INTRODUÇÃO
O que se entende por ética? É possível o sujeito ser ético na sociedade transmoderna? A crise, sem dúvida, é a grande oportunidade para discutirmos a ética. Primeiramente, vamos focalizar a ética do advogado privado e depois a ética do advogado público. O advogado privado defende interesses particulares de clientes que lhes contratam para a sua defesa. Os advogados privados são escolhidos por seus clientes. O advogado público recebe processos para defender o Estado, seja para apresentar uma contestação, recorrer ou de qualquer forma falar nos autos.
O advogado público, de alguma forma, não pode escolher as causas nas quais atua. O advogado público responde perante a Ordem, pelos seus atos, bem como, na condição de funcionário público, perante a administração pública.
O modelo jurídico, calcado nas formas e em instrumentos rigorosos para que se dê a promoção da jurisdição, deixou de lado a ética, esqueceu a estética e a promoção da Justiça.
Há processos que tramitam durante mais de vinte anos no Judiciário, graças à atuação dos procuradores que recorrem aos tribunais superiores por imposição de um “dever” decorrente da advocacia do Estado. A ética não consiste numa pauta de valores consensuais, mas, sobretudo, na responsabilidade assumida pelas pessoas para que a justiça seja realizada diuturnamente.
Ethos que, para Taylor, pode se confundir com a expressão latina mores, apresenta uma dimensão social, política, que se confunde com a democracia enquanto participação dos indivíduos para a promoção do bem coletivo[1]. Com a mudança paradigmática, em que se busca um direito mais ético do dogmático, discute-se o novo papel reservado aos agentes públicos aos procuradores que antes eram considerados advogados do rei.
A ÉTICA
Paul Taylor recorre aos gregos para compreender a ética. Segundo ele, a ética se divide entre éthos e ethos, sendo a primeira a ética individual e a segunda a ética coletiva. Não há éthos sem ethos nem ethos sem éthos.[2] Para Peter Singer, não se consegue definir a ética. Contudo, assegura que a ética não consiste num conjunto de proibições relativas ao sexo.[3] É difícil e, para alguns autores, é impossível definir ética. Weil faz distinção entre uma ética moralista, conservadora, e uma ética espontânea, calcada na responsabilidade do sujeito. Savater, por sua vez, afirma que a ética é feita de escolhas cotidianas. E que os políticos não são mais honestos que os empresários, exemplo. Acontece que os políticos estão nas vitrines da mídia.[4]
Nos parlamentos há a média da ética da sociedade.
Os políticos não são piores nem melhores, do ponto de vista ético, do que o povo. Afinal, eles foram escolhidos pelos eleitores que responsável ou irresponsavelmente os guindaram aos cargos públicos.
A nova ética requer um amplo diálogo entre os contendores para a solução dos conflitos.
Trata-se, em essência, de uma ética jurídico ambiental preocupada com preservação de todos os seres vivos.
Enfim, propõe-se inaugurar um humanismo radical e uma visão de ecologia profunda.
A nova ética não está baseada em dogmas, mas em compromissos perenes.
A ETICA DO ADVOGADO
Há uma ética jurídica, vale dizer, uma lei federal, o Estatuto da Advocacia e da OAB, que tem um capítulo destinado à ética profissional. Há muito defendemos que se faz necessário uma ética holística, porquanto é incindível a vida profissional e a vida privada.[5]
Não pode o sujeito ser considerado ético profissionalmente se não for ético na vida cotidiana. Os preceitos éticos estão claramente estabelecidos na legislação. O advogado, quando se defende perante os Tribunais de Ética e Disciplina da OAB, invoca os mesmos princípios dos réus. Nullum crimen sine lege, nulla poena sine praevia lege. Não há infração ético-disciplinar nem sanção sem prévia determinação legal.
Pelo fato do advogado não ter respondido a um processo ético-disciplinar ou tenha sido absolvido de algum instaurado contra ele não significa que seja ético. “Hecha la ley hecha la trampa”, vale dizer, uma vez criada a lei, apresenta-se uma brecha para ela mesma ser burlada.
A ética, na verdade, transcende ao mundo do direito. Há um direito que dita uma ética baseada no imperativo categórico kantiano que dita o que é o direito e em que consiste o comportamento, a partir de uma pauta de valores.
O advogado quando se defende perante o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB o faz como um réu qualquer. E tem as garantias criminais de que não há infração disciplinar sem lei anterior que a estabeleça.
A ética jurídica é restrita. É, em suma, a ética que está escrita. O advogado tem um compromisso com a ética, porquanto está em defesa da cidadania.
Os advogados do terceiro milênio devem estar preocupados com a questão ambiental e o futuro do planeta.
Impõe-se uma ética voltada para a ecologia profunda e para o engajamento nas lutas ambientais.
A ética mecanicista do advogado só vê atuação do profissional dentro dos limites legislativos.
A nova ética requer um ser humano comprometido com a vida em todas as suas manifestações.
