A etiologia do crime na Escola Penal Positiva – Por Mauricio Mota

31/05/2017

O presente artigo tem por objetivo fornecer um panorama, ainda que sucinto, da discussão que resultou na criação da Escola Penal Positiva e de como essa Escola tratou dos principais institutos do direito penal e da criminologia, e principalmente, avaliar quais foram as principais teorias produzidas por essa Escola acerca da etiologia do delito.

Cabe primeiro se abordar o que é a denominação Escola Penal. Na linguagem filosófica Escola tanto pode designar um grupo real de filósofos em torno de um mestre quanto uma tendência perpetuada por certo tempo por filósofos historicamente ligados uns aos outros. Essa denominação, inicialmente filosófica, foi estendida depois à ciência, às artes, à literatura, à história, como agrupamento de intelectuais que professam a mesma doutrina ou admitem uma tese principal. Duas são as acepções principais que podemos distinguir quando nos referimos à noção de Escola em Direito Penal: a primeira, uma divisão em grandes agrupamentos do conhecimento, para fins didáticos; a segunda como movimento doutrinário contraposto a outra ordem de ideias.

O Prof. Roberto Lyra expõe as vantagens e problemas que encerra a primeira classificação em termos de Direito Penal:

“Para fins didáticos, o desenvolvimento científico do Direito Penal impõe a distribuição das correntes em torno de noções especiais mais ou menos privativa dos aspectos do fenômeno criminal.

Deve-se reconhecer, contudo, a insuficiência dessas classificações, dada a multiplicidade de pontos de vista e a sutileza das ‘nuances’ no terreno mais vibrante, mais agitado, mais sensível de todo o Direito. A história do Direito Penal é a história da humanidade e da sociedade sintonizadas, de modo permanente, nos mínimos detalhes[1]”.

Além dessa delimitação do campo do conhecimento, necessariamente empobrecedora do complexo fenômeno criminal, para que uma doutrina seja reconhecida como Escola de direito penal é necessário que esta esgote o objeto do direito penal, domine a totalidade dos seus horizontes, aprofunde todos os seus problemas e institutos, do mesmo ponto de vista, com os mesmos fins, pelos mesmos métodos e para atingir as mesmas conclusões. Se não chegam a realizar esse intento não são Escolas de direito penal; serão, no máximo, Escolas sobre a pena, o criminoso, a imputabilidade, a culpabilidade, a legítima defesa, a tentativa, a cumplicidade, nunca de direito penal que é o todo[2].

A Escola Penal Positiva, sem dúvida, abrange em seus postulados e em sua sistematização teórica, todo o arcabouço necessário para ser legitimamente conceituada como uma autêntica Escola de direito penal. Seja com o desenvolvimento da antropologia criminal, com o estudo do criminoso de Cesare Lombroso; seja com a sistematização da sociologia criminal, da teoria positiva da responsabilidade penal e das reformas penais preconizadas por Enrico Ferri; seja com o estudo jurídico do delito, do delinquente e da repressão penal de Raffaele Garofalo; ou seja ainda com os múltiplos discípulos e contemporâneos desses doutrinadores que suscitaram e aprofundaram a exegese de outros pontos do fenômeno e do direito penal, a verdade é que a Escola Penal Positiva efetivamente conseguiu dar conta de fornecer uma resposta ao enorme conjunto de indagações que afloram da realidade do fato criminal.

Não é todavia, principalmente por esse enorme arcabouço teórico, que a Escola Penal Positiva estabeleceu os traços marcantes da sua identidade.

Essa identidade da Escola Penal Positiva é dada fundamentalmente pela contraposição à quase totalidade das ideias penais anteriores, às quais, esta vai procurar agregar, detrativamente, o nome de Escola Clássica.

Lombroso, ao referir-se ao seu livro “L’uomo delinqüente” no prefácio do autor da quarta edição francesa (1887), assume a paternidade da nova Escola Penal, inaugurada por seu livro, e saúda as aplicações práticas que os continuadores de sua obra estavam implementando no universo jurídico:

“Este livro, semelhante àquele humilde inseto que transporta, sem saber, o pólen fecundante, vivificou um germe que não teria, talvez, alcançado seus frutos senão após longos anos. Ele deu nascimento a uma nova escola que, graças ao trabalho de.. [vários autores], preencheu as muito numerosas lacunas das primeiras edições do livro e, ao mesmo tempo, determinou as aplicações práticas do ponto de vista jurídico” (tradução nossa)[3].

Enrico Ferri no prefácio à edição de seu livro “La Sociologie Criminelle” (1905), analisando o impacto da publicação dos livros de Lombroso, Garofalo e dos seus próprios, dá bem a ideia do clima de guerra que se estabeleceu entre as duas correntes de pensamento em direito penal:

“As ideias tradicionais - teóricas e práticas - acerca da ‘justiça penal’ receberam um choque tão violento, que devia necessariamente levantar uma reação furiosa. A batalha engajou-se imediatamente nos congressos, nas revistas, nos jornais mesmo; os livros responderam aos livros; e a mistura ficou tão quente que será preciso tempo para que a poeira assente e para que o ar volte a ser bastante claro” (tradução nossa)[4].

Ferri irá procurar estabelecer uma analogia entre o desenvolvimento da doutrina criminalista tradicional de um lado, que teria alcançado o mais alto grau de doutrinarismo metafísico, e de outro o aumento considerável da criminalidade.

Seria a teoria tradicional uma incentivadora da criminalidade, já que a Escola Clássica estuda primordialmente o delito como uma entidade jurídica; sua preocupação com a pessoa do criminoso seria acidental e secundária o que não possibilitaria uma aplicação da pena, em maior ou menor intensidade, de acordo com as condições pessoais do delinquente.

Além disso, a Escola Clássica, tendo surgido de uma reação generosa contra o empirismo e a ferocidade dos castigos e das penas da Idade Média, tinha como fim prático a diminuição das penas e, em grande parte, a sua supressão, teoria que não se coadunava mais com a realidade de escalada da criminalidade vivida pela Europa.

Feito o diagnóstico do problema central da ciência penal, Ferri irá estabelecer a profilaxia necessária: o estabelecimento de uma nova Escola de direito penal, cientificamente orientada pelo método experimental, que, combatendo sistematicamente a abstração da velha teoria, fosse um efetivo instrumento de entendimento e repressão da criminalidade. A identidade, a razão de ser, da nova Escola se estabelece assim como a contraposição vigorosa e inarredável às teorias clássicas. Comentando o fracasso das ideias tradicionais na contenção da criminalidade, Ferri estabelece os princípios e fundamentos da nova Escola:

“Devia portanto naturalmente se produzir um movimento científico que, seguindo o método experimental, se propusesse, pelo estudo da patologia social nas manifestações da criminalidade, a fazer desaparecer esse contraste entre a teoria dos delitos e das penas e a realidade dos fatos cotidianos.  Disso nasceu a Escola criminal positiva cujo objeto essencial consiste em estudar a gênese natural do delito, seja no delinquente, seja no meio onde ele vive, para apropriar as causas diferentes de remédios diferentes. Esta Escola criminal positiva constitui doravante um ramo distinto e vigoroso da sociologia geral, sob o nome de Sociologia Criminal, que eu dei em 1882, a fim de fazer entrar os dados experimentais da antropologia, da físico-psicologia, da psíquico-patologia e da estatística criminal, assim os meios indicados pela ciência para combater (pela prevenção e repressão) o fenômeno do delito” (tradução nossa)[5].

