A ESCARIFICAÇÃO E A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA – UM CASO PENAL    

12/07/2021

O Ministério Público da comarca de Campinas, em São Paulo, acaba de denunciar criminalmente uma mulher que introduziu sua filha de dez anos ao candomblé, acusando-a de praticar crime de lesão corporal leve, em situação de violência doméstica e familiar. Segundo o promotor de Justiça que subscreveu a peça acusatória, “a criança foi levada a um ritual religioso no qual sofreu cortes provocados por gilete ou navalha, causando-lhe lesões corporais de natureza leve.”

O erro do promotor de Justiça, além de grosseiro, foi injustificadamente gravíssimo, seja do ponto de vista constitucional, visto que o artigo 5º., VI da Constituição estabelece ser inviolável a liberdade de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, seja sob o aspecto jurídico-penal, pois foi narrado na peça acusatória um fato materialmente atípico, não se constituindo em qualquer ilícito penal, nem sequer culposo, tratando-se apenas da prática de uma pequeníssima incisão feita na superfície da pele de um dos braços da criança, uma escarificação (ritualística) religiosa, muito comum na iniciação ao candomblé, e sem nenhuma potencialidade lesiva ou atingimento de bem jurídico penalmente tutelado.

Trata-se de fato que ocorre, por exemplo, e sem que haja qualquer relevância de natureza jurídica, entre os judeus e os mulçumanas que têm o direito de extirparem o prepúcio de crianças; portanto, neste caso, deu-se aos candomblecistas um tratamento especialmente rigoroso, inaceitável, preconceituoso, intolerante e, sobretudo, inconstitucional; e o que é mais grave: a partir de uma denúncia do Ministério Público que, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, é instituição a quem incumbe a defesa da ordem jurídica.

Afinal, pelo que se sabe, não há registro na Justiça brasileira de uma acusação de natureza criminal feita pelo Ministério Público em relação a judeus ou muçulmanos, pais e mães de crianças ou adolescentes circuncidados. A prevalecer a tese do promotor de Justiça, doravante, deveriam ser acusados pelo mesmo crime (lesão corporal dolosa) os pais e as mães de crianças que põem brincos em suas filhas, e mesmo aqueles e aquelas que consentem e expressamente autorizam o filho ou a filha adolescente fazer uma tatuagem (como eu já o permiti, por exemplo).

Aliás, não faz muito tempo (foi em agosto do ano passado, e também em São Paulo, na cidade de Araçatuba), uma mãe perdeu a guarda da filha de 12 anos, após a adolescente passar por um ritual de iniciação ao candomblé, que envolve raspar a cabeça dos novos adeptos, ritual chamado de feitura de santo, quando o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro, numa espécie de retiro espiritual, período em que recebe banhos de ervas, conhecendo os fundamentos da religião, purificando-se e entrando em contato com o axé ("força" ou "poder”, na língua Iorubá).

Neste caso, mãe e filha chegaram ao absurdo de serem levadas para uma delegacia de Polícia e só foram liberadas depois da adolescente submeter-se a um exame de corpo de delito, que não encontrou nenhum tipo de lesão corporal, apenas se constatando o fato dela estar com a cabeça raspada, ato sagrado que simboliza um verdadeiro renascimento com valores ancestrais da religião.

Também recentemente, o Tribunal de Justiça da Bahia confirmou a condenação de uma pessoa acusada de racismo, na modalidade preconceito religioso, por hostilizar adeptos do candomblé, com gritos de “sai satanás”, e jogando sal grosso na frente de um terreiro. Segundo o voto do desembargador baiano, relator da apelação, Desembargador Nilson Soares Castelo Branco, “a liberdade de expressão, mesmo a religiosa, ainda que protegida constitucionalmente, não é absoluta de modo a permitir o aviltamento a culto distinto.”

Neste caso baiano, os reiterados ataques da acusada começaram em agosto de 2014 e atingiram o ápice no ano seguinte, ganhando repercussão nacional, até que em setembro de 2015, o Ministério Público (acertadamente, e cumprindo seu dever constitucional) denunciou a acusada por infração ao artigo 20, da Lei 7.716/89, sob a acusação da prática de induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A acusada já havia sido condenada em primeira instância, em 5 de setembro de 2019, pela 2ª. Vara Criminal da comarca de Camaçari.

