A experiência tem demonstrado, à saciedade, que a fixação da competência processual, através da chamada “prevenção”, é altamente prejudicial ao princípio básico que deve nortear o desejado processo penal democrático, qual seja, a imparcialidade dos juízes e dos demais julgadores de outros graus de jurisdição.
Sabemos que a prevenção, definida no artigo 83 do Código de Processo Penal, não é um critério do modificação da competência, mas sim de fixação da competência entre órgãos jurisdicionais já potencialmente competentes.
Entretanto, na prática, está restando comprovado que este critério acaba por comprometer o sistema processual penal acusatório, pelos motivos relevantes que vamos nomear abaixo. Primeiramente, vamos reler o citado dispositivo legal:
“Artigo 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3o, 71, 72, § 2o, e 78, II, c)”.
Ora, no processo penal moderno, é consenso que o Poder Judiciário somente deve atuar após o exercício do direito de ação, após a denúncia do Ministério Público ou queixa do ofendido, que instauram a relação jurídico-processual.
No sistema processual acusatório, a atividade jurisdicional depende da acusação da parte, pois o juiz não é órgão persecutório, o juiz não deve se imiscuir na investigação policial, tudo para não comprometer a sua necessária imparcialidade.
Por este mesmo motivo, parte da melhor doutrina pátria tem entendido que as regras do atual Código de Processo Penal, que outorgam aos juízes poderes persecutórios na fase inquisitória, na fase de investigação, não teriam sido recepcionadas pela Constituição da República de 1988. Seriam funções anômalas, na feliz expressão do renomado autor Fernando da Costa Tourinho Filho.
Por outro lado, se for imperiosa a atividade do magistrado antes da instauração do processo de conhecimento condenatório para decidir sobre medidas cautelares no curso da investigação, o certo é que este juiz não presida o futuro processo, pois já pode ter formado a sua convicção prematuramente, sem que tenha avaliado provas produzidas sob o crivo do contraditório, provas que serão produzidas pela defesa em um futuro processo.
Para tornar juridicamente possível esta proposta teórica, pugna-se pela criação da “figura” do chamado “juiz de garantias”, consoante previsto no Projeto de Código de Processo Penal, ora em tramitação em nosso Congresso Nacional.
Este “juiz de garantias”, quando provocado pela autoridade policial, pelo Ministério Público, pelo ofendido ou indiciado, prestaria a relevante tutela jurisdicional de urgência ou cautelar, decretando prisões, concedendo liberdades provisórias, anulando prisões ilegais, decidindo sobre interceptações telefônicas, decidindo sobre buscas e apreensões domiciliares, etc.
Após instaurado o processo penal, este “juiz de garantias” não mais atuaria, sendo a competência do “novo” juiz fixada segundo as regras de competência previstas na lei processual, principalmente, o critério da “distribuição”, mediante isento sorteio.
Havendo um só juiz na Comarca ou Circunscrição Judicial, a competência do “juiz de garantias” e do juiz do processo de conhecimento seriam fixadas nas respectivas leis de Organização Judiciária, que devem explicitar um critério objetivo e impessoal.
Assim, o critério de fixação da competência do órgão jurisdicional, oferecida a denúncia ou a queixa, seria absolutamente objetivo, buscando-se julgadores que tenham mantido a devida distância da prévia atividade persecutória do Estado, tudo em nome de sua indispensável imparcialidade.
Desta forma, o juiz que irá julgar o réu terá mantido o necessário distanciamento dos fatos investigados, terá mantido o necessário distanciamento da atuação inquisitória e persecutória da polícia e do Ministério Público. Em outras palavras, o juiz do processo terá mais uma condição objetiva para não macular a sua imparcialidade, vale a pena repetir.
Entretanto, enquanto não criarmos o “juiz de garantias”, por lei processual, precisamos revogar a regra do supra citado artigo 83 do Código de Processo Penal, que está na “contramão” dos sistemas processuais penais modernos, bem como os demais dispositivos legais ou regimentais que criam vínculos de competência com magistrados que tenham praticado atos persecutórios anteriores à ação penal.
Na verdade, o mencionado dispositivo legal dispõe justamente em detrimento da indispensável imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, pois outorga competência diretamente ao “juiz persecutório”, ao juiz que tenha atuado na investigação, exercendo uma função anômala em face dos postulados do sistema processual penal acusatório.
Esta malsinada regra jurídica torna dispensável o sorteio, como forma objetiva, para fixar o juiz competente, vinculando a competência do juiz que julgará o mérito da pretensão punitiva à sua atuação na fase inquisitória. Isto é absolutamente indesejável em um processo penal acusatório e democrático. Indiretamente, viola até mesmo o princípio constitucional do “juiz natural”.
Tudo isto se torna ainda mais grave quando da fixação da competência dos órgãos colegiados de segundo ou mais graus de jurisdição. Neles, o sorteio acaba sendo desprezado e o relator de processos anteriores e conexos passa a ser um verdadeiro juízo universal !!!
Desta maneira, ampliando-se indevidamente o conceito de conexão instrumental ou probatória, acaba-se com a saudável pluralidade e diversidade de entendimentos jurídicos no seio do tribunal e todos os outros processos são julgados pelo mesmo órgão fracionado, sempre através do mesmo desembargador ou ministro relator.
Como acabei de dizer, esta situação se agrava em razão de uma equivocada jurisprudência sobre o que seja conexão no processo penal. No processo penal, a conexão não se dá entre processos e, sim, entre infrações penais, tudo para que haja unidade de processo e julgamento.
Não devemos criar relatores que se tornem “juízes universais” para todos os delitos praticados em detrimento de uma determinada vítima ou que tenham sido apurados em razão de um determinado acordo de cooperação premiada (delação premiada).
Neste particular, pedimos vênia ao leitor para o remeter ao breve estudo que publiquei em minha “coluna” do site Empório do Direito:
http://emporiododireito.com.br/leitura/a-lava-jato-e-a-competencia-dos-orgaos-jurisdicionais
Em conclusão, sustentamos que nada justifica que seja fixada previamente a competência de um juiz ou juízo em razão de ter ele participado da fase inquisitória, participando de atos persecutórios anteriores à ação penal condenatória. Muito pelo contrário, a preservação da imparcialidade do julgador exige que ele tenha sempre mantido um salutar distanciamento das investigações policiais.
Destarte, o instituto da prevenção, definido no artigo 83 do Código de Processo Penal, deve ser banido do nosso sistema processual penal acusatório, seja por revogação expressa de uma nova lei processual específica, seja pelo entendimento de que a prevenção é incompatível com o sistema processual democrático delineado na Constituição da República, tudo isto tendo por base o indispensável princípio da imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.
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