Ferri elabora uma delimitação radical do campo do conhecimento no direito penal. Inspirando-se nos cânones tradicionais do pensamento comteano, de evolução da humanidade em três estágios de formas de pensamento sucessivas, a teológica, a metafísica e a científica, o mestre italiano irá dizer que a Escola penal positiva se constitui na nova (e, dentro dessa teorização, definitiva) fase da evolução da ciência criminal:

“Antes de tudo, entretanto, é preciso afastar essa ideia incompleta, expressa por certos juristas ecléticos e, inicialmente, pelo próprio Lombroso, que esta nova Escola não é mais que uma união parcial, uma aliança simpática entre o direito penal e a antropologia criminal. Não; ela é muito mais que isso; ela tem um alcance científico e prático bem mais considerável; ela é a aplicação do método experimental ao estudo dos delitos e das penas; e a este título, por consequência, ao passo em que ela faz penetrar no recinto do tecnicismo jurídico abstrato o sopro vivificante das novas observações, feitas não somente pela antropologia criminal , mas também pela estatística, a psicologia e a sociologia, ela representa verdadeiramente uma nova fase na evolução da ciência criminal” (tradução nossa)[6].

Ferri vai firmar também, em que consiste a finalidade da nova Escola de direito penal, a diminuição efetiva dos delitos, e porque a doutrina e a metodologia adotada constituem a superação definitiva de toda essa fase arcaica, clássica, da ciência criminal:

“Com efeito, se esta última [a Escola Clássica] se propôs e obteve na ordem prática a diminuição das penas, e na ordem teórica o estudo abstrato do delito considerado como uma entidade jurídica, por seu turno a nova Escola, ela também, se propõe um duplo e fecundo ideal. Na prática ela se propõe como fim a diminuição dos delitos, que todos os dias aumentam, bem longe de diminuir; e na teoria, a fim justamente de chegar a esse objetivo prático, ela se propõe o estudo completo do delito, não como abstração jurídica, mas como ação humana, como fato natural e social; por consequência ela empreende estudar não somente o delito em si mesmo como relação jurídica, mas também e primeiro aquele que comete esse delito, isto é, o delinquente” (tradução nossa)[7].

Estabelecida assim a identidade principal da Escola penal positiva, a violenta e radical oposição às ideias penais anteriores, vejamos em que consistiam basicamente essas ideias às quais se opunham os criminalistas positivistas.

A Escola Clássica, ou Escola idealista, ou Escola jurídica (Carrara), foi, como vimos, a denominação efetuada pelos criminalistas positivistas, de todo o imenso agrupamento de doutrinas que precedeu o aparecimento da Escola penal positiva. Ela encerra, em seu bojo, o conteúdo mais flutuante, com a rivalidade de tendências que, na época de sua atuação chegaram a extremos de combate recíproco. Abrangendo doutrinas penais que surgiam e floresciam em países diferentes, sem entendimento e, muitas vezes sem conhecimento do que se passava além das fronteiras, numa construção anárquica, só se pode falar efetivamente na existência de uma Escola Clássica, tendo em mente todas as nuances e diferenças que efetivamente separavam seus membros.

Para fins didáticos, distinguem-se na Escola Clássica, o período filosófico ou teórico e o período jurídico ou prático. No primeiro período avulta a figura de Cesare Bonesano, marquês de Beccaria, que em 1764 publicou um célebre opúsculo “Dos delitos e das penas” historiando os horrores e as infâmias da justiça criminal até então vigente, resultante da opressão teológica e autocrática. A anarquia das jurisdições, os abusos de um simulacro de processo secreto, complicado, lento, arbitrário, os constrangimentos sem regra à liberdade individual, os privilégios, a atrocidade dos suplícios, tudo isso foi condenado e repudiado pelo marquês em nome dos novos princípios penais[8].

Da obra de Beccaria e de seus sucessores a doutrina penal moderna passa por um sucessivo refinamento teórico que irá culminar com o estudo profundo do conteúdo jurídico do delito no período jurídico ou prático.

Este período é marcado pelos estudos do conteúdo jurídico do delito de Carmignani e sobretudo pela obra de Francesco Carrara. Tratou este de todos os assuntos do direito penal como ciência estritamente jurídica. A sua obra monumental intitulada Programma del corso di diritto criminale, em nove volumes, delineou, no dizer do autor, os princípios cardiais do Direito Penal.

A Escola Clássica parte da noção da formação de um novo sistema penal baseado nos princípios liberais contidos no Contrato Social (Rousseau), em que homens livres convencionam viver em harmonia e em que cada um é responsável pelos seus atos, expressando livremente a sua vontade. O crime nesse contexto passa a ser entendido como o rompimento da harmonia social, uma afronta ao contrato social, uma violação voluntária e consciente de um indivíduo que age exercendo absolutamente sua liberdade.

Entendido dessa forma, o crime seria um mal injusto causado à vítima e à toda a sociedade, com o descumprimento do pacto de paz consagrado na lei. A esse mal injusto, praticado conscientemente, a sociedade imporia ao criminoso - através do Estado - a punição correspondente. A pena aparece assim, como a justa retribuição imposta pela sociedade-Estado ao mal causado. A primeira consequência desses princípios é a de que só as leis podem decretar as penas e os delitos, e esta autoridade deve residir unicamente no legislador, que representa toda a sociedade unida pelo contrato social[9].

A etiologia do crime na Escola Clássica, teria como causa eficiente a vontade livre do delinquente[10]. A responsabilidade penal do criminoso se funda na responsabilidade moral, e esta tem por base o livre arbítrio, faculdade inerente à alma humana.

Na opinião dos criminalistas clássicos o livre arbítrio é o apanágio de todos os homens psiquicamente desenvolvidos e mentalmente sãos. E desde que possuem essa faculdade, esse poder de escolha entre motivos diversos e opostos, eles são moralmente responsáveis por todos os seus atos, visto serem estes filhos exclusivos dessa vontade livre e soberana.

Desse princípio da responsabilidade penal do criminoso baseada no livre arbítrio decorrem os seguintes princípios corolários:

1º - só há responsabilidade penal quando existe a responsabilidade moral, isto é, só podem ser punidos, como autores de ações ou omissões criminosas, os que tem responsabilidade moral, possuem livre arbítrio (assim, o menor, o louco, o idiota, o surdo-mudo alienado e, para muitos, o ébrio, o sonâmbulo e o hipnotizado, não são responsáveis);

2º - tem graus essa responsabilidade moral do criminoso, e está na razão direta da porção do livre arbítrio que ele possui;

3º - a severidade da pena, e, portanto, a gravidade do delito, varia conforme é maior ou menor esta responsabilidade moral;

4º -  O crime é obra exclusiva da vontade livre do delinquente; e nunca um produto natural e social, resultante da ação combinada de fatores biológicos, físicos e sociais[11].

O criminoso, para a Escola Clássica é um ser normalmente constituído e psicologicamente são, provido de ideias e de sentimentos iguais aos de todos os homens. Desse princípio de igualdade fundamental decorre que é somente o crime, como entidade jurídica, “infração e não ação”, no dizer de Carrara, e não o criminoso, a sua índole e a sua natureza, que deve ocupar a atenção do criminalista. O delito e não a personalidade do delinquente que deve servir de verdadeira medida para a penalidade; quanto maior a gravidade do delito maior deve ser a punição[12].

As doutrinas quanto ao conceito e aos fins atribuídos à pena podem classificar-se em absolutas, relativas ou mistas. A primeira tem em vista um sentido de justiça absoluta. Impõe-se a pena, não visando um benefício para o criminoso ou mesmo para a sociedade, mas porque o delinquente a mereceu, como um castigo. Não tem outro intuito senão o sancionador, de retribuição do mal pelo mal. As doutrinas relativas ou utilitárias são todas aquelas que conferem à pena uma utilidade. Destinam-se a um fim, variável em função do ângulo em que se coloque o doutrinador.

Na Escola Clássica teremos preconizadas as duas doutrinas, com porém a nítida predominância da doutrina absoluta.

A doutrina de Beccaria enquadrava-se entre as relativas: para ele a pena não se destina a anular um fato nocivo já cometido, e sim impedir que o culpado continue a delinquir, bem como desviar seus concidadãos da possibilidade de cometerem crimes.

A doutrina da justiça absoluta, que predominou na Escola Clássica, baseia-se nas ideias de Kant. Para ele, a pena tem como finalidade única o restabelecimento da ordem moral, perturbada pelo crime. O castigo compensa o mal e dá reparação à moral.