No julgamento do recurso, o relator rejeitou a tese defensiva de prescrição, enfatizando que “o racismo é crime inafiançável e imprescritível (artigo 5º., XLII, da Constituição), e os tribunais superiores tratam a matéria de forma pacífica, em conformidade com a Carta Magna.”

Segundo ele, “a conduta da denunciada representa injustificável menosprezo e preconceito dirigido, intencionadamente, contra toda a coletividade praticante do candomblé, havendo suficiente comprovação de que as expressões utilizadas pela apelante, tais como ´sai satanás` (sic), 'queima satanás' (sic), implicam na exortação de indiscutível carga negativa quanto à referida religião de matriz africana”, acrescentando “que a ré cometeu o racismo diante de várias pessoas, em contexto vexatório e de forma agressiva, repetindo que o pessoal do terreiro não pode ficar ali, que eles, da igreja evangélica, vão vencer”, concluindo “que o Poder Judiciário deve reprimir tal conduta para o alcance da convivência harmônica dos credos e a proteção da dignidade humana.”

Tais fatos, absoluta e infelizmente corriqueiros no Brasil, demonstram a intolerância religiosa que há na sociedade brasileira, especialmente em relação às religiões de matriz africana, fruto do racismo estrutural que permeia esta mesma sociedade, refém de uma origem espúria e perversa em que as pessoas negras foram estupidamente escravizadas durantes séculos e, mesmo após a abolição formal da escravidão, continuaram a sofrer as agruras de uma existência humana permeada de preconceito, sofrimento, intolerância, ódio e desprezo.

Pois bem.

Estes fatos lembram um episódio ocorrido em meados do século XVIII, exatamente no dia 9 de março de 1762, quando Jean Calas, um francês sexagenário, comerciante de tecidos na cidade de Toulouse, foi condenado à morte pelo suposto assassinato do seu filho mais velho, Marc-Antoine Calas, 28 anos, um jovem forte e saudável. Esta sentença à pena capital, tratou-se de um dos maiores erros judiciários que se tem notícia; um caso emblemático, e tão significativo que levou Voltaire a escrever o seu Tratado sobre a Tolerância.[1]

De início, é preciso observar que, à época, em França, "o poder se arrogava mui normalmente no direito de atormentar homens por suas crenças", especialmente durante os reinados de Luís XIV e Luís XV. Assim, leis previam expressamente a "pena capital contra os pastores surpreendidos no exercício de seu ministério; quanto aos protestantes presos em flagrante delito de praticar o culto, galés perpétuas para os homens, prisão perpétua para as mulheres."

Mais particularmente, os huguenotes "estavam sujeitos a medidas discriminatórias muito penosas. Não tinham estado civil. Seus nascimentos, seus casamentos fora da Igreja não eram reconhecidos legalmente. Seus filhos eram considerados bastardos, com todas as consequências daí decorrentes, notadamente no que tange à transmissão das heranças." Outrossim, estavam “excluídos de grande número de profissões", razão pela qual muitos calvinistas "resignavam-se a atos puramente formais de catolicidade", tais como o batismo e o casamento: eram os católicos novos.

Logo depois de sua ascensão, Luís XV, influenciado pelo seu primeiro-ministro, o Duque de Bourbon, declara oficialmente "que o desígnio do rei da França continuava a ser o de extirpar a heresia", aumentando a intolerância e as punições. O livro de Voltaire, então, "evoca as fases de crise desse enfrentamento prolongado."

Em resumo, deu-se a seguinte tragédia com os Calas: no dia 13 de outubro de 1761 jantavam na residência da família o pai, Jean Calas, 64 anos, sua esposa, seus filhos Marc-Antoine Calas (o mais velho, com 28 anos) e Pierre Calas, além de um amigo da família, Gaubert Lavaisse, de 19 anos, todos protestantes.[2]                               

Na casa da família também estava Jeanne Viguière, "dedicada empregada católica que ajudara a criar todos os filhos da família há trinta anos.” Após o jantar, levantaram-se todos e foram para uma sala contígua, com exceção do primogênito, Marc-Antoine, que se dirigiu à loja do pai como se fosse dar uma volta pela cidade, como de costume fazia.

