A FLEXIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 42, §3º DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UMA BREVE ANÁLISE - Karina Melo Vieira

28/06/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O presente trabalho acadêmico objetiva contribuir com as discussões existentes acerca da temática da adoção unilateral socioafetiva. Para tanto, será realizada uma abordagem dedutiva, por meio de um procedimento comparativo, bem como adotada a técnica de pesquisa documental indireta, através da pesquisa bibliográfica.

Diante do caráter jurídico do direito à adoção, serão debatidos, de forma breve, os entendimentos sob o prisma constitucional e civilista do direito à adoção e dos mecanismos trazidos legalmente para a melhor regulamentação desse direito, mais especificamente quanto aos seus efeitos. Assim sendo, teremos ainda a abordagem do tema conforme disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Serão abordados posicionamentos doutrinários deste tema, a fim de compreender a possibilidade de flexibilização do artigo 42, § 3º da Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, desde que de acordo ao interesse do adotando, visto que o referido dispositivo legal não possui natureza absoluta.

 

1. ADOÇÃO: ASPECTOS HISTÓRICOS E JURÍDICOS

Desde os tempos mais antigos, sendo possível citar os imperadores romanos Tibério, Calígula, Nero, existiram pessoas cujo sonho era ter um filho. As três personalidades eram filhos adotivos, desta forma, também existiram crianças que não foram assumidas e nem sequer desejadas por seus pais.

Neste sentido, podemos dizer que “a adoção é um instituto antigo. As primeiras menções são encontradas nos escritos em geral, e nas leis, em particular, dos povos da Antiguidade Clássica: gregos, romanos e hindus”.[1]

Outro exemplo histórico notável seria o Código de Napoleão, que trouxe a adoção como uma filiação igual como uma filiação oriunda do casamento[2], visto que Josefina, esposa de Napoleão Bonaparte, era estéril e assim a esperança de continuidade de império se deu através do Código Civil daquela época, tendo os filhos adotivos inclusive ao direito de sucessão.

Houve uma época que, somente pessoas sem filhos poderiam adotar, mediante escritura pública e “o vínculo de parentesco estabelecia-se somente entre o adotante e o adotado”[3], conforme estabelecido pelo Código Civil de 1916, sendo o marco legal para a adoção, tendo em vista que “ganhou as primeiras regras formais no país e previa como elemento essencial de ambas as partes para o ato (Art. 372, CCB 1916)”.[4]

A legitimação adotiva foi instituída com a Lei 4.655/1965, através de decisão judicial, sendo irrevogável e “fazia cessar o vínculo de parentesco com a família natural”.[5] Ainda neste sentido: “o advento da Lei nº 4.655/65, que introduziu ao Brasil a Legitimação Adotiva, o processo de adoção era visto como simples ato bilateral. Bastava a manifestação do adotante e do adotado – se capaz, ou de seu representante legal, se incapaz ou nascituro -, para que se efetivasse a adoção”.[6]

Uma das novidades trazidas pela Lei 6.697/1979, conhecida como Código de Menores, “substituiu a legitimação adotiva pela legitimação plena, mas manteve o mesmo espírito. O vínculo de parentesco foi estendido à família dos adotantes, de modo que o nome dos avós passou a constar no registro de nascimento do adotado”.[7]

Em seguida, temos as inovações da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cabe ressaltar a conceituação do instituto de adoção, como um ato jurídico, criador de um vínculo fictício de paternidade/maternidade entre pessoas estranhas, sendo considerada um parentesco eletivo, visto que depende única e exclusivamente de um ato de vontade, sendo excepcional e irrevogável.[8]

Muitos consideram a adoção como um ato de amor e/ou de caridade, porém deve-se ressaltar o caráter sociológico, a implementação real do desejo de amar e ser amado.

 

1.2 Direito à Adoção: Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988

A CRFB/1988 determina que a adoção de crianças e adolescentes estejam inseridas na Doutrina Jurídica de Proteção Integral, bem como a preconização do Direito Fundamental à Convivência Familiar e Comunitária para pessoas com idades de zero a dezoito anos e ainda a irrevogabilidade do referido instituto.[9]

Conforme o entendimento de Maria Berenice Dias:

“A doutrina da proteção integral e a vedação de referências discriminatórias (CR 227 §6º) alteraram profundamente a perspectiva da adoção. Inverteu-se o enfoque dado à infância e à adolescência, rompendo a ideologia do assistencialismo e da institucionalização, que privilegiava o interesse e a vontade dos adultos. A adoção significa muito mais a busca de uma família para uma criança do que a busca de uma criança para uma família”[10].

A adoção é uma concepção protetiva oriunda da Proteção Integral Infantoadolescente, devido a amplitude da Proteção Integral e do Princípio da Prioridade Absoluta, conforme determina o artigo 227 da CRFB/1988.[11] Ressalta-se ainda que foram eliminados quaisquer tipos de distinção ente adoção e filiação, ou seja, é proibido/vedado qualquer tipo de discriminação, de acordo com o artigo 225, §6º.

 

1.3 Direito à Adoção: Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990

Com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção se tornou uma medida irrevogável, sendo concedida apenas mediante sentença judicial, e, o tema central que merece ser destacado neste estudo é quanto a análise do RESp 1.338.616/DF, visto que a lei é clara: “o adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotando (artigo 42 § 3º ECA). A proposta tem o escopo de tentar imitar, na filiação por adoção, a existência de diferença de idade”.[12]

Também é importante ressaltar que a diferença mínima etária citada decorre ainda evitar qualquer tipo de interesse impróprio, como no caso de prevenir situações de violência, dentre elas a sexual, por exemplo. Entretanto, neste caso em específico, temos a situação de um relacionamento estável entre o casal, logo o adotante está casado com a mãe do adotando há alguns anos.