A ÉTICA DO ADVOGADO PÚBLICO
Indubitavelmente, a ética do advogado público difere da ética do advogado privado. O advogado público defende o Estado e, em última análise, a sociedade.
O advogado público deverá ser um defensor intransigente do interesse público, vale dizer, do interesse coletivo.
Os advogados públicos, regra geral, deverão recorrer de todas as decisões, por uma imposição legal. O que se deve é defender o interesse coletivo e não o interesse dos governantes. Na maioria das vezes, são os agentes públicos os responsáveis pelos atos ilegais. Os advogados públicos são convocados para defender atos ilegais de agentes que não atuam mais na administração pública ou de pessoas que estão no exercício de cargo de confiança. Estão obrigados a atuar para a defesa das ilegalidades cometidas?
Hoje vivemos um tempo de novas demandas. Como os poderes Legislativo e Executivo são severamente atacados por críticas da imprensa e de amplos setores da sociedade, teria restado ao Judiciário assumir o papel de provedor do povo, marginalizado e faminto, que não tem suas reivindicações atendidas.
Sabemos que há demandas por medicamentos, firmadas por médicos comprometidos com grandes laboratórios ou com tratamentos dispendiosos, experimentais e ineficazes, que levam os Estados a desembolsar muito dinheiro.
O advogado público – o que pode parecer óbvio — é o defensor dos interesses públicos, porquanto zela pelo patrimônio estatal e pelas reservas dos cofres públicos.
Os procuradores ficam, enquanto que os políticos se alternam no poder. Os procuradores se aposentam, enquanto que a instituição fica.
Quando apresentamos teses inconsistentes ou recursos desnecessários estamos comprometendo a Procuradoria do Estado enquanto instituição.
Promover a justiça é tarefa de todos, sejam juízes ou advogados, sejam estes públicos ou privados.
QUAL O VERDADEIRO PAPEL DO PROCURADOR DO ESTADO?
A Procuradoria Geral do Estado é uma instituição relativamente nova. Compete às Procuradorias a representação judicial do Estado em juízo ou fora dele. Não se trata de um órgão de defesa dos governadores nem dos seus secretários.
Ao procurador compete a defesa intransigente do interesse público. O procurador do Estado tem o dever de zelar pela coisa pública, e suas atitudes devem se pautar pela defesa do interesse social. Em suma, todos os operadores jurídicos deverão contribuir para a promoção da justiça
O procurador do Estado não é o procurador do governo, mas o advogado da sociedade, quando defende os interesses públicos e preserva a integridade do patrimônio público.
Não se trata de elaborar um código, uma cartilha ou um conjunto de deveres para os advogados públicos.
Isso não basta.
A justiça restaurativa, por exemplo, quer que o juiz desça do pedestal e faz com que as partes sejam as protagonistas principais do litígio jurídico.
Há um equívoco quando se parte do pressuposto de que o juiz sabe e que consegue resolver questões cada vez mais complexas.
O recurso à arbitragem deveria ser permitido para a solução técnica de problemas que envolvem o Estado, bem como a mediação poderia contribuir para soluções mais rápidas e que geram economia para o poder público.
O advogado do novo milênio tem um papel que transcende às funções a ele tradicionalmente reservadas.[6]
OS RECURSOS PROTELATÓRIOS
O artigo 80 do CPC faz uma séria advertência: “Reputa-se litigante de má fé aquele que (...) interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.” O advogado público deve recorrer sempre por uma imposição legal? Desta forma não está contribuindo para o aumento de processos no Judiciário sem solução?
Não promove, desta forma, uma grave violação ética? Não podemos esquecer que o Estatuto da Advocacia e da OAB diz que o advogado deve envidar todos os esforços no sentido de resolver amigavelmente a contenda antes de promover a ação.
Afirmava o artigo 18 do CPC que o juiz ou tribunal de ofício condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente.
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar incidente manifestamente infundado;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório
Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.
§ 1o Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2o Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.
§ 3o O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos.
Em Santa Catarina, como de resto em todo o país, juízes e tribunais têm considerados os Estados como litigantes de má-fé e com razão.
Vejamos o teor do artigo 538 do CPC/1973, in verbis:
“Os embargos de declaração interrompem o prazo para interposição de outros recursos, por qualquer das partes.
Parágrafo único – Quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou tribunal, declarando que o são, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente de 1% (um por cento) sobre o valor da causa. Na reiteração de embargos protelatórios, a multa é elevada até 10% (dez por cento), ficando condicionada a interposição de qualquer outro recurso ao depósito do valor respectivo.”
O novo CPC foi até mais rigoroso:
Art. 1.026. Os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a interposição de recurso.
§ 1o A eficácia da decisão monocrática ou colegiada poderá ser suspensa pelo respectivo juiz ou relator se demonstrada a probabilidade de provimento do recurso ou, sendo relevante a fundamentação, se houver risco de dano grave ou de difícil reparação.