O delinquente deve ser punido porque o mereceu. Não há cogitar-se de vantagem para a pena, visto que esta não representa mais que a satisfação de um imperativo categórico gravado na consciência. A razão nos ensinaria que, sempre que se dá um crime, é preciso que o autor seja castigado[13].

Os postulados da Escola Clássica seriam, então, em resumo, os seguintes:

1º - a adoção de um método essencialmente dedutivo, que parte, aprioristicamente de princípios gerais, dos quais vai deduzindo regras particulares;

2º - o delito entendido como ente jurídico e não como ação criminosa;

3º - a imputabilidade baseada no livre arbítrio e na responsabilidade moral;

4º - a pena como um mal e um meio da tutela jurídica.

Ferri resumiu, com inusitada isenção, os avanços conquistados pelos doutrinadores da Escola Clássica, na sua reação aos excessos medievais da justiça penal:

1º - expuseram e estabeleceram a razão e os limites do direito de punir por parte do Estado;

2º - opuseram-se à ferocidade das penas, invocando e obtendo a abolição das penas capitais, corporais e infamantes com a mitigação geral das penas conservadas;

3º - reivindicaram todas as garantias para o indivíduo, quer durante o processo, quer na aplicação da lei punitiva[14].

Logo, no entanto, surgiria a reação positivista. Reagindo à fraqueza e à metafísica dos clássicos, aos quais atribuíam o recrudescimento da criminalidade, a Escola positiva surgiu para tornar mais racional, mais sistemática a defesa social, e em última análise, a repressão penal. Em 1876 com a publicação do livro “L’uomo delinquente” de Cesare Lombroso surge a antropologia criminal e a gênese da criminologia contemporânea.

No contexto da ciência marcada pelo positivismo a nova disciplina vai utilizar-se de uma metodologia de análise da realidade social transplantada das ciências exatas e naturais, caracterizando-se pela observação empírica, quantificação, medição e classificação dos fenômenos a serem explicados. O estudo do criminoso, a investigação das causas do crime, o controle do liberalismo e do sentimentalismo, a profilaxia penal, enfim, todo o pensamento criminológico contemporâneo, aparadas as arestas da fase de lançamento da doutrina, parte dos pressupostos lombrosianos.

A Escola positiva ou Escola italiana surge da sistematização dos novos conhecimentos e da luta contra os chamados clássicos, empreendida sobretudo pelos continuadores da obra de Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo. Ferri irá colocar em relevo os fatores físicos e sociais do delito e Garofalo procurará buscar uma definição do delito como fenômeno natural, matéria que não fora enfrentada por Ferri ou por Lombroso.

Quanto às influências intelectuais mais marcantes sobre os precursores positivistas da ciência criminal, Lombroso será influenciado por Darwin, do qual extrai seu conceito de atavismo; Ferri retirará elementos de Comte; e Garofalo recebera influxos de Spencer, de cuja filosofia da evolução extrairá aplicações para a psicologia, sociologia e defesa da sociedade. Cabe contudo ressaltar que por influência não deve ser entendido uma aplicação mecânica dos referidos postulados científicos à ciência penal, mas sim um aproveitamento e uma elaboração crítica desses postulados. Como salientou o próprio Ferri:

“Vou dizer de uma vez por todas que se nós demos à nossa Escola o título de positiva, não é porque ela segue um sistema filosófico - mais ou menos comtista - mas é unicamente por causa do método (de observação e de experimentação) que nós nos propomos a aplicar” (tradução nossa)[15].

Podemos dividir portanto a Escola penal positiva, ao menos nos seus primórdios, segundo a classificação de Eugenio Florian, em três períodos: bio-físico (Lombroso); bio-sociológico (Ferri); e jurídico (Garofalo).

A Escola penal positiva, em contraposição aos clássicos, parte da noção de um sistema penal baseado no equilíbrio entre os direitos do indivíduo e os do Estado. O crime é entendido não como uma abstração jurídica, o rompimento pelo criminoso do contrato social, mas sim como ação humana, como fato natural e social; em consequência o delito deve ser estudado não somente como relação jurídica mas também em estreita simbiose com aquele que comete o delito, isto é, o delinquente.

No dizer de Zorrilla, ocorre a ontologização do crime:

“A distinção do positivismo em suas múltiplas correntes é a de que o crime, por assim dizer, se ontologiza, se converte em um dado objetivo, um ente natural que pode ser observado, isolado e estudado de forma similar a como se estudam os demais fenômenos da natureza” (tradução nossa)[16].

Encarando o delito como fato natural e social, os positivistas vão deduzir a tese de que cada período histórico estará associado a uma forma específica de criminalidade dominante, e que do estudo dessa criminalidade corrente é que pode estabelecer os princípios da profilaxia e da repressão penal. Como nos diz Ferri:

“Na civilização mesmo, toda fase tem uma criminalidade própria que lhe corresponde; e assim como era sobretudo uma criminalidade de violência e de sangue na sociedade feudal; que é uma criminalidade de roubo e de fraude na sociedade burguesa, essa mesma criminalidade terá também suas características próprias na sociedade do futuro” (tradução nossa)[17]. 

Quanto à responsabilidade penal do criminoso, a Escola positiva irá dizer que esta não pode se basear no livre arbítrio porque esse é uma ilusão, desmentida pela fisio-psicologia. A Escola positiva é adepta decidida do determinismo, psicológico ou volicional. Ela fulmina a existência do livre arbítrio e nega a responsabilidade moral dos indivíduos.

Para ela o homem não é dotado desse poder arbitrário e soberano de decisão livre entre a luta de motivos diversos que atuam sobre ele; mas está sujeito à lei da causalidade e seus atos são consequência inevitável das circunstâncias internas e externas que lhe influenciam a vontade. Admitir-se a existência de uma vontade livre, não determinada por motivos de qualquer ordem, é contestar-se o valor da herança e a influência que a educação e o meio físico e social exercem sobre os homens[18].

De acordo com Ferri esta herança obedece à lei da causalidade natural. Em virtude desta lei, sendo todo efeito a consequência necessária, proporcional e inevitável, do conjunto de causas que o produzem, isto é, dos antecedentes mediatos e imediatos, não se pode imaginar uma faculdade capaz de realizar um efeito diferente daquele que resulta naturalmente das suas próprias causas.

A Escola Positiva, opondo-se ao livre arbítrio, assentou outro conceito de responsabilidade: o de responsabilidade social. Para se punir alguém, é preciso que se possa lhe imputar o crime. É preciso que haja imputabilidade. Na Escola positiva, a razão em virtude da qual se imputa a alguém um certo ato é a existência do homem em sociedade. O homem é responsável porque é imputável e é imputável porque vive em sociedade.

Afastando, pois, o conceito de liberdade das ações humanas, a Escola positiva chegava, em conclusão, a admitir a possibilidade de se imporem sanções mesmo aos anômalos psíquicos. As sanções deveriam, como é evidente, variar, em atenção às condições pessoais, mas seriam impostas a todos os indivíduos que praticassem atos lesivos aos interesses sociais. Como medidas defensivas, alcançariam o mentalmente são e o insano também; alcançariam a quem quer que pusesse em perigo a sociedade[19].

O criminoso, para a Escola positiva, não é um homem normalmente constituído e psicologicamente são como apregoavam os clássicos, mas sim um ser anormal mais ou menos insusceptível de adaptação à vida social; pelas suas anomalias orgânicas e psíquicas, hereditárias e adquiridas, constituem uma classe especial, uma variedade da espécie humana. Como o diz Ferri:

“Estas observações físicas e psíquicas trouxeram os antropologistas a afirmar e a demonstrar que o homem criminoso, não somente,  assim como diziam primeiramente os autores ingleses, pode pertencer a uma ‘zona intermediária’ entre o homem são e o louco, mas que ele constitui, propriamente falando, como mostrou Lombroso e como os outros se asseguraram depois dele, uma variedade antropológica a parte, que apresenta características especiais tanto ao ponto de da patologia como da degeneração e do atavismo; e que, por essas últimas características sobretudo, ele representa na civilização atual as raças inferiores; enfim que ele é, sob todos os aspectos, diferente do tipo normal de homem são, bem desenvolvido e civilizado” (tradução nossa)[20].