Adotante e adotando possuem vínculo afetivo, a convivência existe e o adolescente possui dois irmãos, frutos do relacionamento conjugal entre sua mãe e o padrasto, assim destaca-se a existência de guarda, porém o mais importante é a garantia de deveres e direitos individuais coletivos e ainda da condição peculiar do adolescente como pessoa em desenvolvimento, bem como, a manutenção dos fins sociais, desta forma, “visando o melhor interesse do adotando, pode ser relativizado no caso concreto”.[13] 

Tão logo é importante destacar que o artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, determina que: “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.[14] Desta forma, no caso em análise, o STJ já reforçou a flexibilização de diferença mínima de dezesseis anos para adoção, visto que o conteúdo descrito no artigo 42, §3º da referida lei não é considerada uma norma de caráter absoluto.

 

1.4. Adoção unilateral

No caso em questão, é possível constatar que o padrasto já realiza o papel de “pai” do adolescente em questão, sendo que já existe o princípio da socioafetividade nesta relação familiar. Rodrigo da Cunha indica que: “A paternidade, ou melhor, a parentalidade socioafetiva vem estabelecer que os laços de sangue não devem preponderar sobre os laços afetivos na definição da paternidade e filiação.”[15]

Assim sendo, seria uma violência contra o adolescente seguir com a literalidade da lei, do dispositivo legal em questão, violando inclusive os princípios protetivos para o mesmo, que está em condição peculiar de desenvolvimento e violaria, inclusive, seus direitos adquiridos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

 

1.5 Princípios protecionais do caso em tela

O princípio do melhor interesse da criança/adolescente decorre do fato destes sujeitos de direitos estarem em desenvolvimento, sendo necessária proteção integral e especial. São dotados ainda de prioridade absoluta e expressados especificamente através dos artigos 227 e 229 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Segundo Rodrigo da Cunha:

“O Princípio do Melhor Interesse, que encontra sua melhor tradução na Lei nº 8.069/1990, mudou a concepção filosófica sobre os menores de idade, inclusive alterando a expressão menor para crianças e adolescentes, visita para convivência familiar. Tais mudanças têm a intenção de dar outro significante ao significado desta palavra, extraindo a ideia de que menor tem direitos menores. A partir de 1990 toda ordem jurídica brasileira ficou alterada e contaminada pelas regras da Lei nº 8.069/1990 que são o desdobramento do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conduzindo inclusive à novas políticas públicas, já que tinham mudado as concepções sobre criação e educação de filhos”.[16]

Ainda neste sentido:

“O que interessa na aplicação deste princípio fundamental é que a criança/adolescente, cujos interesses e direitos devem sobrepor-se ao dos adultos, sejam tratados como sujeitos de direitos e titulados de uma identidade própria e também uma identidade social. E, somente no caso concreto, isto é, em cada caso especificamente, pode-se verificar o verdadeiro interesse sair da generalidade e abstração da efetivação ao Princípio do Melhor Interesse. Para isso é necessário abandonar preconceitos e concepções morais estigmatizantes. Zelar pelos interesses dos menores de idades é cuidar de sua boa formação moral, social, relacional e psíquica. É preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social”.[17]

Finalizamos o estudo em questão, destacando a importância do operador do Direito em aplicar os princípios protecionais elencados anteriormente, tendo em vista que o Direito da Criança e do Adolescente é, efetivamente, lidar com vidas e é dever de todos, conforme preconizado por diversos dispositivos legais, zelar pelos interesses de crianças e adolescentes, sujeitos de direitos e detentores de proteções especiais.

 

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito é uma área que transforma a sociedade, modifica histórias e é possível inclusive trazer mudanças significativas para a coletividade, e principalmente para cada caso concreto.

Este breve estudo é uma das provas desta transformação expressiva na vida de um adolescente, visto que o Ministro Marco Buzzi, entende que uma regra específica (artigo 42, §3º do Estatuto da Criança e do Adolescente) pode ser flexibilizada devido a peculiaridade do caso em questão. O objetivo é, antes da literalidade da lei, analisar o caso concreto, e assim, aplicar o melhor dispositivo legal que vise à manutenção das garantias e direitos da condição peculiar da pessoa em desenvolvimento em questão.

Muitos poderiam se referir a situação com uma célebre frase, que seria: “pensar fora da caixa”, porém destaca-se a importância da aplicabilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda o olhar diferenciado para a situação, compreendendo a importância da aplicação legal e do contexto social.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 22 mar. 2022.

BRASIL. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgada em 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#:~:text=Art.%206%C2%BA%20Na%20interpreta%C3%A7%C3%A3o%20desta,adolescente%20como%20pessoas%20em%20desenvolvimento.>. Acesso em: 22 mar 2022.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2021.

______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.338.616/DF. Relator: Min. Marco Buzzi Julgamento: 15/06/2021. Publicação: 21/06/2021. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?aplicacao=informativo&acao=pesquisar&livre=018207 >. Acesso em: 22 março 2022.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020

[1] VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 317.

[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p.  447.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 328.

[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p.  447.

[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 328.

[6] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p.  447.

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 328.

[8] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 328-329.

[9] VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 318.

[10] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 329.

[11] VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos: grandes temas, grandes desafios / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 319.

[12] ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2021. p. 467.

[13] ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2021. p. 467.

[14] BRASIL. Lei nº 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgada em 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#:~:text=Art.%206%C2%BA%20Na%20interpreta%C3%A7%C3%A3o%20desta,adolescente%20como%20pessoas%20em%20desenvolvimento.>. Acesso em: 22 mar 2022.

[15] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p.90.

[16] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 89.

[17] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias / Rodrigo da Cunha Pereira; prefácio Edson Fachin. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 90.

 

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