Por volta das 21h30, o amigo Gaubert Lavaisse despede-se dos Calas e é acompanhado por Pierre, o outro filho que jantara há pouco. Ao se aproximarem da saída, avistam o corpo de Marc-Antoine, estendido ao chão, com sinais de estrangulamento e o pescoço com marcas de uma corda. Encontrava-se vestido com um camisolão "em perfeito estado; os cabelos continuavam bem penteados; não havia no corpo nenhum ferimento, nenhum machucado.”

O amigo e o filho saem de casa à procura de ajuda médica e das autoridades da Justiça, enquanto os pais e a empregada desesperam-se diante do corpo morto. Neste momento, alertados pelos gritos de sofrimento vindos da casa, populares dirigem-se para a residência dos Calas.

Era um "povo supersticioso e violento; vê como monstros seus irmãos que não são da mesma religião que ele." Um deles, então, "gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio filho. Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime; outros acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais, pois, uma vez excitados, os espíritos não mais se detém."

Poucas horas depois, todos já estavam presos, inclusive a empregada da família, por ordem do magistrado David de Beaudrigue, a quem pareceu convincentes os "boatos e mexericos" vindos do povo. Ele, que também era chefe de Polícia, "excitado por esses rumores e querendo valorizar-se por uma ação imediata, fez um processo contrário às normas”, encarcerando todos até o julgamento final (uma prisão provisória, portanto, tão comum no Brasil de hoje).  

Ignorando todas as provas, e sem qualquer prova do parricídio, a Justiça de Toulouse, cinco meses depois do fato, profere uma sentença condenatória, decretando a pena de morte para o pai da vítima, um velho "de pernas inchadas e fracas", num processo fraudado a partir de "uma instrução dominada pela prevenção e, por isso, mal conduzida.”[3]  

Logo no dia seguinte à condenação, o comerciante é executado em plena praça Saint-Georges de Toulouse, após um suplício de duas horas na roda. Depois de “ser quebrado vivo, foi estrangulado e atirado em uma fogueira ardente. Assim, Jean Calas foi condenado a uma morte atroz com base numa mera verossimilhança": a escolha de sua religião.[4]

Portanto, como disse Voltaire, "a pressão da opinião pública supriu a falta de provas." Nada tão atual!

Na verdade, esperavam os algozes – como se dava no costume - que o acusado, durante o suplício na roda, confessasse o crime, legitimando a sentença de morte, inclusive em relação aos demais. Nada obstante a tortura e os pedidos do Juiz-inquisidor para que confessasse o assassinato, o pai não o fez, repetindo até o último suspiro que era inocente, pedindo sempre a Deus que perdoasse os seus algozes. Um padre católico que esteve durante as duas horas de sofrimento atestou "lealmente a firmeza de alma de Jean Calas."

Tampouco conseguiram a confissão ou a delação do jovem Lavaisse, apesar de o terem ameaçado de tortura e morte. Ao contrário, ele preferiu expor-se ao suplício do que mentir, afirmando falsamente que havia se afastado dos Calas por um momento, quando então teriam matado Marc-Antoine Calas.

Diante da ausência de confissão, os juízes, contraditoriamente, deixam de condenar os demais acusados à pena de morte - que seria o óbvio -, já que todos haviam sido acusados pelo mesmo crime. O filho Pierre é condenado ao banimento (e depois encarcerado em um convento de dominicanos) e os demais são postos "para fora do tribunal; noutras palavras, absolvem-nos. Era reconhecer implicitamente o erro judiciário." A mãe, depois de ver as duas filhas obrigatoriamente postas também em um convento católico, ficou "só no mundo, sem pão, sem esperança e sucumbindo ao peso de sua infelicidade."

