A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE AUTONOMIA ATÉ OS NEGÓCIOS BIOJURÍDICOS    

16/03/2021

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

A autonomia, ao conceder liberdade para as pessoas se relacionarem na esfera privada, representa um dos pilares do negócio jurídico. Contudo, este princípio passou por diversas transformações ao longo dos anos, juntamente com a Teoria Geral do Negócios, culminando hoje na existência dos chamados “negócios biojurídicos”.  

Antes de adentrar nos negócios biojurídicos, deve-se compreender mais a fundo a história deste princípio. O termo “autonomia” tem origem grega e é a junção de duas palavras: autós, que significa “a si mesmo”, e nomói, que é “regra”. Assim, autonomia é a capacidade de a pessoa decidir sobre si mesma, gerenciando a sua vida[1].

Noções de autonomia sempre estiveram presentes na história da humanidade, em maior ou menor medida[2]. Contudo, para fins de estudos jurídicos, principalmente do campo negocial, a Revolução Francesa representou a concretização deste princípio.

Através deste movimento revolucionário e, a consequente elevação da burguesia ao poder, o Direito Privado se separou do Direito Público, concedendo aos particulares uma ampla liberdade para negociarem. Essa liberdade, denominada de autonomia da vontade, era ilimitada, permitindo que os indivíduos se relacionassem no campo privado, de forma livre, sem qualquer intervenção do Estado[3].

Esse cenário de irrestrita liberdade resultou em relações desequilibradas, tendo em vista a desigualdade entre as partes pactuantes e a ausência de intervenção Estatal[4]. Assim, ante a ineficiência do modelo Liberal para modificar tal cenário, houve a ascensão do Estado Intervencionista, que passou a limitar a autonomia individual[5].

Neste novo contexto, a autonomia passou a ser delimitada por normas e princípios de ordem pública, sendo denominada de “autonomia privada”, que corresponde ao poder concedido pelo Estado ao indivíduo para se relacionar no campo privado[6].

Ainda, em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos durante o século XX, há uma evolução na teoria dos negócios jurídicos, na qual percebe-se que além dos negócios jurídicos meramente patrimoniais, tem-se também os existenciais, conforme elucida Rose Melo Vencelau Meireles:

A biotecnologia está no cerne dessa questão, na medida em que possibilita a escolha sobre aspectos do próprio corpo que podem promover efeitos constitutivos, modificativos ou extintivos. Nesses casos, conforme antes mencionado, a autonomia ganha a forma de negócio jurídico. Como têm por referencial objetivo aspectos da saúde e do corpo do declarante, foram aqui chamados de biojurídicos[7] .

É importante fazer um adendo sobre o assunto. Com toda as transformações enfrentadas pela sociedade, aliada à crescente preocupação, no campo jurídico, com a proteção do ser humano, resultou na elevação da dignidade da pessoa humana como valor fundamental de diversas Constituições, a noção da existência de negócios jurídicos que afetam o mínimo existencial do ser humano também se forma. Esses são denominados de negócios jurídicos existenciais, que têm como objeto a garantia do mínimo existencial para a pessoa e dos seus direitos fundamentais[8].

Dentre esses negócios, existem negócios biojurídicos, como são denominados por Rose Melo Vencelau Meireles. Esses negócios têm como objeto o próprio ser humano e seu corpo[9], e alguns exemplos são: diretiva antecipada de vontade e contrato de reprodução assistida[10]

É importante adotar esse categoria específica porque “primeiramente, os negócios jurídicos no Código Civil constituem normas gerais, podendo haver negócios de cunho existencial, tendo em vista a sua especialidade”[11] e também que essa denominação específica “tem como objetivo destacar que eles [negócios biojurídicos] se diferenciam dos demais negócios jurídicos, devendo ter mais atenção que aqueles [negócios patrimoniais], pois envolvem o ser humano, a sua personalidade e, consequentemente, sua dignidade”[12].