§ 2o Quando manifestamente protelatórios os embargos de declaração, o juiz ou o tribunal, em decisão fundamentada, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente a dois por cento sobre o valor atualizado da causa.
§ 3o Na reiteração de embargos de declaração manifestamente protelatórios, a multa será elevada a até dez por cento sobre o valor atualizado da causa, e a interposição de qualquer recurso ficará condicionada ao depósito prévio do valor da multa, à exceção da Fazenda Pública e do beneficiário de gratuidade da justiça, que a recolherão ao final.
§ 4o Não serão admitidos novos embargos de declaração se os 2 (dois) anteriores houverem sido considerados protelatórios
O Poder Público não goza de qualquer privilégio quando atua como litigante.
O artigo 77 do CPC adverte, ipsis litteris: “Compete às partes e aos seus procuradores:
“II – não formular pretensões nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento.”
Luis Roberto Nunes Padilha, em tese apresentada no 27 Congresso Nacional de Procuradores de Estado, cita o ex-presidente do STJ, Ministro Paulo Costa Leite, que apresentou severa crítica aos advogados públicos.
Para o ex- presidente, “quem mais litiga no país são as administrações públicas – Uniões, estados e municípios. Está tudo errado. A pretexto de defender o Erário, de manobra de arbítrio, de chicana e, mais grave, de usurpação de competência dos próprios agentes de defesa do Estado atuando nos feitos, eles que deveriam ter o poder decisório na questão.”
O Judiciário deve ser instrumento de promoção da justiça e não pode se constituir em obstáculo para atingi-la.
O pedido de dispensa de recurso, com efeito, pode ser mais trabalhoso do que apresentar um recurso qualquer.
Ademais, o advogado como juiz da causa sabe quando e como deve recorrer. O controle que é exercido retira a autonomia do profissional.
Quando o advogado público recebe uma condenação por litigância de má-fé já fica marcado.
O advogado deve contribuir para a eficiência do Judiciário.
Protelar a justiça é denegá-la.
A justiça que se espera não é a que decorre da sentença.
Há um equívoco imaginar que é do magistrado que vai sair a decisão salvadora.
O advogado tem um papel de destaque na promoção da justiça.
Os litígios são cada vez mais complexos e exigem a participação de todos, especialmente das partes, para resolvê-los.
O QUE PODE E DEVE SER MODIFICADO
Há uma necessidade de mudança. O juiz já recorre, de ofício, da sentença prolatada contra o Estado. Trata-se de uma imposição legal, sob pena de ser decretada a nulidade do processo.
Por que?
Há um interesse público ou a desconfiança de que o Procurador poderá não recorrer, prejudicando o erário público?
A ética pressupõe responsabilidade.
Ademais, a solução jurídica pode ser onerosa para o sujeito, para o Estado, para todos...
O procurador do Estado pode ser responsabilizado sempre pelos seus atos, perante o Poder Público, com a instauração de uma sindicância ou perante o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB.
Deveremos adotar o sistema multiportas. Nem toda questão deve ser submetida ao Poder Judiciário.
Afirma Calamandrei, em Processo e Democracia, que há questões extremamente importantes que sequer são submetidas ao Poder Judiciário. Aduz que quando uma pessoa está gravemente doente é submetida a uma junta médica, sendo que é da competência de especialistas definir a autenticidade de uma obra de arte, por exemplo.[7]
Primeiramente, devemos modificar a postura dos parlamentares e exigir leis cada vez mais claras e simples que contribuam para a solução rápida dos litígios.
Antes disso precisamos de operadores do direito com uma visão interdisciplinar, para que possam resolver questões cada vez mais complexas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. O advogado público tem uma ética peculiar. É diferente da ética do advogado privado.
2.Por ser um agente do Estado deve contribuir para o acesso à justiça e para que se tenha uma prestação jurisdicional mais célere.
3.Ao contrário do que se imagina, o advogado não tem um papel secundário no processo, na verdade, ele deve contribuir decisivamente para a promoção da justiça.
4.As soluções dos problemas complexos devem resultar de um amplo diálogo entre os contendores, como propõe a justiça restaurativa.
Trabalho apresentado em Congresso Nacional de Procuradores do Estado, devidamente atualizado.
Notas e Referências:
[1] TAYLOR, Paul. Ética universal e a noção de valor. Mimeo., 2002.
[2] TAYLOR, Paul. Ética universal e a noção de valor. Mimeo. 2002.
[3] SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[4] SAVATER, Fernando. Ética para o meu filho. São Paulo: Martins Fontes, 1996;
[5] FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila.et alii. Ética holística aplicada ao direito. Florianópolis: Editora da OAB, 2002.
[6] FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. Direito e holismo. São Paulo: LTr, 2000.
[7] CALAMANDREI, Piero. Processo e democracia. Tradução de Paulo Roney Ávila Fagúndez.
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