A Espetacularização da Administração Pública: entre frivolidades administrativas e as patologias burocráticas – Por Leonel Pires Ohlweiler

03/03/2016

Em diversas oportunidades, o livro A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa, já foi tema de debates. Trata-se de texto fundamental para refletir sobre diversos aspectos da sociedade atual e, atento aos propósitos deste espaço, das questões relacionadas com a Administração Pública. Com certeza para compreendermos as práticas dos administradores não basta a leitura do que vem a tona por meio dos periódicos da imprensa. Exige-se mais, para os interessados é inevitável acompanhar atos e processos oficiais em diversas direções, seja em matéria de atuação dos poderes administrativos, como fiscalizações, apreensões, bem como a materialização de inúmeras políticas públicas nas áreas da educação, saúde, meio ambiente, etc. Realização de concursos públicos, licitações e contratos administrativos, de obras e serviços públicos. Portanto, é algo que soa impossível compreender de modo adequado a complexidade da nossa Administração Pública?

Para os cidadãos, cujo tempo é escasso, a radiografia administrativa obtida por meio de jornais e periódicos dá a impressão que de fato vivemos tempos da espetacularização da Administração Pública. No entendimento de Mario Vargas Llosa a civilização do espetáculo “é a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é o ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.”[1] É claro que é bom divertir-se. O problema é exatamente como refere o autor; quando tal propósito ocupa o primeiro lugar em quase tudo! Ora, pululam nos jornais matérias sobre a operação lava-jato, as suspeitas relações de ex-presidentes, quebras de sigilos bancários, pagamentos de propinas por empreiteiras, irregularidades de campanha e por ai afora. Isso apenas no campo dos assuntos sobre política e administração pública. Não se trata em hipótese alguma de defender o acobertamento de fatos. No entanto, creio que o autor tem razão quando diz que o mais grave é que as pessoas se divertem com tudo isso, elevando à potência máxima o valor supremo de divertir-se ou como diz a gurizada “zoar nas redes sociais”! As consequências: banalização dos assuntos sobre administração pública, generalização da frivolidade e proliferação do jornalismo de escândalo[2].

A reflexão proposta coloca, por exemplo, a abertura dos parâmetros morais como algo presente no cenário referido. Já mencionei em outras oportunidades, com análise restrita ao campo do Direito Administrativo, os inconvenientes de adotar a moralidade como corretivo externo das práticas jurídicas, na linha do defendido por autores como Habermas e Lenio Luiz Streck[3]. No entanto, vivenciamos hoje a relativização de virtudes morais juridicamente institucionalizadas, como a probidade administrativa do §4º do artigo 37, da Constituição Federal. Vejam os critérios utilizados para o provimento de cargos públicos no Brasil, sim aqueles denominados de cargos políticos. Sob a perspectiva constitucional qualquer cargo político é também um cargo público e, portanto, submetido à incidência de princípios e regras constitucionais. Pois bem, defende-se abertamente sem causar maior espanto que o critério não é o da eficiência, mas da acomodação de acordos partidários. Será então que “cargos políticos” significam CPI – cargos politicamente ineficientes? Não se pode olvidar a denominação Secretarias de Estado. Portanto, o critério da eficiência, previsto de forma expressa no artigo 37, “caput”, da CF deveria ser o preponderante e mais significativo no imaginário dos administradores públicos.