Primeiro ponto que se deve observar sobre esses negócios é que eles não encontram previsão expressa na lei. Assim, são realizados, muitas vezes, na forma de contratos atípicos, seguindo as normas gerais da teoria geral do negócio jurídico. Todavia, por envolverem diretamente o ser humano, deve ser sempre observado, com muita atenção, o respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não podendo haver cláusulas que firam esse princípio[13].

O Estado tutela alguns interesses relativos ao corpo, identidade, intimidade, entre outros, que são capazes de nortear as relações privadas que se formam. Por exemplo, há a proibição da doação de órgãos vitais durante a vida, mas por outra via, órgãos dúplices que não impliquem na morte do indivíduo podem ser doados com finalidade altruística, sem nenhum tipo de onerosidade.

Dessa forma, a dignidade da pessoa humana é a norteadora central dos negócios biojurídicos. Juntamente com o princípio jurídico, o Conselho Federal de Medicina emite resoluções, que apresentam disposições importantes que envolvem como os procedimentos médicos devem ser realizados. Tais textos não têm força de lei, mas auxiliam no entendimento de como os procedimentos devem ser realizados.

Apesar de não haver disposição jurídica específica sobre os diversos negócios biojurídicos, eles existem e estão cada vez mais presentes na sociedade. Tal existência tem como fundamento o princípio da autonomia que permite aos particulares negociarem como desejam, desde que respeitem os princípios e normas de ordem pública.

Percebe-se que a autonomia hoje, principalmente devido aos negócios biojurídicos, deixou de envolver apenas situações patrimoniais como no passado, oferecendo um leque muito maior de escolhas ao indivíduo. Isso decorre principalmente do entendimento de que o indivíduo tem liberdade sobre todas as esferas da sua vida. Assim, alguns autores utilizam o termo autodeterminação para definir tal liberdade, sendo aquele o “poder de cada indivíduo gerir livremente sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências”[14].

Então, a autodeterminação é uma expansão da autonomia, para além do campo patrimonial. Em linhas gerais, graças ao entendimento de que o indivíduo é livre para gerir a sua vida, é possível existirem tantas modalidades de negócios jurídicos. E, devido aos avanços biotecnológicos, formam-se negócios biojurídicos, que estão presentes na realidade. Todavia, sempre para confeccionar um negócio jurídico, a liberdade está adstrita às normas de ordem pública, e no tocante aos negócios biojurídicos a análise central do respeito a dignidade da pessoa humana.

 

Notas e Referências

[1] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. A autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n. 163, p. 113-130, jul./set., 2004.

[2] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. A autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: notas sobre a evolução de um conceito na modernidade e na pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, n. 163, p. 113-130, jul./set., 2004.

[3] PONA, Éverton Willian. Testamento Vital e Autonomia Privada. Curitiba: Juruá, 2015.

[4] PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Possibilidade de disposição sobre os embriões no pacto antenupcial.  In: PAIANO, Daniela Braga; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa (Coord.). Relações jurídicas familiares sob uma ótica contemporânea – Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2019.

[5]  PONA, Éverton Willian. Testamento Vital e Autonomia Privada. Curitiba: Juruá, 2015.

[6] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

[7] MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. In: PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016, p. 115.

[8] MARQUESI, Roberto Wagner; MARTINS, Priscila Machado. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais e negócios jurídicos existenciais. In: PONA, Éverton Willian; AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do; MARTINS, Priscila Machado (coord). Negócio Jurídico e Liberdades Individuais: autonomia privada e situações existenciais. Curitiba: Juruá, 2016, p. 150.

[9] MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016.

[10] PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018,

[11]PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018, p. 267.

[12] PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018, p. 267-268.

[13] PAVÃO, Juliana Carvalho; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. Paradigma Contemporâneo e os negócios biojurídicos: seleção embrionária. Scientia Iuris. Londrina, v. 22, n. 2, p. 244-271, jul.2018.

[14] RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999, p. 20.

 

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