A “Fadiga da Decisão”: Quando Médicos e Juízes decidem mal - Por Atahualpa Fernandez

27/02/2015

Por Atahualpa Fernandez - 27/02/2015

  Y vosotras lo sabéis: la confianza es el mayor enemigo de los mortales”.

W. SHAKESPEARE

Ninguém está imune. Tomar decisões cansa nosso cérebro. Requer uma atividade cerebral custosa em tempo e também em consumo de energia, e a energia é um recurso limitado. Daí que a energia mental de uma pessoa se deteriora a medida que se enfrenta cada vez com mais decisões ou com múltiplas tarefas simultâneas. Sei que devo comer sano, fazer exercício, ler diariamente e um sem-número de coisas que são importantes para meu bem estar atual e futuro.

Então, por que decido não ir à academia ao final do dia, não ler um livro ou comer uma torta de chocolate em vez de algo integral com salada? Por que não me resisto à gula sabendo que pode engordar-me ou enfermar-me? Por que evito qualquer tipo de exercício físico ou intelectual, ainda sabendo que o sedentarismo e a mangona mental podem prejudicar-me?

Por muito que nos sintamos responsáveis de não ter suficiente «força de vontade» para tomar todas essas importantes decisões saudáveis, parece que o problema não é tanto falta de «força de vontade», senão excesso do que o psicólogo social Roy Baumeister chama «fadiga da decisão» («decision fatigue»)[1].

Dois inquietantes exemplos:

1) Em um estudo recente, publicado on-line na revista «JAMA Internal Medicine» on  October 06, 2014 (http://archinte.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=1910546), uma equipe de investigadores demonstrou que os médicos também se cansam ao tomarem muitas decisões de atenção com os pacientes cada dia. A demanda ou sobrecarga cognitiva acumulativa dessas decisões pode prejudicar as capacidades dos médicos (e pessoal clínico) para resistir tomar decisões potencialmente inapropriadas: à medida que avança o dia parece que são mais propensos a receitar erroneamente antibióticos a pacientes que não os necessitam.

Segundo Jeffrey A. Linder, diretor do estudo, com essa erosão de autocontrole gerada pela tomada de decisões repetidas, «só uma observação tem sentido: os médicos também são seres humanos, se cansam durante o dia e tendem a tomar piores decisões». Também assegura que «os médicos e os pacientes deveriam conhecer que existe essa “fadiga da decisão”».

 2)  A demonstração dos efeitos do esgotamento nos processos judiciais, que aparece publicada na «Proceedings of the National Academy of Sciences» (http://www.pnas.org/content/108/17/6889.full.pdf). O objetivo deste estudo consistiu em determinar os fatores que intervinham na decisão dos juízes de outorgar liberdade condicional aos presos. E qual foi o fator determinante? Não foi nem o tipo de crime, nem a aparência dos presos, nem a idade, nem qualquer vinculação com algum partido político... Não! O fator principal resultou ser a «hora do dia» (e a proximidade da hora de comer) na qual se apresentava o caso. Ao iniciar o dia, os juízes estavam dispostos a outorgar liberdade condicional um 65% das vezes; conforme avançava a manhã essa percentagem ia baixando até chegar a 0 (zero). De igual forma, depois dos recessos de almoço, o percentual voltava a subir ao 65% para ir baixando até 0 (zero) para o final do dia.

A que se deve isto? Ao fato de que a capacidade de concentração do ser humano tem limites, e se os superamos se torna difícil tomar uma decisão de forma correta. Significa que aqueles que tomam demasiadas decisões ou executam diversas tarefas simultaneamente não podem filtrar e eliminar informação não pertinente, não podem distinguir informação importante de informação não importante, porque sua atenção e recursos cognitivos se encontram sobrecarregados com demasiada  informação a processar ao mesmo tempo; quer dizer, não sabem o que estão fazendo em cada momento determinado.

Por quê? Pois resulta que nossa «força de vontade» é como um músculo e como todo músculo se fadiga quando se usa demasiado. Assim que quanto mais usamos nossa «força de vontade» tomando decisões durante o dia (ou desenvolvendo várias tarefas em simultâneo), mais se vai cansando. Este cansaço, esta «fadiga da decisão», é o que provoca a tendência a tomar a decisão mais fácil, a que menos movimento requeira, ou a fazer o que mais estamos acostumados: como não fazer exercício, não ler ou ficar mais tempo desperto frente ao televisor ou computador.

Por dizê-lo de alguma maneira, nosso limitado cérebro fica mais preguiçoso ao tomar decisões. E aqui vai um pequeno conselho de ordem epistemológica: muita cautela com os juízes e médicos cansados e famintos, porque a fadiga e a fome provavelmente sejam aqui determinantes para a «boa justiça» e a «boa saúde». Já sabem o que dizem: quando nos tribunais e hospitais se toca uma determinada música, podemos começar a bailar em todas as partes. Não sei se me explico.

