Newton de Lucca[1], respondendo ao próprio questionamento a respeito da existência de justificativa filosófica para a ética empresarial, argumenta que a atividade a que se destina o empresário é constituída como profissão e, como tal, deve possuir regramento ético, tal qual existe para os advogados, juízes, membros do Ministério Público, entre outros. Pode-se dizer que os contratos empresariais seguem, por razões óbvias, essa ética mercantil, ou melhor, conforme mencionado por José Xavier Carvalho de Mendonça[2], o negócio jurídico seria comercial quando “o comerciante o pratica não no exercício normal da sua profissão, mas em virtude ou no interesse deste exercício”.
Fixando-se o desenho da escala de progressão do dever de conhecimento dos riscos do mercado[3], caberia, neste ponto, a consideração de que há uma horizontalidade e que esta é diferente daquela existente no Direito Civil. Os contratos empresariais estão num patamar superior, pois os quadrados de marcação da posição de cada um dos contratantes estão no mesmo nível, mas bem distantes do marco zero da escala de ônus cognitivo. Se o empresário conhece ou não o mar sobre o qual navega, em nada altera o sucesso da aventura em caso de naufrágio. “Afundar” o estabelecimento empresarial é algo que depende de variáveis internas e externas que podem ser elencadas conforme diversas análises econômicas. Jamais há certeza de vitória.
Há quem diga, como o fez Guido Alpa[4], que não seria dado ao direito o condão de reconstruir os contratos celebrados em condições não equilibradas para que não houvesse uma substituição da vontade das partes, o que ratifica o legado teórico denominado “ótimo de Pareto” já comentado em capítulo anterior. O ponto chave é que, ao se falar em ausência de equilíbrio, deve-se tomar o cuidado com o significado empregado, pois em patamar superior, sendo maior o ônus de conhecimento dos riscos, menores são as brechas para se falar em revisões, como será comentado adiante.
Não se pode narrar que as relações são desequilibradas somente pelo fato de que um dos empresários é financeiramente mais fraco. O que se discute é a situação de disparidade econômica e, não financeira, na qual a relação jurídica horizontal torna-se vertical.
Há que se entendido o fato de que os contratos empresariais são, ao menos em regra, horizontais e que os empresários, por ocuparem uma posição de superioridade em relação a outros sujeitos, ou seja, têm o dever de conhecer os riscos de mercado, impõe-se a busca de um importante assunto que circunda o estudo sistemático do Direito Comercial.
A discussão está exatamente sobre a primeira tentativa de se entender as relações comerciais como verticais, o que proporcionaria verdadeira quebra da disciplina em prol da vertente consumerista. Daí a importância de reflexões a respeito da matéria para se definir os limites do Direito Empresarial em prol da facilitação hermenêutica.
Ao abordar-se a temática da dignidade empresarial como princípio e constatar-se a necessidade de compreendê-la como hipótese objetiva sobre a qual os requisitos de clareza de regras voltam-se ao posicionamento do sujeito aos mercados, observa-se constantes visões jurisprudenciais sobre o empresário como consumidor[5].
O primeiro passo para se expor o assunto é compreender que o direito privado, em meio às divisões horizontais e verticais, passou a proteger os chamados hipossuficientes para beneficiá-los exatamente em virtude da vulnerabilidade.
E o principal efeito disso recai sobre a noção do pacta sunt servanda, lembrado por Caio Mário da Silva Pereira[6] para generalizar os ajustes contratuais, como expressões do acordo de vontades para determinar a respectiva força obrigatória, o dizer de que os contratos devem ser cumpridos.
Ao propor-se, a sujeitos, a condição de hipossuficientes, propicia-se a relativização da obrigatoriedade e, principalmente, em contratos de adesão, nos quais uma das partes apenas aceita os termos propostos pela outra, elevam-se as situações descritas como verticais. Assim, entra o Direito do Consumidor a sanar boa parte das relações jurídicas no âmbito privado e causar uma verdadeira revolução no cenário nacional, a partir da década de 1990.
Até neste sentido, Cláudia Lima Marques[7] reflete que a nova concepção de contrato seria uma concepção social daquele, para o qual não importaria somente o consenso das partes, mas, também, os efeitos do contrato na sociedade, principalmente, no que diz respeito à condição social e econômica das pessoas nele envolvidas.
