), em caso de descumprimento e abuso.

Nessa linha, se a função de controle da Boa-fé configura como ato ilícito passível de reparação um abuso de direito (como o dano moral por cobrança constrangedora por parte do credor), se a função integrativa cria deveres anexos (como a segurança nos contratos de transporte ou a necessidade de informação sobre os riscos do fumo), e se a função interpretativa exige a atividade hermenêutica em face de um pensamento comum (como a análise de uma cláusula contratual de um plano de saúde em prol do aderente, pela Boa-fé objetiva), a função ecológica vai exigir – por ela própria e em interface com as demais – que os atos civis pesem a questão ambiental em suas ações e resultados: como no exemplo de se fomentar a instalação de composteiras domésticas para se aproveitar os restos orgânicos nos restaurantes, ou de se pensar na destinação dos resíduos, ao se redigir um contrato de prestação de serviços/empreitada.

A Função Ecológica exige que a Sustentabilidade insira o cuidado com o meio ambiente ecológico em todas as atividades civis, da mesma forma que exigiu controle, integração (deveres anexos) e interpretação, sob pena de responsabilização, invalidação dos atos e demais sanções amplas previstas no ordenamento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sinais sobre a crise ecológica são vistos “a olhos nus” e o marco científico civil deve dar contorno teórico e metodológico à questão. Por meio de observação empírica e cotidiana – ou até mesmo de sensações de agonia, tristeza e abatimento com os efeitos das recentes cheias no Sul, da pandemia, de incêndios, de desmatamento, de lixo nas ruas – torna-se premente que algo deve ser feito em relação às questões ecológicas.

Da mesma maneira que o Direito Privado precisou se instrumentalizar de arcabouço científico e filosófico para inserir ditames éticos e coletivos aos seus institutos, essa eticidade, agora, se mostra evidente a iluminar esse mesmo Direito Civil com a normatividade pela Sustentabilidade em seu real sentido jurídico.

Adiante, foi possível sugerir que as três funções clássicas do princípio – função de controle, função de integração e função interpretativa – possam contar com mais uma, a Função Ecológica, que vai beber na fonte das demais, interagindo, bem como buscar nessas primeiras, com premissas teóricas para aplicação específica. Ficam renovados, assim, os próprios deveres anexos e de conduta da Boa-fé. 

Esses deveres anexos são aqueles oriundos de suas funções interpretativa, integrativa e de controle, no sentido de trazer obrigações implícitas aos atos civis em acréscimo às obrigações legais, ou no preenchimento de lacunas, como dever de informação, de transparência, de controle ou de prevenção, dentre outros.

Em síntese, o Direito Civil deve se preencher dos ditames ético-ambientais de verdade, em concreto, assim como o foi com a dignidade humana, fazendo-se justificar uma segunda onda de constitucionalização com o exemplo efetivo da aplicabilidade do novo dimensionamento.

O princípio da Boa-fé, tão importante na moldura do CC/2002 ao integrar a eticidade e seus deveres (ou funções), se mostra passível de adequação aos hodiernos institutos, seja na questão contratual – que foi o primeiro de utilização da Boa-fé, inclusive na forma objetiva de alcance à massa de cidadãos – ou seja nos demais ramos em que o princípio estendeu seus tentáculos de interpretação, integração e de controle. Vai poder reverberar na informação, transparência e demais atitudes de cuidado, “pré” e “pós” negociação, também nas questões que possam impactar no meio natural, bem como fundamento a ser laborado juntamente aos princípios ambientais como a prevenção, informação, dentre outros.

Claro é, no entanto, que ainda pode não haver um nexo direto entre a Função Ecológica da Boa-fé e a redução de lixo doméstico, ou a diminuição de plástico como descarte e outros. Mas já pode ser um insight, um reforço normativo, uma semente doutrinária que florescerá em prática efetiva futura – numa passagem de um direito que “zela” para um direito que “transforma” – e que possa auxiliar na mudança de hábitos contratuais, transmutados para uma desaceleração do consumo ou para atitudes mais coerentes de compras e serviços.

 

Notas e referências:

ARGENTINA. Código Civil y Comercial de la Nación. Buenos Aires, 01 ago. 2015. Disponível em: http://www.saij.gob.ar/docs-f/codigo/Codigo_Civil_y_Comercial_de_la_Naciopdf. Acesso em: 13 fev. 2021.

BOSSELMAN, Klaus. O princípio da Sustentabilidade: transformando direito e governança. Tradução de Phillip Gil França. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

CAFFERATTA, Néstor A. Abuso del derecho contra el ambiente. Revista electrónica de derecho ambiental, Sevilla, n. 36, jul. 2020. Disponível em: https://huespedes.cica.es/gimadus/. Acesso em: 30 nov. 2020.

CAFFERATTA, Néstor A. Derecho privado ambiental a la luz del Código Civil y Comercial. In: VIII CONGRESO NACIONAL DERECHO AMBIENTAL (VULNERABILIDAD AMBIENTAL). Actualidad Jurídica Ambiental, Sevilla, n. 102/2, p. 12-59, jun. 2020. Disponível em: https://www.actualidadjuridicaambiental.com/wp-content/uploads/2020/06/2020_06_Suplemento-102-2-Junio.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: reais. 13.ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

MACEDO, Humberto Gomes. A dimensão civil da Sustentabilidade e a função ecológica do princípio da Boa-fé. Belo Horizonte, São Paulo: D´Plácido, 2023.

SOZZO, Gonzalo. El eco-abuso de derecho cinco años después. Revista de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, Santa Fé, n. 11, p. 23-38, sept. 2020. Disponível em: https://bibliotecavirtual.unl.edu.ar/publicaciones/index.php/NuevaEpoca/article/view/9584. Acesso em: 30 nov. 2020.

 

 

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