Os positivistas, em conjunto, admitem a existência desse tipo antropológico do criminoso, resultante de um conjunto de caracteres anatômicos, fisiológicos, patológicos, fisionômicos e psicológicos, mas divergem quanto à importância que esses caracteres têm como indutores da criminalidade.

O conceito de pena e os fins atribuídos à ela pelo positivismo também são radicalmente díspares dos da Escola Clássica. Para os positivistas a pena é um remédio contra o crime, e na sua aplicação não se tem em vista o castigo, mas a defesa social.

Nenhum homem é reputado moralmente responsável por seus atos, porque nenhum possui o livre arbítrio; mas todos são socialmente responsáveis porque vivem em sociedade. E a sociedade, reagindo contra o crime, esta ofensa às condições naturais, nada tem que ver com a responsabilidade moral de seus agressores: ela se defende apenas no interesse da própria conservação, porque a pena não é um mal imposto ao culpado como uma punição merecida em vista do mal que voluntária e conscientemente praticou; mas é, como define Ferri, o “conjunto dos meios jurídicos empregados pela sociedade na luta contra o crime”.

Resumindo, podemos expor as principais discordâncias da Escola Positiva com a Escola Clássica como as seguintes:

1ª - quanto ao método, a substituição do método dedutivo, lógico-abstrato da Escola Clássica pelo método indutivo, de experimentação e observação, nas investigações criminológicas da Escola positiva;

2ª - quanto ao modo de considerar o delito: substituir o delito como entidade jurídica abstrata na Escola Clássica pelo delito como fato natural e social;

3ª - quanto à maneira de encarar o delinquente: deixar de considerá-lo um indivíduo sensivelmente igual aos demais homens e passar a considerá-lo um indivíduo provido de caracteres pessoais peculiares, que necessitam ser estudados e que constituem, na maioria das vezes, anomalias denunciadoras de forte propensão ao crime; segundo a Escola positiva;

4ª - quanto à maneira de apreciar a pena: substituir a pena como medida proporcional à gravidade dos elementos moral e material do delito, da Escola Clássica, e entendê-la como providência de defesa social, ou sanção defensiva, proporcional à periculosidade do agente delituoso e, portanto, individualizada, isto é, adaptada às suas condições pessoais, através do prisma da Escola positiva;

5ª - quanto à responsabilidade penal: substituir a responsabilidade moral baseada no livre arbítrio pela responsabilidade social ou legal que decorre da existência do homem em sociedade[21].

Consideremos agora o que seria a etiologia do crime segundo a Escola penal positiva. Além da reação aos postulados da Escola Clássica, a outra característica marcante da Escola penal positiva é a de que ela encara o crime como um fato natural e social, ontologizado, um dado objetivo, pré-constituído, passível de ser observado, isolado e estudado de forma similar ao estudo dos outros fenômenos da natureza.

Por isso a criminologia de raiz positivista é uma criminologia eminentemente etiológica. Ela extrai do sistema penal seu objeto de estudo, seja através das definições e estatísticas policiais e judiciais, seja estudando os criminosos selecionados através da instituição da prisão. A função do criminólogo positivista consiste em ministrar conhecimentos acerca das causas do delito e das características de seus autores de modo a auxiliar a ciência penal na profilaxia e repressão da delinquência[22].

É necessário assim, para o entendimento global da teorização penal da Escola positiva, o estudo da etiologia do crime nessa Escola, e mais aprofundadamente, os matizes e as diferenças entre os diversos doutrinadores. A Escola positiva porém, dada a sua metodologia sistemática e o seu enfoque totalizador do direito penal e do fenômeno do crime, atraiu uma plêiade de cientistas que desenvolveram a fundo seus conceitos como Liszt, Kraepelin, Biliakow, Troiski, Körnfeld, Knecht, Holtzendorf, Sommer, Kirchenheim, Mendel, Pulido, Echeverria, Zanches, Drill, Kowalewski, Likaceff, Minzloff, Kolokoloff, Espinas, Letourneau, Tonninni, Reinach, Soury, Corre, Motet, Orchanski, Manouvrier, Fioretti, Le Bon, Bordier, Bournet, Roussel, Ribot, Heger, Albrecht, Warnott, Lenhossek, Tamburini, Frigerio, Laschi, Mayor, Majno, Renelli, Fulci, Pavia, Aguglia, Sergi, Tanzi, Campili, Barzilai, Pugliese, Morello, Lessona, Cosenza, Lestingi, Colucci, Turati, Marro, Venezian, e sobretudo Lacassagne, Flesch, Benedikt, Beltrani-Scalia, Virgilio, Morselli, Puglia, Lombroso, Ferri e Garofalo[23], entre muitos outros, cujo exame detalhado das nuances do pensamento acerca da etiologia do crime extrapolaria bastante os limites desse artigo. Optamos então por realizar a análise mais detalhada das causas da criminalidade nos três autores considerados os grandes idealizadores, divulgadores e sistematizadores da Escola penal positiva: Lombroso, Ferri e Garofalo.

O estudo da etiologia do crime e suas variações nesses três autores nos darão, sem dúvida uma visão bastante completa do pensamento da Escola positiva.

Primeiramente vamos ver a etiologia do crime em Cesare Lombroso. Cesare Lombroso (1835-1909) foi um homem polifacético; médico, psiquiatra, antropólogo e político, sua extensa obra abarca temas médicos (“Medicina Legal”), psiquiátricos (“Os avanços da psiquiatria”), psicológicos (“O gênio e a loucura”), demográficos (“Geografia médica”), criminológicos (“L’uomo delincuente”), políticos (os dois volumes aparecidos em “Avanti”, órgão de divulgação do Partido Socialista Italiano, ao qual pertenceu), assim como outros históricos, astrológicos e espíritas.

Lombroso entende o crime como um fato real, que perpassa todas as épocas históricas, natural e não como uma fictícia abstração jurídica.

Como fenômeno natural que é, o crime tem que ser estudado primacialmente em sua etiologia, isto é, a identificação das suas causas como fenômeno, de modo a combatê-lo em sua própria raiz, com eficácia, com programas de prevenção realistas e científicos.

Para Lombroso a etiologia do crime é individual e deve ser buscada no estudo do delinquente. É dentro da natureza humana que se pode descobrir a causa dos delitos.

Lombroso parte da noção de completa desigualdade fundamental dos homens honestos e criminosos. Preocupado em encontrar no organismo humano traços diferenciais que separassem e singularizassem o criminoso, Lombroso vai extrair da autópsia de delinquentes uma “grande série de anomalias atávicas, sobretudo uma enorme fosseta occipital média e uma hipertrofia do lóbulo cerebeloso mediano (vermis) análoga a que se encontra nos seres inferiores[24].

Assim, surgiu a hipótese, sujeita a investigações posteriores, de que haveria certas afinidades entre o criminoso, os animais e principalmente o homem primitivo, que ele considerava diferente, psicológica e fisicamente, do homem dos nossos tempos.

Lombroso empreende um longo estudo antropológico no seu livro “L’uomo delincuente” acerca da origem da criminalidade. Professando um particular evolucionismo, Lombroso procura demonstrar que o crime, como realidade ontológica, pode ser considerado uma característica que é comum a todos os degraus da escala da evolução, das plantas aos animais e aos homens; dos povos primitivos aos povos civilizados; da criança ao homem desenvolvido. O “crime” teria como característica ser extremamente frequente, brutal, violento e passional nos níveis inferiores dessas escalas.

Assim Lombroso vai teorizar acerca dos equivalentes do crime nas plantas e nos animais (“L’Homme criminel”, chapitre premier), a morte de insetos pelas plantas carnívoras (“homicídio”), a morte para ter o comando da tribo entre os cavalos, cervos e touros (“homicídio por ambição”), a fêmea do crocodilo que mata seus filhotes que ainda não sabem nadar (“infanticídio”), as raposas que se devoram entre si e algumas vezes mesmo devoram suas progenitoras (“canibalismo e parricídio”).