Outro aspecto relevante que contribui para o atual quadro é a democratização da cultura. É sem dúvida alguma relevante retirar de segmentos dominantes o conhecimento. A observação de Mario Vargas Llosa, no entanto, é instigante: “Essa louvável filosofia teve o indesejado efeito de trivializar e mediocrizar a vida cultural, em que certa facilitação formal e superficialidade de conteúdo dos produtos culturais se justificam em razão do propósito cívico de chegar à maioria. A quantidade em detrimento da qualidade.”[4] No âmbito do Direito Administrativo, tema objeto destas inquietações, também o fenômeno citado avança de modo exponencial, refletindo sobre a qualidade da gestão pública. Não se pode generalizar, sob pena de cair em outro grave equívoco, mas é expressivo o número de estudantes de direito cuja preocupação é exatamente o aludido pelo autor, ávidos por livros de resumos, facilitados, descomplicados. Com certeza não se defende a complicação pela complicação, mas chama atenção o desinteresse pela leitura de clássicos na área, como Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Mássimo Severo Giannini, Diritto Amministrativo, Pietro Virga, Diritto Amministrativo, Maurice Hauriou, Derecho Público y Constitucional, Fernando Garrido Falla, Tratado de Derecho Administrativo, Otto Mayer, Derecho Administrativo Alemán, Rafael Bilesa, Derecho Administrativo e dos nacionais também como Themistocles Cavalcanti, Tratado de Direito Administrativo e Ruy Cirne Lima, Princípios de Direito Administrativo, só para exemplificar.

Resgatar a leitura de clássicos configura um dos modos de tentar ultrapassar o atual estado de banalização da cultura jurídica, por óbvio, sempre com a postura crítica e contextualizando historicamente as obras, sob a perspectiva transdisciplinar.

Na linha de Vargas Llosa lança-se o movimento: uma ode contra a leitura jurídica light![5]

E não se trata de implicância ou algo de um professor com os seus anos de magistério, mas são graves e preocupantes os reflexos sobre a qualidade dos nossos administradores públicos. Sobre temas complexos, envolvendo assuntos administrativos, não se vê nos jornais o debate profundo entre teóricos e professores, mas as midiáticas notícias que rendem manchetes, salvo raras exceções, lideradas por agentes políticos com o dom da verbalização teatral de frases prontas. A opinião de apresentador de televisão vale mais do que a de um professor!

Resultado: cada vez mais temos administradores públicos com pouco preparo para enfrentar as complexas atividades relacionadas com a Administração Pública, quando não excessivamente contaminados por práticas situadas naquilo que Giulio Napolitano denominou de patologias do comportamento burocrático, como (a)o desvio burocrático, quando a administração pública preocupa-se em maximizar o próprio bem estar do que atuar conforme a lei; (b)o desvio político, quando alguma entidade política possui o poder de orientar as decisões administrativa no sentido diverso do que é indicado em lei; (c)a captura, a capacidade de influência por parte de interesses privados, induzindo decisões administrativas que favorecem interesses privados e não os protegidos por lei e (d)a corrupção[6].

Urge reforçarmos a obrigatória frequência às Escolas de Gestão Pública, critério que inclusive deveria permear o imaginário social de requisito mínimo para eleger qualquer administrador público. O artigo 39, §2º, CF, refere de forma clara o dever de a União, Estados, e o Distrito Federal manterem escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos.

A espetacularização origina-se igualmente daquilo que Mario Vargas Llosa refere como a primazia da imagem sobre as ideias, na medida em que vivemos tempos difíceis de empobrecimento das ideias como o aspecto determinante das escolhas de gestores públicos. Inclusive, todos podemos notar em épocas de eleições a aproximação entre políticos e artistas. Ou seja, o critério de campanha bem sucedida é o da celebridade que sobe nos palanques e também aparece fazendo chamadas espetaculosas em rede nacional de televisão! Infelizmente, tudo isso faz parte da cultura de superfície[7]. Nada contra com a liberdade de voto, mas assusta a capacidade eleitoral de astros, cantores, celebridades do futebol e outros gêneros, remetendo para a conclusão da atual faze de nossa sociedade: o cômico é rei!

A simples pesquisa de legislações recentemente votadas e sancionadas reflete um pouco do aqui discutido, pois em tempos de Administração Pública do espetáculo ficamos com a impressão de haver cotidianamente a utilização de efeitos especiais para agradar a torcida. Em breve teremos o Ministério do Cinema, não para desenvolver culturalmente a arte, mas para escrever os roteiros administrativos, com o maior número possível de efeitos especiais, bem como, para o gáudio de muitos, será tudo em 3D!

