Coluna Direito Negocial em Debate
O primeiro ponto de atenção que devemos levar em consideração ao tratarmos sobre a transferência de imóveis, é sobre o grande número de propriedades irregulares que existem atualmente no país. Tais irregularidades podem estar atreladas a vários fatores, a depender de cada caso. Entretanto, é possível traçar um panorama geral e destacar, dentre as principais e mais comuns causas: a) a ausência de “matrícula do imóvel” – importante salientar que imóveis negociados antes de 1973 e que não tenham averbação ou registro, podem, ao invés de possuir matrícula, dispor de “transcrição” –; b) a divergência entre a medida real do imóvel com a medida descrita na matrícula; c) assim como, a ausência das licenças legalmente impostas.
Francisco Eduardo Loureiro, mestre em Direito Civil e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo nos traz o conceito de um imóvel irregular:
Aqueles que, embora aprovados pela prefeitura e demais órgãos Estaduais e Federais, quando necessário, fisicamente não são executados, ou são executados em descompasso com a legislação ou com atos de aprovação.
Em conformidade com o conceito acima, outro tipo de irregularidade, a ser evidenciado, ocorre por ausência “habite-se”, em que há uma extensão de um prédio principal, construída sem a autorização do órgão municipal competente, visando uma destinação autônoma.
Assim, ao depararmos com essas inconsistências, devemos ter conhecimento dos instrumentos judiciais e extrajudiciais para sanar esses problemas de modo mais adequado. Infelizmente, observa-se que na prática do Direito Imobiliário, há uma limitação de consciência – por vezes até mesmo por advogados e engenheiros civis – sobre os mecanismos apropriados para a regularização imobiliária. Por esse motivo, acabam se utilizando, erroneamente e eventualmente, do instituto da “usucapião”.
Deveras, o instituto da usucapião é uma forma de regularização e de aquisição de propriedade. Contudo, isso não denota que se trata do instituto mais apropriado para qualquer tipo de caso, dado que, há, além disso, a possibilidade de retificação de registro, de averbação de construção, de gestão extrajudicial dos interesses do possuidor, entre outros mecanismos.
Essa falsa ideia de “aquisição do direito real de propriedade” é averiguada de forma mais evidente nas transações imobiliárias de compra e venda, sendo que se parte de um falso pressuposto de que toda a aquisição é objetiva no sentido de ser plena e presumida. Entretanto, o grande erro está exatamente nesse ponto, pois é insuficiente a existência de contrato de promessa de compra e venda sem cláusula de arrependimento, sem que haja o registro no Cartório de Registro de Imóveis por instrumento público ou particular.
Importa compreender que a celebração de negócios jurídicos integra o campo da autonomia privada de todo sujeito de direito, sendo possível que os pactuantes definam os efeitos jurídicos dessa transação. Entretanto, ao tratarmos de negócios jurídicos de transferência ou aquisição de propriedade, é imprescindível analisar a natureza jurídica desse ato. No caso de contrato de compra e venda, por exemplo, não obstante o interesse de uma das partes em adquirir o bem e de outra parte de transferir, os efeitos jurídicos dessa relação são de natureza meramente obrigacional, criando direitos e deveres entre os próprios sujeitos, de forma sinalagmática. A mera celebração do contrato não gera a transferência de propriedade, a qual deve ser feita a posteriori por meio de ato translativo. Ademais, quanto à transferência de bens imóveis, o Código Civil determina a obrigatoriedade de efetivo registro perante o Cartório de Registro de Imóveis, sendo exigência imprescindível para a validade do ato negocial, firmando-se a mudança de propriedade a partir desse ato.
Dito isto, o promitente comprador, ao celebrar promessa de compra e venda registrada em cartório, sem cláusula de arrependimento, obtém um direito real à aquisição do imóvel, não se limitando a conferir à avença eficácia real à obrigação perante terceiros, é o que diz o artigo 1417 Código Civil:
Art.1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.
Dessa maneira, o contrato preliminar acaba tendo uma forma preliminar, não cabendo obrigação de dar, mas sim obrigação de fazer. Ou seja, o registro imobiliário é indispensável para a obtenção do direito real e eficácia perante terceiros, passando dessa maneira muito mais segurança jurídica.
A garantia dos direitos reais dá a outorga da escritura definitiva de compra e venda quando paga a integralidade do preço, de modo que o agora comprador pode exigir a adjudicação compulsória em caso de recusa por parte do vendedor, como dispõe o artigo 1.418 Código Civil. O artigo vem consagrar o direito potestativo da figura do promitente comprador e o seu cessionário de ir a juízo exigir sentença que produza o mesmo efeito se a obrigação fosse devidamente cumprida.
Já se tem hoje, inclusive, uma jurisprudência mais consolidada sobre o reconhecimento da dispensabilidade da ação de adjudicação compulsória quando houver a quitação integral do preço.
Exemplificando, se a promessa não for registrada e também não houver outro registro posterior, o comprador tem direito à adjudicação compulsória e ainda o direito de sequela, isto é, de tomar o imóvel de terceiros, decorrente de alienação posterior. Porém se a promessa não for registrada e houver outro registro posterior, somente caberá perdas e danos.
Fica clara e evidente a importância do registro do contrato de compromisso de compra e venda no Cartório de Registro de Imóveis, não obstante, ainda devemos nos atentar à figura da Escritura Pública.
Temos no art.108 do Código Civil:
Não dispondo a lei em contrário, a Escritura Pública é essencial à validade dos Negócios Jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reis sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Mister esclarecer que a Escritura Pública é o documento escrito no Tabelionato de Notas pelo Tabelião, onde é registrado e autenticado as declarações de vontade das partes e atestado a conformidade do negócio jurídico com a lei, assegurando sua validade, eficácia e autenticidade.
O que acaba acontecendo na prática e gera muitas perguntas e dúvidas de pessoas leigas que não são da área, é ter a ideia de que a Escritura Pública tem força de Registro, como se o documento público fosse o suficiente para a se tornar proprietário do imóvel. A grande maioria acaba descobrindo, na hora de vender a propriedade, que não é dono, de direito, do imóvel, e sim mero possuidor, resultando em um grande problema, caso essa pessoa não tenha um advogado especializado em Direito Imobiliário para poder prestar a orientação jurídica apropriada, indicando a necessidade de fazer a regularização do imóvel antes de realizar a alienação.
À vista disso, infere-se a extrema importância de levar a Escritura Pública para o Cartório de Registro de Imóveis, para que seja realizado o Registro da Compra e Venda do imóvel e anexado a Escritura junto à Matrícula, garantido, assim, que a pessoa de fato se torne proprietária do bem e não mera possuidora.
Notas e Referências
NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental à Moradia. São Paulo: Pillares, 2008.
SANTIAGO JÚNIOR, Aluísio. Direito de Propriedade - Aspectos Didáticos - Doutrina e Jurisprudência. Belo Horizonte: Inédita, 1997.
TARTUCE, Código Civil comentado - Doutrina e Jurisprudência. Forense, 2021.
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