O “crime” nesses degraus inferiores da escala evolucionista não é a exceção mas a regra quase geral. Entre os chamados “selvagens” ou “povos primitivos” Lombroso também encontra a incidência generalizada do crime. O incremento excessivo da população, comparativamente aos meios naturais de subsistência explicaria os abortos e os infanticídios:

“Isso nos explica a maior parte dos homicídios que, entre os povos primitivos, não somente se cometem com impunidade, mas ainda são ordenados frequentemente pela moral e a religião e fornecem um título de glória.

O aborto premeditado, desconhecido dos animais, é muito comum entre os selvagens; é preciso ir até o Zend-Avesta para encontrar as primeiras proibições a este respeito” (tradução nossa)[25]. 

“A mesma causa produz, entre os selvagens, o infanticídio frequente. Sacrifica-se aquele que vem após o primogênito, ou o segundo e, de preferência, as filhas. É assim na Austrália e na Melanésia.

Na Índia, do Ceilão ao Himalaia, o infanticídio é consagrado pela religião; e isto, não somente entre os aborígenes, que são mais bárbaros, mas ainda na classe nobre, entre os Radjpoutas” (tradução nossa)[26]. 

São também comuns e frequentes segundo Lombroso o homicídio dos velhos, das mulheres, dos doentes, os homicídios por cólera, por capricho, de parentes por ocasião do funeral de morto importante, por sacrifícios religiosos, os cometidos por brutalidade ou por motivo fútil, os causados por desejo de glória etc.

São ainda comuns entre os selvagens o canibalismo, o roubo, o rapto, o adultério e os crimes contra a autoridade (chefes, deuses ou a própria tribo).

Dentro da ideia evolucionista lombrosiana (de passagem [física ou psíquica] do organismo mais simples para o mais complexo) os germes da loucura moral e do crime se encontram de maneira normal na infância:

“Os germes da loucura moral e do crime se encontram, não por exceção, mas de uma maneira normal, nos primeiros anos do homem, como no embrião se encontram constantemente certas formas que em um adulto são monstruosidades; se bem que a criança representaria um homem privado do senso moral, - isto que os alienistas denominam um louco moral e nós um criminoso nato” (tradução nossa)[27].

Lombroso advogava a existência na infância de uma predisposição natural para o crime. As analogias entre o imaturo e o criminoso se dariam na fase da vida instintiva, através da qual se observa a precocidade da cólera, que faz com que a criança bata nos circunstantes e tudo quebre, em atitudes comparáveis ao comportamento violento criminoso.

O ciúme, a vingança, a mentira, o desejo de destruição, a maldade para com os animais e os seres fracos, a predisposição para a obscenidade, a preguiça completa, exceto para as atividades que produzem prazer, são, entre outros, índices que Lombroso apontou, das tendências criminais na infância. A educação conduziria, porém, a criança para o período de “puberdade ética”, submetendo-a a profunda metamorfose.

Identificando pois a origem da criminalidade, como ontologia, nessas “fases primitivas” da humanidade, Lombroso entende que o criminoso é uma subespécie humana (entre os seres vivos superiores, porém sem alcançar o nível superior do homo sapiens) que, por uma regressão atávica a essas fases primitivas, nasceria criminoso, como outros nascem loucos ou doentios. A herança atávica explicaria, a seu ver, a causa dos delitos.

O criminoso seria então um delinquente nato (nascido para o crime), um ser degenerado, atávico, marcado pela transmissão hereditária do mal.

O atavismo (produto da regressão, não da evolução das espécies) do criminoso seria demonstrado por uma série de “estigmas”. De acordo com o seu ponto de vista, o delinquente padece de uma série de estigmas degenerativos, comportamentais, psicológicos e sociais.

O criminoso nato seria caracterizado por uma cabeça sui generis, com pronunciada assimetria craniana, fronte baixa e fugidia, orelhas em forma de asa, zigomas, lóbulos occipitais e arcadas superciliares salientes, maxilares proeminentes (prognatismo), face longa e larga, apesar do crânio pequeno, cabelos abundantes, mas barba escassa, rosto pálido.

O homem criminoso estaria assinalado por uma particular insensibilidade, não só física como psíquica, com profundo embotamento da receptividade dolorífica (analgesia) e do senso moral. Como anomalias fisiológicas, ainda, o mancinismo (uso preferente da mão esquerda) ou a ambidextria (uso indiferente das duas mãos), além da invulnerabilidade, ou seja uma extraordinária resistência aos golpes e ferimentos graves ou mortais, de que os delinquentes típicos pronta e facilmente se restabeleceriam. Seriam ainda comuns, entre eles, certos distúrbios dos sentidos e o mau funcionamento dos reflexos vasomotores, acarretando a ausência de enrubescimento da face.

Consequência do enfraquecimento da sensibilidade dolorífica no criminoso por herança seria a sua inclinação à tatuagem, acerca da qual Lombroso realizou detidos estudos.

Os estigmas psicológicos seriam a atrofia do senso moral, a imprevidência e a vaidade dos grandes criminosos. Assim, os desvios da contextura psíquica e sentimental explicariam no criminoso a ausência do temor da pena, do remorso e mesmo da emoção do homicida perante os despojos da vítima. Absorvidos pelas paixões inferiores, nenhuma relutância eles sentem perante a ideia dominante do crime[28].

As conclusões de Lombroso (L’homme criminel) foram construções eminentemente empíricas baseadas em resultados de 386 autópsias de delinqüentes e nos estudos feitos em 3939 criminosos vivos por Ferri, Bischoff, Bonn, Corre, Biliakow, Troyski, Lacassagne e pelo próprio Lombroso[29].

Lombroso porém não esgota na teoria da criminalidade nata a sua explicação para a etiologia do delito. A criminalidade nata não dá conta de todas as categorias antropológicas de delinquentes, nem mesmo, numa mesma categoria, de todos os casos habituais. Ele antevê na loucura moral e na epilepsia mais dois fatores capazes de fornecer uma elucidação biológica para o fenômeno delito.

O louco moral é aquele indivíduo que tem, aparentemente, íntegra a sua inteligência, mas sofre de profunda falta de senso moral. É um homem perigoso pelo seu terrível egoísmo. É capaz de praticar um morticínio pelo mais ínfimo dos motivos.

Lombroso o diferenciava do alienado definindo-o como um “cretino do senso moral” ou seja, uma pessoa desprovida absolutamente de senso moral. A explicação da criminalidade do louco moral também é dada pela biologia, é congênita, mas pode, de acordo com o meio na qual o indivíduo se desenvolve, aflorar ou não:

“Esta [a loucura moral] se compreende tanto melhor quanto, na primeira parte deste livro, consagrada às tendências criminais das crianças, nós vimos aqui apresentado sob o ponto de vista fisiológico, um estado que assemelha-se fortemente à loucura moral; de sorte que, se o meio onde eles se encontram não lhes oferece as circunstâncias favoráveis para os transformar moralmente e fazer deles homens honestos, eles permanecem como os tritons alpestres que conservam sua natureza de larvas nas águas frias” (tradução nossa)[30].

A epilepsia foi outra explicação aventada por Lombroso como causa da criminalidade. A epilepsia ataca os centros nervosos em que se elaboram os sentimentos e as emoções. Objetaram-lhe porém que se a epilepsia, bem conhecida e perceptível, explica em certos casos o delito, em outros não se observa haver sinal objetivo da doença em face do delito praticado.

A essa objeção Lombroso opôs a sua teoria da epilepsia larvada, sem manifestações facilmente visíveis, que poderia explicar a etiologia do delito. Ao passo que a epilepsia declarada se exterioriza em meio a contrações musculares violentíssimas, a epilepsia larvada se denuncia por fugazes estados de inconsciência que nem todos percebem.