É a função social que permite, na prática, discutir, impropriamente, a verticalização de contratos e, a partir dela, emergir as normas protetoras dos consumidores que permitem a interpretar os contratos de maneira favorável aos referidos vulneráveis e que autorizam o Direito Civil a promover cláusulas como a rebus sic stantibus, segundo a qual se defende a harmonia contratual contra alterações imprevistas ocorridas quanto ao estado original das partes, segundo o qual se estabeleceu o acordo[8]. É também ela quem abre espaço para a boa-fé objetiva e a consequente visualização dos deveres anexos, como a informação e a lealdade, o que permite a massificação das rescisões contratuais.
Nesse sentido, aparentemente, é a função social aquela que também serve de chave para discussão sobre a questionável adequação do empresário ao artigo 2o da Lei 8.078/1990, que diz que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Em termos óbvios, a celeuma da aplicação do artigo não se estabelece não somente sobre a parte final do dispositivo, referente às pessoas jurídicas, como também até sobre as pessoas naturais, visto que que ambas as formas de personificação podem ser empresárias, conforme já comentado em capítulo anterior.
Em defesa da questionável função social, pessoas naturais ou jurídicas, em tese, poderiam, uma vez caracterizada a dúbia condição de vulnerabilidade, serem classificadas como consumidoras.
Certo é que, no Brasil, há mais de duas décadas discute-se o sentido da expressão “destinatário final” e, para tanto, alçaram-se raciocínios maximalistas e finalistas sobre o que era ser consumidor.
Sobre isso, Paula Andrea Forgioni[9] revela que para os que se filiam à teoria finalista, não se deveria considerar como consumidoras as pessoas, especialmente as jurídicas, que adquirem produtos ou serviços utilizados em sua atividade profissional, enquanto para os maximalistas, o Código de Defesa do Consumidor seria o novo regulamento geral do mercado brasileiro, destinado a disciplinar realidade bem mais ampla do que a do adquirente não profissional e a substituir o “ato de comércio” pelo “ato de consumo”.
Na realidade, os defensores da possibilidade de classificação de empresários como consumidores, como Vinicius Marques de Carvalho[10], alegam a classificação como de consumo quando se constitui “uma relação direta entre inferioridade decorrente da disparidade do poder negocial e desequilíbrio contratual”, o que faria emergir uma ordem de proteção. Segundo ele, essa seria uma garantia grupal processual, de consentimento pleno, relativa às condições econômicas e sociais que instituem uma desigualdade tanto de sujeitos, como de classes deles, como é o caso dos consumidores, locatários e trabalhadores.
Tal escolha pelo finalismo consumerista, visto de maneira aprofundada em diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça a partir de 2003, a exemplo do recurso especial 541.867 - BA[11], decerto amplia a crise de identidade do direito comercial na jurisprudência dos tribunais do país. Por sorte, os questionamentos cabíveis podem e serão futuramente abordados neste espaço.
[1] DE LUCCA, Newton. Da ética geral à ética empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 341.
[2] CARVALHO DE MENDONÇA, 1953. v. 1, p. 506.
[3] Cf. BITTI, Eduardo Silva. A horizontalidade e a reserva de funções dos contratos empresariais. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/a-horizontalidade-e-a-reserva-de-funcoes-dos-contratos-empresariais-por-eduardo-silva-bitti>. Acesso em: 29 out. 2017.
[4] ALPA, Guido. Corso di diritto contrattuale. Milano: CEDAM, 2007, p. 17-18.
[5] Cf. BITTI, Eduardo Silva. Relações de insumo e o intervencionismo judiciário. Disponível em:<http://emporiododireito.com.br/leitura/relacoes-de-insumo-e-o-intervencionismo-judiciario-por-eduardo-silva-bitti>. Acesso em 29 out 2017.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 13. ed. atual. por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 3, p. 17.
[7] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o regime jurídico das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 210.
[8] Cf. PEREIRA, 2009. v. 3, p. 139.
[9] FORGIONI, 2009b, p. 31.
[10] CARVALHO, Vinicius Marques de. Contrato e intervenção institucional: uma análise do contrato de concessão. Revista de Direito Mercantil: industrial, econômico e financeiro, São Paulo: Malheiros, v. 47, n. 149/150, p. 76, jan./dez. 2008.
[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 541.867 - BA, 2ª Seção. Recorrente: American Express do Brasil S/A TURISMO. Recorrido: Central das Tintas LTDA. Relator: Ministro Barros Monteiro. Brasília, 10 nov. 2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 19 jun. 2014.
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