Mas nem tudo está perdido: se a «força de vontade» é como uma espécie de «músculo» que se cansa quando se usa em demasia, também se pode reforçá-la com  exercício e prática adequados. De fato, investigações recentes demonstram que o «autocontrole» e a «força de vontade», embora com uma grande influência da herança, podem ser tonificados exercitando-os, que se trata de um circuito cerebral que funciona como os demais, que tem uma capacidade determinada e que opera segundo determinadas regras que podemos controlar: sempre podemos fazer e conseguir que funcione como desejamos se encontramos o modo correto de fazê-lo[2].

O que parece ter mais valor - já escreveram tanto os estóicos como o mestre budista do século XI Atisha - é o «conhecer-se a si mesmo». O mais importante (e o que talvez mais tenacidade, determinação e firmeza requeira) é eliminar as coisas de nossa vida que não são importantes nem agregam valor; é saber eleger e decidir o que inclina nossa balança diária à «eudaimonia» (“el trabajado dominio de uno mismo y la superación de las pasiones”) e o que não.

Pessoalmente, estou convencido que um bom caminho, uma forma de virtuosa autodisciplina («a melhor disciplina é a autodisciplina»), é  seguir o que eu denomino de «As três restrições»: i) restrição social; ii) restrição espiritual; e iii) restrição calórica. Mas essa é outra história.

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[1]Diversos experimentos realizados pelo psicólogo Roy Baumeister e colaboradores demonstraram de forma concludente que todas as variantes do esforço voluntário, já sejam cognitivas, emocionais ou físicas, consomem energia mental. O autocontrole e a força de vontade consomem energia, pelo que se nos esforçamos para fazer algo estaremos menos dispostos a exercitar o autocontrole e a vontade quando surja um nuevo reto. Dito de forma um pouco grossa: as pessoas usam tanto sua força de vontade ou autocontrole para se manter motivadas que, em determinado momento, ela se esgota e não é possível controlar mais os seus impulsos. Este fenômeno se conhece como «depleção do ego».  Os tipos de indicadores desta «depleção» e a lista de situações que podem esgotar nosso autocontrole é variada e todas se caracterizam por gerar algum tipo de conflito e pela necessidade de eleger ou suprimir uma tendência natural: abandono de uma dieta, consumo compulsivo e impulsivo, reação agressiva ante uma provocação, tratar de impressionar aos demais, inibir respostas emocionais a um filme ou uma canção,  responder amavelmente a uma pessoa que não suportamos, etc.  A «depleção do ego» supõe em parte uma perda de motivação, razão pela qual conseguir vencer seus efeitos implica a necessidade de buscar fortes incentivos para fazê-lo. O descobrimento mais surpreendente, segundo Daniel Kahneman, dos estudos de Baumeister, «es el hecho de que una actividad mental que requiere mucho esfuerzo consume grandes cantidades de glucosa. Cuando estamos inmersos en un razonamiento cognitivo complicado o en una tarea que requiere autocontrol la glucemia disminuye. Una atrevida implicación de esta idea es que los efectos de la “depleción del ego” pueden revertir con la ingesta de glucosa. Baumeister y sus colaboradores han comprobado esta hipótesis en numerosos experimentos». (Roy Baumeister, «Willpower», 2011; Daniel Kahneman, «Thinking, Fast and Slow», 2011; Andrew J. Smart, «Autopilot. The Art & Science of Doing Nothin», 2013).

[2] Evidentemente sem nenhuma necessidade de evocar ou acudir ao flagelo da «autoajuda», esse invento de Satã. Por quê? Pois basicamente porque a «autoajuda» apresenta um grande inconveniente: é mentira. Embora dar conselhos a outros seja a «mais fácil de todas as coisas» (Tales de Mileto), desde um ponto de vista puramente racional é impossível que um indivíduo escreva um livro para um completo desconhecido com o propósito de ajudar-lhe. Quer dizer, para que uma obra fora de «autoajuda» deveria escrevê-la a própria pessoa. Se não é assim, deveriam chamá-la simplesmente «de ajuda», donde autores de todo tipo, com seus idiossincrásicos sincretismos e revelações místicas, oferecem, «ad absurdum et ad nauseam», suas milagrosas fórmulas mágicas para conseguir a felicidade e o desenvolvimento pessoal, ainda que sem saber exatamente para quem e o que significam. Com o «auto», explica T. García Ramón, “están insinuando que es usted un imbécil incapaz de ayudarse a sí mismo y que van a pedirle a alguien a quien le importan un pito sus dolencias escriba algo para que encuentre consuelo después de pasar por caja.”

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