Lombroso não abandonou uma das explicações da etiologia do delito pelas outras. Procurou coordená-las. Assim, por exemplo, acentuou que a teoria do atavismo se completava e se corrigia com os estudos referentes ao estado epilético:

“A teoria do atavismo do crime se completa e se corrige pela adjunção da nutrição defeituosa do cérebro, de uma má condutibilidade nervosa, de uma falta de equilíbrio dos hemisférios, pela condição epilética. É, numa palavra, a doença que vem se juntar à monstruosidade” (tradução nossa)[31].

A etiologia do crime para Lombroso inter-relaciona portanto o atavismo, a loucura moral e a epilepsia: o criminoso nato é um ser inferior, atávico, que não evolucionou, igual a uma criança ou a um louco moral, que ainda necessita de uma abertura ao mundo dos valores; é um indivíduo que, ademais, sofre alguma forma de epilepsia, com suas correspondentes lesões cerebrais[32].

Lombroso, baseado em suas observações, encarava o seu tipo primordial de criminoso, o criminoso nato, como compondo 40 % do total da população criminosa, restando as demais àquelas outras formas de crime que tinham por fontes a loucura, a ocasião, o alcoolismo e a paixão. Para Lombroso essas formas eram ligadas mais a suas causas ocasionais e portanto, não forneceriam uma base possível para uma etiologia desses delitos.

Outra faceta importante da Escola penal positiva é aquela da etiologia do crime em Enrico Ferri. Enrico Ferri (1856-1929) foi um advogado célebre, professor universitário, político socialista militante e reputado cientista. É considerado o “pai da moderna sociologia criminal”, tendo fundado a revista “La Scuola positiva” para a difusão do positivismo criminológico italiano.

Ao contrário de Lombroso, Ferri não atribuía a etiologia do crime ao produto exclusivo de nenhuma patologia individual. Ele entendia o crime como resultante da contribuição de diversos fatores individuais, físicos e sociais.

Ele aceitava a tese lombrosiana de que os criminosos, e particularmente, os dois tipos mais marcantes de delinquentes, os ladrões e os homicidas, tinham, em comparação com o homem normal da mesma província, uma inferioridade geral das formas do crânio ao mesmo tempo que uma frequência anormal de anomalias atávicas e patológicas, frequentemente acumuladas de uma maneira extraordinária num mesmo indivíduo. Considerava, como Lombroso, que possuíam também estes profundas anomalias congênitas de conformação do esqueleto e das vísceras, além de outras condições patológicas o que demonstraria, no seu entender, a transmissão hereditária de geração em geração das tendências criminais, bem como de todas as outras deformações psíquicas e morais[33].

Entretanto, para Ferri, este era apenas o ponto de partida para a análise da etiologia do crime, que é eminentemente social: 

“Para o antropólogo criminal, que faz a história natural do delinquente, cada dado tem um valor anatômico, fisiológico ou psicológico próprio, independentemente das consequências sociológicas que dele poderíamos tirar. É porque o lado técnico das descobertas contínuas de detalhes sobre a constituição orgânica e psíquica do delinquente é o campo reservado à nova ciência autônoma da antropologia criminal. Para o sociólogo criminalista, ao contrário, esses dados, que são para o antropólogo o ponto de chegada, não são mais que o ponto de partida para chegar às conclusões jurídico-sociais, que escapam à competência particular do antropólogo. De modo que poderíamos dizer que o antropólogo criminal é para a sociologia criminal, o que as ciências biológicas, sejam descritivas, sejam experimentais, são para a clínica” (tradução nossa)[34].

Os dados da antropologia criminal, ponto de partida da análise sociológica de Ferri, deveriam ser reunidos numa nova disciplina que lhes daria a unidade compreensiva: a estatística criminal.

A estatística criminal revelaria, a partir dos elementos individuais que compõem o organismo coletivo, as razões fundamentais do delito entendido como um fenômeno social[35].

Através da estatística criminal, Ferri conclui que o delito - como qualquer outro acontecimento natural ou social - é o resultado de três categorias básicas de fatores: os fatores antropológicos ou individuais do delito ( constituição orgânica do indivíduo, sua constituição psíquica, características pessoais como raça, idade, sexo, estado civil etc..), fatores físicos ou telúricos ( clima, estações, temperatura, etc.) e fatores sociais (densidade da população, opinião pública, família, moral, religião, educação, alcoolismo, etc.).

Ferri atribui a essa ordem de fatores uma unidade indissolúvel em sua atuação, determinação e causação do crime em sociedade, deixando claro que o isolamento de qualquer fator etiológico de delinquência só pode ser feito por necessidades de estudo da criminalidade:

“Em virtude do vínculo inesperado que constatei entre os diversos agentes da natureza, que até o presente considerava independentes uns dos outros, não se pode obter, seja de um delito isolado, seja de todo o conjunto da criminalidade, uma razão natural suficiente, se não temos em conta cada fator à parte e todos juntos; porque se nós podemos isolar esses fatores pelas necessidades de estudo e do raciocínio, no entanto eles agem sempre simultaneamente na natureza e formam um feixe indissolúvel, o que os torna todos mais ou menos necessários à gênese do delito” (tradução nossa)[36].

Não obstante essas considerações Ferri entendia que, embora sempre todos os fatores acima apontados concorressem para a determinação do delito, a “força produtiva” de cada um desses fatores era diferente, não em um senso absoluto, mas em razão da predominância de um ou de outro de acordo com as diversas categorias de delinquentes. Ele considerava, dentro de sua teoria da etiologia do crime, que, os fatores físicos exerciam uma ação aproximadamente igual sobre todos os delinquentes, os fatores antropológicos predominavam na atividade criminal dos criminosos natos, loucos ou passionais e os fatores sociais prevaleciam naquelas atividades dos criminosos de ocasião ou por hábito[37].

Para Ferri eram também os fatores sociais os que maior relevância etiológica tinham na determinação do delito: 

“É aos fatores sociais que devemos atribuir a marcha geral da criminalidade” (tradução nossa)[38].

Para Ferri, as variações mesmo que se verificam em certos fatores antropológicos como as que dizem respeito à idade ou ao sexo no comportamento delituoso, ou as explosões de tendências antissociais, sejam congênitas, sejam devidas à alienação mental, dependem, elas mesmas, dos fatores sociais, por exemplo, das instituições relativas à proteção da infância abandonada, ao trabalho industrial dos adolescentes e às medidas preventivas ou repressivas de segurança tomadas para isolar os indivíduos perigosos e assim por diante; essas variações são, então, efeito indireto dos fatores sociais. Secundariamente, esses fatores sociais predominando na delinquência de ocasião e na adquirida por hábito - as que fornecem, dentro do total da criminalidade - o contingente mais numeroso - se torna evidente, para Ferri, que os fatores sociais contribuem para a maior parte do movimento ascendente ou descendente que se manifesta na criminalidade em seu devir histórico[39].

Ferri nesse ponto crê ter descoberto um  vínculo importante entre a ciência criminal e uma política de defesa social. Se a criminalidade mais grave, particularmente aquela contra as pessoas, quer dizer, a que representa sobretudo a criminalidade congênita ou por alienação mental, tem um ritmo de uma regularidade extraordinária, com aumentos e diminuições ligeiras, o movimento geral da delinquência tira, na verdade, sua fisionomia dos delitos menos graves, mas mais numerosos, contra as propriedades, as pessoas, a ordem pública, que são, verdadeiramente, como micróbios do mundo criminal, e dependem mais diretamente do meio social.

Se, então, é aos fatores sociais que se deve a maior parte do incremento ou da diminuição geral da criminalidade, é também verdade que são esses fatores os mais facilmente modificáveis pela ação do legislador; a sociologia criminal deste modo pode, como ciência positiva, efetuar uma verdadeira revolução em termos de política criminal, fornecendo os dados e elementos para uma autêntica e plausível redução da criminalidade.

