A Fantasia do Sistema Penal

02/10/2024

A “Fantasia do Sistema Penal” é o título dado por MARIA LÚCIA KARAM ao último capítulo do seu clássico livro “De Crimes, Penas e Fantasias[1]. Referindo-se ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), quando trata da publicidade enganosa, a autora afirma que algumas regras ali previstas, facilmente, poderiam se aplicar ao sistema penal. KARAM destaca que de acordo com o Código de Defesa do Consumidor “é proibida toda publicidade enganosa ou abusiva” (art. 37) e que o mesmo Código no Título que trata das infrações penais criminaliza condutas, entre as quais, a prevista no

Art. 67 - Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva: Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (ano) e multa.

Segundo MARIA LÚCIA KARAM,

Esta criminalização da publicidade enganosa ou abusiva encerra um irônico paradoxo: na verdade, a mais eficaz e perversa venda de um produto, através da omissão de dados essenciais e da divulgação de informações, inteira ou parcialmente falsas, capazes de induzir em erro a respeito da natureza, características, qualidade, origens, propriedades, etc., ou de incitar a violência e explorar o medo, é, exatamente, a “venda” do sistema penal.[2]

Mais adiante, a juíza de direito aposentada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e autora de diversos artigos e livros, destaca que a publicidade do sistema penal trabalha com a falsa ideia – explorando o medo e criando um clima de pânico - de que através de mais repressão, de maior ação policial e de leis penais mais rígidas com elevação das penas a violência e a criminalidade seriam contidas. [3]

Esta publicidade enganosa, assevera KARAM, “cria o fantasma da criminalidade, para, em seguida, “vender” a ideia da intervenção do sistema penal, como alternativa única, como a forma de se conseguir a tão almejada segurança, fazendo crer que, com a reação punitiva, todos os problemas estarão sendo solucionados”.[4]

Ao recorrerem aos discursos sensacionalistas que, certamente, atendem ao clamor popular, os políticos buscam medidas populistas e soluções aparentemente fáceis para o complexo problema da violência e da criminalidade. Medidas de caráter penal e processual penal que recrudescem o punitivismo penal, tais como: criação de novos tipos penais; aumento das penas de prisão; redução da imputabilidade (maioridade) penal; criminalização do uso e do porte de drogas; redução dos direitos do preso; mitigação de direitos e garantias do acusado; prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória; aumento das possibilidades de decretação da prisão preventiva entre outras.

Aproveitando-se do medo gerado pela violência e pela criminalidade, amplificado pela mídia, o legislador brasileiro utiliza-o como verdadeira arma política para seduzir os eleitores.

Para MAURICIO MARTINEZ, “o novo caramelo que se oferece nas campanhas eleitorais é um veneno que pode matar, mas que é aceito por uma população presa do pânico porque é apresentado como um remédio para aniquilar monstros de um zoológico (...) e, por isso o populismo punitivo se caracteriza pelo oferecimento de penas altas e pela mudança da utopia ressocializadora pela inocuização da maldade através de penas degradantes...”. [5]

O medo fomentado pela mídia, na maioria das vezes, está relacionado aos crimes praticados com violência[6], contra a vida, contra o patrimônio (vis fisica ou vis compulsiva) e os crimes sexuais (contra a dignidade e a liberdade sexual), além dos crimes de “tráfico de drogas”, geralmente, associados, pelos meios de comunicação de massa, as “organizações criminosas”. Como bem observa EUGENIO RAÙL ZAFFARONI, “os meios de comunicação de massa são os grandes criadores da ilusão dos sistemas penais” e que desencadeiam as campanhas de “lei e ordem”.[7]

Referindo-se ao “autoritarismo e populismo penal”, CASARA aponta a dupla “ignorância” e “egoísmo” para, também, explicar a naturalização das campanhas da “lei e ordem” (law and order),

movimento de política criminal que defende o aumento da repressão e a intolerância com os desvios sociais como resposta aos mais variados problemas sociais e conflitos (inclusive os mais insignificantes), e o “populismo penal”, a manipulação política dos sentimentos de medo e de insegurança a partir do fenômeno criminal como aumento de penas, a instrumentalização do Direito Penal, a relativização da formas processuais (nas democracias, as formas e as “regras do jogo” processuais são garantias contra a opressão) e a redução dos direitos e garantias fundamentais.[8]

