Introdução.
O prélio entre ruralista e ambientalista ganhou um novo campo de batalha, o licenciamento ambiental. Trata-se da reedição do embate ocorrido durante as discussões que envolveram a votação do Novo Código Florestal, agora, contudo, a partir da discussão pontual sobre o sistema de licenciamento ambiental do Brasil.
Os órgãos federais, responsáveis pela gestão ambiental, estão preocupados com possíveis retrocessos no processo de licenciamento e de fiscalização ambiental. A flexibilização, segundo os órgãos, atingiria, principalmente, as atividades ligadas a obras de infraestrutura (construção de estradas e obras de saneamento básico) e as atividades agropecuárias e agrícolas[1].
Interessa-nos, no presente artigo, analisar as principais propostas de mudança para o licenciamento ambiental e os reflexos para a garantia ao meio ambiente sadio e equilibrado.
As regras do licenciamento e as propostas de flexibilização.
Sobre a repartição de competência na emissão de licenças ambientais
Atualmente, as atribuições e as ações de licenciamento ambiental entre a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal estão regulamentadas pela Lei Complementar nº 140/2011. O projeto, prevê, porém, a alteração das regras de competência, permitindo aos Estados a fixação e a determinação dos parâmetros técnicos do licenciamento ambiental, possibilitando, por exemplo, que os Estados e os Municípios afastem a aplicação das Resoluções do CONAMA.
Neste caso, em sendo aprovada a alteração, a federação brasileira voltaria ao patamar rudimentar, um verdadeiro retrocesso no sistema de licenciamento, pois, as questões envolvendo a repartição de competência para licenciar e as atribuições de fiscalização voltariam a gerar conflitos de ordem legal e administrativa, a exemplo da confusão existente antes da edição da Lei Complementar n.º 140.
Sobre a natureza da oitiva do gestor ambiental da unidade de conservação.
Segundo a regra atual, sempre que um empreendimento afetar uma unidade de conservação, a concessão do licenciamento dependerá da oitiva e respectiva autorização do órgão responsável pela administração da área. Portanto, pela regra atual, a oitiva e a manifestação do gestor da unidade de conservação possui natureza vinculante à concessão da licença. Pelo projeto, a manifestação do gestor da unidade de conservação deixa de ser vinculante e passa à condição de mera manifestação técnica de caráter opinativo.
A proposta, entretanto, padece de vicio de constitucionalidade, colidindo diretamente com o art. 225, §1º, inciso III[2] da Constituição Federal de 1988, na medida em que viola o cumprimento da exigência de que o Poder Público seja responsável por definir espaços territoriais na federação para serem protegidos. Dentre os atributos de proteção dos espaços, quando qualificados como unidade de conservação, encontra-se a oitiva técnica do gestor da unidade, responsável por implementar e fazer cumprir o plano de manejo da unidade -, neste caso, é o instrumento técnico e político que regulamenta, protege e conserva a unidade de conservação.
Sobre o licenciamento para obras em Rodovias e ferrovias
O processo de licenciamento ambiental, segundo a Resolução CONAMA 237/1997, compreende a expedição das seguintes licenças: a) licença prévia, responsável por aprovar a viabilidade ambiental da obras ou atividade; a) licença de instalação, necessária para instalação de equipamento e controles ambientais, na forma dos projetos ou programas aprovados e, c) licença de operação, elementar para o início das atividades; regulando e fiscalizando o cumprimento dos controles e condicionantes expedidas na licença prévia e na licença de instalação. Pelo projeto, entretanto, os órgãos de licenciamento, no caso de licenciamento de rodovias e ferrovias, deverão permitir a operação/funcionamento das rodovias e das ferrovias a partir da expedição da licença de instalação; desconsiderando as condicionantes e os controles ambientais previstos nas demais licenças.
A disposição do projeto ignora a Resolução do CONAMA 237/1997, na medida que não considera as especificidades e o grau de complexidade de cada empreendimento para o processo de licenciamento. Mesmo uma obra de rodovia ou de ferrovia, dadas as características naturais do Brasil, não admitem planificação ou padronização de procedimentos ou de exigências de condicionantes ambientais. O art. 8º, parágrafo único da Resolução n.º 237[3] é claro ao estabelecer que as licenças ambientais poderão ser expedidas isolada ou sucessivamente, de acordo com a natureza, características e fase do empreendimento ou atividade.
Sobre a isenção de licença agropecuária
O órgão ambiental, segundo as normas vigentes, pode exigir do agricultor, durante o processo de licenciamento, o cadastramento e a prestação de informação acerca da atividade agropecuária desenvolvida na propriedade, incluindo informações sobre a situação fundiária, localização da propriedade, reserva legal, área de preservação permanente, área degradada e área explorada economicamente.