Levando ao paroxismo suas conclusões e entendendo o comportamento criminoso como um objeto real naturalmente distinto do comportamento não-criminoso, explicável por relações causais predominantemente externas, Ferri entende que a criminalidade é um fenômeno social como outros, que se rege por sua própria dinâmica, de modo que o cientista poderia antecipar o número exato de delitos, e a classe deles, em uma determinada sociedade e em um momento concreto, se contasse com todos os fatores individuais, físicos e sociais antes citados e fosse capaz de cientificar a incidência de cada um deles. A essa teoria ele chamou de lei da saturação criminal:

“Esses resumos [da criminalidade europeia] mostram então como a criminalidade, seja natural, seja legal, continua a aumentar em seu conjunto, com as variações anuais mais ou menos grandes que se acumulam a seguir em um longo período, por uma ‘serie de verdadeiras ondas criminais. Deles vemos que o nível da criminalidade é cada ano, determinado, pelas diferentes condições do meio físico e social combinadas com as tendências congênitas e com os impulsos ocasionais dos indivíduos, segundo uma lei que, por analogia com aquela que se observa em química, chamei lei da saturação criminal. Como em um volume de água dado, a uma temperatura dada, se dissolve uma quantidade determinada de uma substância química, nem um átomo a mais e nem um de menos, da mesma maneira em um meio social dado, com as condições individuais e psíquicas dadas, se comete um número determinado de delitos, nem um a mais, nem um a menos” (tradução nossa)[40].

Para Ferri, portanto, a etiologia do crime é eminentemente social, sendo a criminalidade o seu produto mais visível. Esta criminalidade é assim um efeito e um sintoma de patologia individual em suas formas atávicas, e de patologia social em suas formas evoluídas.

Para se preservar a função pela qual a sociedade se protege do delito deve sofrer uma mudança completa de orientação: esta deve cessar de ser uma reação tardia e violenta contra os efeitos, para ser a de diagnosticar e esclarecer as causas naturais do delito; é preciso colocar em primeiro plano a defesa preventiva da sociedade contra a criminalidade natural e legal.

Também relevante é a etiologia do crime em Raffaele Garofalo. Raffaele Garofalo (1852-1934) foi sobretudo um divulgador da “Scuola positiva” da criminologia. Moderado, dedicou-se à difusão dos preceitos do positivismo criminológico e à possibilidade de sua recepção pelas leis, sem dogmatismos nem excessos doutrinários.

Embora fosse fiel às premissas metodológicas do positivismo, sua moderação e equilíbrio o distanciaram tanto da antropologia lombrosiana como do sociologismo de Ferri.

Para Garofalo a etiologia do crime é individual e a fundamentação do comportamento e do tipo criminoso deve ser buscada numa anomalia psíquica ou moral do delinquente. Trata-se de um déficit na esfera moral da personalidade do indivíduo, de base orgânica, endógeno, de uma mutação psíquica (porém não de uma enfermidade mental) transmissível por via hereditária e com conotações atávicas e degenerativas.

O determinismo biológico de Lombroso influenciou sua teoria da criminalidade, mas é aqui um sintoma da anomalia moral do criminoso:

“O delinquente não se denuncia apenas pelo ato criminoso, mas pela coerência desse ato com certos caracteres especiais; o crime não é nele, portanto, um fato isolado, mas o sintoma de uma anomalia moral”[41].

Garofalo reconhece o significado e a importância de determinados dados anatômicos na determinação da personalidade criminosa, particularmente os relacionados à antropometria craniana:

“A maior frequência de certos caracteres físicos nos delinquentes foi posta fora de dúvida pelos antropólogos e sempre verificada por mim, que tenho tido ocasião de observar um grande número de criminosos”[42]. 

“Do conjunto de observações antropométricas sobre o crânio parece dever concluir-se que, em regra, existe nos delinquentes um desenvolvimento maior da região occipital comparada com a frontal, o que, no dizer de Corre, implicaria ‘o predomínio da atividade relacionada com a sensibilidade impulsiva sobre a que hoje se reconhece ser intelectual e ponderadora”[43]. 

“Podemos considerar absolutamente seguro, é que na forma e nas proporções da cabeça, o delinquente é mais vezes anômalo e monstruoso que o não delinquente e que os maiores criminosos (assassinos) o são mais vezes ainda que os outros. O segundo fato é que cada uma das três grandes categorias de malfeitores (assassinos, violentos e ladrões) tem uma fisionomia especial, com determinados caracteres e facilmente reconhecível”[44].

Garofalo atribui escassa importância na etiologia do crime aos fatores sociais de Ferri, ressaltando na individualidade a causa determinante do crime:

“Podemos considerar absolutamente seguro, é que na forma e nas proporções da cabeça, o delinquente é mais vezes anômalo e monstruoso que o não delinquente e que os maiores criminosos (assassinos) o são mais vezes ainda que os outros. O segundo fato é que cada uma das três grandes categorias de malfeitores (assassinos, violentos e ladrões) tem uma fisionomia especial, com determinados caracteres e facilmente reconhecível”[45].

Garofalo, ao contrário de seus antecessores que estavam preocupados em descrever as características do criminoso, procurou determinar e definir o próprio conceito de “crime” como objeto específico da nova disciplina (criminologia). Ele pretendeu criar uma categoria exclusiva da criminologia, que permitisse, delimitar autonomamente o seu objeto, mais além da exclusiva referência ao sujeito ou às definições legais.

Esse conceito era, para ele, o delito natural. O delito natural seria aquela categoria de condutas nocivas atemporais que, em qualquer sociedade e momento, fossem consideradas reprováveis, com independência inclusive das próprias valorações legais mutantes.

Examinando os atos criminosos, chegou à conclusão de que nenhum destes foi considerado punível em todos os tempos e lugares, mesmo os reprováveis como o homicídio por mera brutalidade ou o parricídio. Propõe então substituir a análise dos atos pela análise dos sentimentos: o delito é, para Garofalo a lesão daqueles sentimentos mais profundamente radicados no espírito humano e que no seu conjunto formam o que se chama de senso moral[46].

Para ele existe, universalmente, um caráter constante nas emoções provocadas por atos criminosos, que são apreciados identicamente por quase todas as sociedades:

“Podemos considerar absolutamente seguro, é que na forma e nas proporções da cabeça, o delinquente é mais vezes anômalo e monstruoso que o não delinquente e que os maiores criminosos (assassinos) o são mais vezes ainda que os outros. O segundo fato é que cada uma das três grandes categorias de malfeitores (assassinos, violentos e ladrões) tem uma fisionomia especial, com determinados caracteres e facilmente reconhecível”[47].

Esses instintos morais são os instintos altruístas, aqueles que tendem diretamente ao bem dos outros. Dentre os instintos altruístas, Garofalo considera como universalmente válidos o da benevolência e o da justiça.

Dentro dessa noção de benevolência temos a benevolência positiva das pessoas que procuram aliviar a desventura alheia e a benevolência negativa das que simplesmente, por um senso moral, se abstêm de atos capazes de produzir no próximo uma dor física ou moral. É essa benevolência negativa o sentimento de piedade ou humanidade, que Garófalo atribui validade quase universal e atemporal:

“De tudo o que expusemos, parece-nos poder inferir-se que existe para todos os povos não selvagens um sentimento altruísta, universal quando se considera numa primeira fase de desenvolvimento: a piedade em sua forma negativa. Esse sentimento constitui uma aquisição definitiva para a humanidade que atingiu aquele grau de evolução a que apenas ficaram estranhas as pouco tribos dispersas que não representam para a espécie senão anomalias e fenômenos excepcionais”[48].

O sentimento altruísta de justiça também se dividiria em duas categorias, uma positiva e uma negativa. A primeira é a delicadeza, o estado em que o cidadão, incapaz de tolerar violações à sua própria liberdade, aceita, contudo, voluntariamente as restrições dessa mesma liberdade tornadas necessárias pelos direitos de outrem e as defende espontaneamente.

A segunda, negativa, é o instinto que impede os indivíduos de se aproximarem violenta ou fraudulentamente do que não lhes pertence. É o instinto da probidade, ao qual Garofalo também atribui disseminação geral.