O populismo penal – como o slogan da política de tolerância zero, por exemplo - une os discursos dos conservadores de “direita” e de “esquerda” em vários países, inclusive no Brasil, no que diz respeito ao ilusório combate ao crime. Assim, como já asseverou LUIGI FERRAJOLI, “o populismo penal se conjuga com o populismo político. Perseguindo e alimentando a insegurança e o medo (...)”.[9]

Ao se referir a “irracionalidade penalista”, FERRAJOLI propõe que a política penal de esquerda deveria acima de tudo por fim a desigualdade: “invertendo a lógica absurda das prescrições, quer dizer, prevendo prescrições longas para crimes de corrupção e prescrições mais breves para os outros crimes; mitigando as penas para os crimes dos pobres e prevendo penas adequadas para a criminalidade econômica[10], entre outras medidas, visando restaurar um “mínimo de igualdade”, mas também de “racionalidade em matéria penal”. Para FERRAJOLI a “irracionalidade penalista” e a “desigualdade penal” constituem poderosos fatores criminógenos e causa inevitável de aniquilamento do “espírito cívico”. Por diversas razões. Entre elas se destaca a percepção de injustiça pelo fato do sistema punir os pobres e deixar imune os ricos, e a macro criminalidade econômica. Outro forte fator criminógeno é uma política que se ilude e cria a ilusão de que é possível prevenir os crimes praticados pelos pobres através da ameaça de medidas penais.

Contudo, FERRAJOLI reconhece que são as políticas sociais – educação, saúde, assistência sanitária, pleno emprego, estabilidade no trabalho, garantias de direitos sociais etc. – as únicas políticas realmente capazes de atacar as causas estruturais deste tipo de criminalidade.[11]

Embora o sistema penal seja extremamente seletivo atingindo preferencialmente os mais vulneráveis (jovens, negros, pobres, com baixa escolaridade e periféricos) que lotam as penitenciárias de todo país, de acordo com KARAM, é justamente sobre as “classes subalternas” que “a eficácia publicitária do sistema penal se manifesta mais forte e perversamente” que “desejando a solução penal, não percebem que são elas próprias as vítimas preferenciais daquela carga de estigma, injustiça e violência; que, levadas a aplaudir a solução extrema da pena de morte oficializada ou extraoficial, não percebem que estão assinando suas próprias sentenças de morte”.

Por fim, faço minha as palavras de ZAFFARONI, no prólogo do livro “De Crimes, Penas e Fantasias”,

A ideia de Maria Lúcia do sistema penal praticando publicidade enganosa e abusiva é genial. Achei que a função a nós destinada era de balconistas de ilusões, mas a imagem da publicidade ilícita tem maior exatidão, porque não são ilusões inocentes nem bonitas, criativas ou artísticas; trata-se de ilusões perversas e mortais”.

Primavera de 2024.

 

Notas e referências:

[1] Karam, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam Ed., 1991.

[2] Op. cit. p. 196.

[3] Karam, op. cit. p.198.

[4] Karam, Maria Lúcia, op. cit,, p. 200-201.

[5] MARTINEZ, Mauricio. In Depois do grande encarceramento, seminário/organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 313-327.

[6] GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 138.

[7] ZAFFARONI, Eugênio Raul Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 128.

[8] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024.

[9] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. In: VIANNA, Túliio; MACHADO, Felipe (Coord.) Garantismo penal no Brasil: estudos em homenagem a Luigi Ferrajoli. Belo Horizonte: Fórum, 2013. P. 15-25.

[10] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. Op. cit.

[11] FERRAJOLI, Luigi. O garantismo e a esquerda. Op. cit.

 

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