O projeto, contudo, estabelece que a atividade agropecuária ficará isenta do licenciamento ambiental desde que cumpra ou esteja em fase de cumprimento das regras do Código Florestal. O texto estipula que as propriedades voltadas para o cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes, e pecuária extensiva, realizados em áreas de uso alternativo do solo, desde que o imóvel, propriedade ou posse rural estejam regulares ou em regularização ficam isentas do licenciamento ambiental agropecuário.
Na prática, a autorização para que proprietários em regularização possam desenvolver suas atividades, sem apresentar a regularização ambiental da propriedade, resultará em uma isenção indireta do licenciamento ambiental, afrontando as regras do art. 9º, inciso IV da Lei n.º 6.938/1981[4] - Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, recepcionada pelo artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Em verdade, isentar o proprietário rural da licença ambiental quando a propriedade esteja irregular, é retirar do estado a capacidade de organização, regulação e proteção do espaço rural e dos atributos ambientais existentes, pois, sem poder exigir o licenciamento, o estado perderá a capacidade de coerção, elemento essencial para a consecução de políticas públicas e imanente a existência do estado.
Sobre a dispensa de estudos ambientais
Prestigiando os instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, dentre os quais se destaca o licenciamento ambiental (art. 9º, inciso IV) e com fundamento no art. 225, §1º, inciso IV [5], os órgãos ambientais exigem e realizam estudos de impacto ambiental na área ou atividade, independentemente do porte ou monta do projeto.
Ocorre, entrementes, que o projeto de lei pretende dispensar os empreendimentos mais simples da apresentação do estudo de impacto ambiental, a saber: a autoridade licenciadora definirá o estudo ambiental pertinente que subsidiará o licenciamento ambiental pelo procedimento em fase única, podendo o estudo ser dispensado de forma justificada pelo órgão licenciador.
A proposta é ilegal, pois, viola tanto a Lei n.º 6.938, no que toca a exigência do licenciamento ambiental e, ainda, é inconstitucional, uma vez que pretende autorizar a expedição de licença ambiental sem estudo técnico, afrontando a literalidade das disposições do art. 225 da Constituição Federal.
Sobre a relativização da possibilidade de cancelamento de licença ambiental.
Atualmente, segundo a legislação em vigor e, considerando as regras de direito administrativo[6] aplicadas no sistema jurídico-ambiental, os órgãos ambientais podem modificar, suspender ou cancelar uma licença ambiental caso verifiquem violação ou inadequação de quaisquer condicionantes; omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição de licença; superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.
Pelo projeto de lei, a licença ambiental somente poderá ser revista quando ficar configurado situação de significativo dano ambiental ou na ocorrência de acidentes ambientais. A primeira questão prejudicial para o projeto é a impossibilidade de definir o que seja significativo dano ambiental. A segunda questão reside no fato de que o projeto desconsidera a natureza jurídica-administrativa da licença ambiental, cujo princípio de balizamento autoriza ao Poder Público rever[7], a qualquer tempo, os atos administrativos. E, a terceira questão, decorre da impossibilidade de rever a licença ambiental para acidentes de menor proporção, deixando entrever que acidentes menores não representam risco de dano ao meio ambiente ou a saúde pública.
Conclusão.
Infere-se, pela exposição técnica, que a alteração pretendida pelo projeto de lei, sob a justificativa da necessidade de desburocratização do licenciamento ambiental, representa, antes de tudo, prejuízo à efetivação da garantia do meio ambiente sadio e equilibrado. Ademais, as alterações padecem pelo vício de inconstitucionalidade, violando a Constituição Federal e a Política Nacional de Meio Ambiente.
Lado outro, é curial que a sociedade esteja atenta aos discursos ideológicos presentes no congresso nacional e as constantes tentativas de relativização dos direitos sob a perspectiva de melhorar a eficiência dos serviços públicos; não admitindo a revisão e simplificação do licenciamento ambiental pautada apenas pelo viés econômico.
O fio condutor da lógica ambiental é a garantia da vida, sob todas as formas. Assim, é elementar que toda e qualquer ação legislativa tenha por fundamento a preservação, a conservação, a restauração e a sustentabilidade dos ambientes.
[1] Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/camara-discute-mudancas-nas-regras-de-licenciamento-ambiental-entenda.ghtml. Acesso em 13 de nov. 2017.
[2] BRASIL, Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)
[3] Art. 8º - O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças:
I - Licença Prévia (LP) - concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação;
II - Licença de Instalação (LI) - autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante;
III - Licença de Operação (LO) - autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação.
[4] Art 9º - São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:
IV - o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;
[5] art. 225
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento
[6] A doutrina se divide quanto a natureza jurídica da licença ambiental. A) a licença ambiental seria uma licença administrativa; a licença ambiental seria uma autorização administrativa e, c) a licença ambiental seria uma nova espécie dos atos administrativos.
[7] Súmula STF 473
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
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