O delito natural é assim à ofensa feita à parte do senso moral formado pelos sentimentos altruístas de probidade e piedade, entendidos estes não como a parte superior e mais delicada dos sentimentos de benevolência e justiça mas aqueles instintos mais comuns, que são considerados o patrimônio indispensável de todos os indivíduos em sociedade.

Para Garofalo a etiologia do crime deve ser buscada na inexistência desse senso moral nos criminosos, inexistência fruto de um defeito organicamente condicionado e transmissível por via hereditária e com conotações atávicas e degenerativas. O criminoso é, para ele, privado em maior ou menor grau destas duas ordens de sentimentos que formam o senso moral do homem civilizado, isto é, o delinquente não encontra dentro de si elementos inibitórios contra as tendências a lesar a vida ou a propriedade de outrem.

Mesmo quando ao delito se reconhecem causas extrínsecas, ele não poderia se explicar sem a intervenção do fator individual, da organização psíquica do criminoso, destinada a transformar em motivos essas causas de ação.

Sendo o senso moral, tal como ele o entendia, uma característica comum a todos os homens, sua inexistência nos criminosos, em maior ou menor grau, só poderia ser atribuída a anomalias hereditárias, atávicas ou degenerativas.

Concluindo, a teoria criminológica da Escola penal positiva define o comportamento criminoso como um objeto real naturalmente distinto do comportamento não criminoso. Esse comportamento pode ser explicado por relações causais: seja o determinismo biológico, o atavismo ou a epilepsia larvada em Lombroso, sejam os fatores antropológicos ou sociais em Ferri, seja a ausência do senso moral resultante de deformações adquiridas em Garofalo.

Foram inegáveis os avanços proporcionados ao estudo da criminalidade pela teoria positivista, particularmente significativos na difusão do método indutivo das ciências naturais e no aprofundamento do rigor metodológico dos estudos da sociedade.

Por outro lado, suas conclusões incidiram num viés eminentemente reducionista. As explicações causais do comportamento criminoso selecionaram fatores de determinação do comportamento (causas eficientes) e excluíram o parâmetro valorativo constituído pelas definições legais de crime (causas formais) que confere ao comportamento o caráter de criminoso. Sem se discutir o que é crime, qual a sua natureza, seu conteúdo, quais as significações ideológicas dos parâmetros jurídicos e políticos de valoração do comportamento social, não se pode, efetivamente, produzir uma teoria válida das causas da criminalidade. Como bem pondera Juarez Cirino dos Santos:

“A exclusão dos fatores formais (definições legais) do comportamento criminoso não assegura neutralidade à ciência, mas implica um compromisso com a ordem social existente: a ciência positiva assume, como premissa de trabalho, a estrutura jurídica e política da formação social histórica, e se orienta para o controle social nos limites desta ordem assumida.

A construção mutilada do objeto científico (o crime como produto de causas determinantes) ignora as relações do comportamento criminoso com (a) a reação social dos aparelhos de controle e repressão social: a influência da rotulação como criminoso (e da estigmatização social) sobre a criminalidade futura, (b) a fenomenologia da experiência pessoal do sujeito do comportamento: a definição da situação pelo sujeito, seus motivos, orientação e significado do acontecimento, e (c) os esquemas de poder político, nos conflitos de classe da formação social, e o significado da definição e repressão seletiva do comportamento criminoso.

A ciência positiva do crime é o mito de uma ciência: a construção mutilada do seu objeto reifica o comportamento, a pretensa neutralidade do método compromete a teoria, e a fixação no dado aparente produz uma aparência de ciência: nas sociedades de classe, ciência criminológica é teoria do controle nos quadros da ordem, definida pelos esquemas de poder material e político que hegemonizam a formação social histórica”[49].

Preocupada que estava em contrapor-se às noções de responsabilidade e de livre-arbítrio da Escola Clássica e, ao mesmo tempo, comprometida com a manutenção do status quo burguês, a criminologia positivista não logrou enfrentar toda a imensa complexidade de fatores causais que estão enredados na determinação das atividades criminosas.

Entretanto, como é sabido, o avanço científico se elabora não só sobre as conclusões efetivamente válidas num determinado tempo, mas também, sobre a explicitação e o aprofundamento de outras conclusões que, embora errôneas, desvelam, na sua teorização muitos outros aspectos olvidados da ciência e contribuem muito para o aprimoramento desta.


Notas e Referências:

[1] LYRA,  Roberto. Novas Escolas Penaes. Rio de Janeiro: Est. Graph. Canton & Reile, 1936 - p. 6/7.

[2] LYRA, Roberto. op. cit.,  p.10.

[3] LOMBROSO, Cesare. L´homme criminel: étude anthropologique et médico-legale. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière & Cia, 1887 - p. XI.

[4] FERRI, Enrico. La sociologie criminelle. Paris: Félix Alcan  Éditeur, 1905 - p. I.

[5] FERRI, Enrico. op. cit., p. 2.

[6] FERRI, Enrico. op. cit., p. 09/10.

[7] FERRI, Enrico. op. cit., p. 20/21.

[8] LYRA, Roberto. op. cit., p. 41/42.

[9] BECCARIA, Cesare. De los delitos y de las penas. 3. ed.  Madri: Alianza, 1982, p. 29/30.

[10] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três Escolas penaes: clássica, anthropológica e crítica (estudo comparativo). 3. ed. São Paulo: Saraiva e Cia Editores, 1928, p. 103.

[11] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. op. cit., p. 43/46.

[12] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. op. cit., p. 162/163.

[13] GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. v. I. Tomo I. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1977, p. 66/67.

[14] LYRA, Roberto. op. cit., p. 45.

[15] FERRI, Enrico. op. cit., p. 18.

[16] ZORRILLA, Carlos González. Para qué sirve la criminología? Nuevas aportaciones al debate sobre sus funciones. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim, São Paulo, n.°6, abr-jun/1994, pp.7/25.

[17] FERRI, Enrico. op. cit., p. 197.

[18] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. op. cit., p. 46 e 57.

[19] GARCIA, Basileu. op. cit., p. 83/84.

[20] FERRI, Enrico. op. cit., p. 49.

[21] GARCIA, Basileu. op. cit., p. 105.

[22] ZORRILLA, Carlos González. op. cit., p. 9.

[23] LOMBROSO, Cesare. op. cit., p. XI.

[24] LOMBROSO, Cesare.  Discours d’ouverture du VI Congrès d’anthropologie criminelle.  In: Annalles Internationales de Criminologie, 6º Anné, 2 Sem., Paris, 1967, pp. 557 e ss.

[25] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel: étude anthropologique et médico-légale.  Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière & Cia, 1887, p. 40.

[26] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel.. op. cit., p. 41.

[27] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel.. op. cit., p. 99.

[28] GARCIA, Basileu. op. cit., p. 92.

[29] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel.. op. cit., p. 204.

[30] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel.. op. cit., p. 580.

[31] LOMBROSO, Cesare. L’homme criminel.. op. cit., p. 657.

[32] GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos.   São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 119.

[33] FERRI, Enrico. op. cit., pp. 54/55.

[34] FERRI, Enrico. op. cit., pp. 52.

[35] FERRI, Enrico. op. cit., p. 185.

[36] FERRI, Enrico. op. cit., p. 211.

[37] FERRI, Enrico. op. cit., p. 212.

[38] FERRI, Enrico. op. cit., p. 213.

[39] FERRI, Enrico. op. cit., p. 213.

[40] FERRI, Enrico. op. cit., p. 230.

[41] GAROFALO, Raffaele.  Criminologia: estudos sobre o delicto e a repressão penal. 4. Ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1925, p. 96.

[42] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 103.

[43] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 98.

[44] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 106.

[45] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 129.

[46] GARÓFALO, Raffaele op. cit.,   p. 30.

[47] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 41.

[48] GAROFALO, Raffaele.  op. cit., p. 51/52.

[49] SANTOS, Juarez Cirino dos.  A crítica ao positivismo em criminologia. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1978, pp. 134/135.

ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três Escolas penaes: clássica, anthropológica e crítica (estudo comparativo). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1928.

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