As bases que estruturam uma sociedade são confirmadas por sua cultura, ou seja, a forma de entender todas as situações ao redor parte de um sentido comunicativo. Isso traduz a experiência da interpretação dos sinais recebidos, por todos que fazem parte da teia social e se encontram envolvidos em diversas atividades dentro dessa coletividade (HABERMAS).
Ocorre que o Estado, ao institucionalizar as práticas sociais diversas passou a tratá-las de forma impositiva, alegando ser o detentor do poder das estruturas diversas que determinam o próprio sentido de humanidade; como o livre arbítrio, por exemplo (ELIAS).
A partir de determinado tempo, o ir e vir tornou-se cada vez mais penoso, sempre balizado pelas legalidades impostas pelos Estados soberanos, que determinam uma quebra na livre vontade de percorrer os caminhos do mundo. Outros exemplos palpáveis surgem com o experimento de substancias consideradas tóxicas e ilegais e sua proibição, a eutanásia e suas possibilidades, entre outras derradeiras experiências.
É certo que, num exemplo manifesto, a criação da propriedade privada e dos contratos entre particulares engendraram, a partir do direito, possibilidades diversas para todo o contexto social; alterando dessa forma o arquétipo que antes estruturava o conceito de urbanidade.
Ao alterar a cultura a ou a forma de interpretar as situações da cotidianidade, de maneira cadenciada, o entendimento dos sinais transmitidos e recebidos passa a ser moldado pelas estruturas que se institucionalizam pela pujança e controle do Estado, mas não mais pelas características comportamentais que atravessam os tempos e moldam a cultura de um povo (MALAGUTI).
Com isso, o domínio do poder de decisão passa de mãos e é transferido, historicamente, àqueles que detém o próprio poder de dizer o direito, dentro do Estado, que institucionaliza as práticas diversas.
Por isso, o exemplo romano é preponderante, quando a lei versava sobre alguma atividade cultural ou reconhecidamente pedagógica dentro da urbe.
No caso latino, os criadores da lei quiseram interpretar por um conceito cultural todas as situações que pudessem, de certa forma, modificar comportamentos ou substituir perspectivas corriqueiras pela força do direito e do Estado. Esse conceito vem em forma de jargão, um mero provérbio latino que aprecie toda a situação vivida, mas eis que dentro das intepretações culturais já predispostas no conhecer e no entender do povo romano. (SURGIK).
É correto dizer então que o povo do direito não era, reconhecidamente, o povo das leis (SURGIK).
Dispunham de uma organização tática tão aguçada que apurava o direito a partir de suas premissas mais intrínsecas: os fundamentos do direito não podem surgir de outro lugar que não seja direto do âmago da própria sociedade.
Assim, as concepções se moldam a partir da cultura e de um sentido comunicativo e interpretativo pautado nas bases que estruturam toda a coletividade. Não apenas o Estado, mas a forma de entender o caso concreto era guiada por costumes, princípios e práticas comunais repartidas entre todos. Não haviam interesses diversos.
Não cede, entretanto, espaços para vontades e aspirações externas ao caso concreto e estranhos aos personagens envolvidos.
Os casos apresentados aos juízes eram reconhecidamente tratados por todos com a recomendação de equilíbrio, e todos os julgados tinham a intenção de articular o caso analisado ao costume, cultura ou ao sentido comunicativo entendido pela comunidade, que interpreta os sinais que recebe a partir de sua interação com a sua cultura.
É com força que os primórdios passos do direito romano nos ensinam a compreender e esclarecem que o direito, em sua raiz mais profunda, não possui vontades ou mesmo perspectivas além do fato estudado; mas sim se eleva a qualquer aspiração alienígena ao seu fundamento mais relevante; que é a imparcialidade.
E através dessa lição singela, analisar o direito hodierno maculado por vontades aquém de suas especialidades, de sua inspiração e de sua própria interpretação, significa entender que o singular direito em si, foi transformado em um mecanismo para diversos outros fins, que não somente julgar conforme os fatos.
Essa nova interpretação assevera o uso do direito como trampolim para outros interesses, entre eles, o político e porque não, a vingança também.
O direito jamais deveria ser usado como ferramenta para engendrar propaganda política, para rebentar a ordem democrática ou para maquinar o cabriolar de cargos em cargos ao bel prazer de lascivos comandantes.
No entanto, a utilização dessa ferramenta de libertação e soberania é realizada em prol de poucos abastados que determinam o poder, em sua manutenção ou até mesmo, na total mudança do stato quo (DUSSEL).
Manobra também na derrocada da democracia, em sua mais pura referência, ao controlar e extirpar seus princípios mais distintos, manuseando processos ao bel prazer de lascivos agentes do direito, esse passa a ser reconhecidamente mais uma ferramenta de exclusão e supressão.
Com tudo isso, nota-se o quão distante se encontra este direito daquele seu primórdio suspiro, que engendrava não somente a justiça, mas também, a esperança e a fé na segurança jurídica, que vinha sempre no impulso da cultura, da vontade e da urbanidade de um povo.
Notas e Referências
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra sociedade. 2° Ed., São Paulo, Ed. 34, 2016.
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Trad. de George I. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, Vol. 1. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
FRANÇA, S.M. Diferença e preconceito: a efetividade da norma. São Paulo, Summus, 1998.
MALAGUTI Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro, Revan, 2014.
SURGIK. Aloisio. Gens Gothorum. As raízes do legalismo dogmático. Curitiba, Livro é cultura, 2003.
TOCQUEVILLE. A democracia na América. Trad. João Miguel Pinto de Albuquerque. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1969.
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