No ano de 2016, por exemplo, temos a Lei nº 13.244, confere ao Município de Caçapava, Estado de São Paulo, o título de Capital Nacional do Antigomobilismo; Lei nº 13.246, Institui o dia 31 de outubro como Dia Nacional da Proclamação do Evangelho; Lei nº 13.248, Institui o dia 18 de julho como Dia do Tambor de Crioula. Agora em 2015, Lei nº 13.082, Institui o Dia Nacional do Humorista; Lei nº 13.101, Dispõe sobre o Dia Nacional do Milho; Lei nº 13.131, Institui o dia 31 de outubro como o Dia Nacional da Poesia, etc.

Uma última questão, o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a Medida Cautelar na ADI nº 4.552, em 09.01.2015, Rel. Ministra Carmén Lúcia, discutiu a inconstitucionalidade do pagamento de pensão vitalícia para ex-Governadores, ao julgar um caso do Estado do Pará. Ainda que deferida somente a medida liminar, mencionou-se a ausência de legitimidade constitucional para o pagamento de valores para agentes políticos que não mais exerçam atividades, pois caracterizaria doação com dinheiro público, violando diversos princípios constitucionais.

Sei que a questão é polêmica e os meios de comunicação com sua natural voracidade já divulgaram os fatos, mas não se verifica o mesmo ímpeto, por exemplo, com a Lei nº 12.663/2012, a chamada Lei Geral da Copa, que concedeu prêmio em dinheiro e de auxílio especial mensal aos jogadores campeões das copas do mundo de 1958, 1962 e 1970. Em relação a tal diploma legal houve o julgamento da ADI nº 4.976, Rel. Min. Ricardo Lewwandowski, prevalecendo o entendimento de constitucionalidade. Mais recente, as Leis nº 13.148/2015 concedeu pensão especial aos herdeiros de Frei Tito de Alencar Lima e nº 13.087/2015 concedeu pensão especial à atleta Lais da Silva Souza.

Portanto, não se trata de adotar soluções que não sejam agradáveis para a torcida, mas de aprofundar o debate sério e profundo sobre o significado das cláusulas de moralidade administrativa, impessoalidade e igualdade de nossa Constituição Federal. A decepção vem quando verificamos a ausência de condições em tempos de Administração Pública do espetáculo, marcada por aquilo que Mario Vargas Llosa refere como frivolidade: “consiste em ter uma tabela de valores invertida ou desequilibrada, em que a forma importa mais do que o conteúdo, e a aparência, mais do que a essência, em que o gesto e o descaramento – a representação – ocupam o lugar de sentimento e ideias.”[8]

Contra o acima mencionado, além da valorização da função administrativa como algo inerente ao processo democrático, é preciso Levar a Constituição a Serio, como na obra de Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, pois no caso brasileiro os princípios constitucionais da Administração Pública são autênticos trunfos dos cidadãos, cujas decisões do Poder Público devem estar justificadas por princípios e não pela espetacularização da vida cotidiana!


Notas e Referências:

[1] A Civilização do Espetáculo. Uma Radiografia do nosso Tempo e da Nossa Cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p.29.

[2] Cf. VARGAS LLOSA, Mario. A Civilização do Espetáculo, p. 30.

[3] Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.

[4] A Civilização do Espetáculo, p. 31.

[5] Conforme o autor “a literatura light, assim como o cinema light e a arte light dá ao leitor e ao espectador a cômoda impressão de que é culto, revolucionário, moderno, de que está na vanguarda, com um mínimo de esforço intelectual. Desse modo, essa cultura que se pretende avançada, de ruptura, na verdade propaga o conformismo através de suas piores manifestações: a complacência e a autossatisfação.” (A Civilização do Espetáculo, p. 32).

[6] La Logica del Diritto Amministrativo. Bologna: Il Mulino, 2014, p. 41-45.

[7] Cf. VARGAS LLOSA, Mario. A Civilização do Espetáculo, p. 38.

[8] A Civilização do Espetáculo, p. 45.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

NAPOLITANO, Giulio. La Logica del Diritto Amministrativo. Bologna: Il Mulino, 2014.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.

VARGAS LLOSA, Mario. A Civilização do Espetáculo. Uma Radiografia do Nosso Tempo e da Nossa Cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.


 

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