Tomando conhecimento do absurdo erro judiciário, Voltaire (que até então não conhecia a família Calas) dedica-se a provar a inocência do pai, advogando perante "a Europa das luzes, movido apenas por um espírito de justiça, de verdade e de paz." Após três meses de estudo do caso, interrogatórios, diligências e investigações, o filósofo consegue, em 9 de março de 1765 (exatos três anos depois da primeira decisão), por unanimidade, uma sentença de reabilitação da memória do pai. Não houvera um homicídio, a vítima suicidara-se!

O jovem Marc-Antoine Calas, "um homem de letras, e um espírito inquieto, sombrio e violento", impedido de ser advogado (como desejava) em razão da religião que professava, inapetente para o comércio (como queria o pai) e tendo acabado de perder uma pequena fortuna no jogo, "decidiu acabar com sua vida e fez pressentir esse propósito a um de seus amigos; firmou-se em sua resolução através da leitura de tudo o que até então se escrevera sobre o suicídio."

Toda a família foi declarada inocente, reconhecendo-se que o julgamento foi "iníquo e abusivo, levado por indícios equívocos e pelos gritos de uma multidão insensata, causando a ruína inteira de uma família inocente." As filhas foram devolvidas à mãe, e os Calas foram autorizados a processar os juízes, responsabilizando-os por perdas e danos. O Rei mandou entregar trinta e seis mil libras à mãe, às filhas e ao filho, três mil das quais para ser dada à empregada "que defendera constantemente a verdade ao defender seus patrões."

Então, como descreve Voltaire, "foi uma grande festa em Paris; as pessoas reuniam-se nas praças públicas, nos passeios; todos queriam ver essa família tão infortunada e tão bem justificada; os juízes eram aplaudidos, cumulados de sentimentos de gratidão."

O processo de reabilitação durou, como se nota, muito mais tempo do que o de condenação, afinal, "tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência, como é difícil à razão restituir-lhe a justiça. Foi preciso suportar demoras inevitáveis, necessariamente ligadas às formalidades. Quanto menos essas formalidades foram observadas na condenação de Calas, tanto mais deviam sê-lo rigorosamente pelo Conselho de Estado."

Enfim, trata-se de um livro especialmente dedicado ao estudo da tolerância religiosa, da liberdade de pensar e do ato de julgar, sendo "uma petição que a humanidade apresenta muito humildemente ao poder e à prudência.” Voltaire queria semear “um grão que algum dia pudesse produzir uma grande colheita."

Infelizmente, a semente não fez produzir a colheita desejada, e, hoje, em pleno século XXI, mata-se em nome de Deus, persegue-se quem não professa determinada religião, odeia-se a partir de um fundamentalismo religioso inaceitável, e ainda se vê alguém ser denunciada criminalmente pela prática legítima de um ritual essencial numa religião de matriz africana (que não constitui crime), e os fariseus e fanáticos religiosos continuam a desprezar a vida e a dignidade humana.   

 

Notas e Referências                                                          

[1] VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000. A obra começou a ser escrita em outubro de 1762, mas a sua impressão deu-se apenas em abril do ano seguinte, e a sua divulgação foi imediatamente proibida na França.

[2] O outro filho, Louis Calas, não mais vivia com a família, pois, alguns anos antes, convertera-se ao catolicismo, com a aprovação do pai, inclusive. Vivia, desde então, à custa de uma pensão paga pelo pai após a abjuração, obrigação imposta pelo bispo da Igreja Católica (que também o obrigou a quitar todas as dívidas do filho): “levava uma vida preguiçosa, incapaz de ocupar um emprego fixo, subsistindo apenas da mesada paterna." Um outro filho, o mais jovem, Donat Calas, também ausente do jantar naquele dia, estava como aprendiz em Nîmes. O casal também tinha duas filhas, Rosine e Nanette, respectivamente, com 20 e 19 anos, ambas também ausentes, pois tinham ido ao campo colher uvas, como todos os anos faziam.

[3] Perguntava Voltaire: "como é que todos juntos teriam podido estrangular um jovem tão robusto quanto eles todos, sem um combate longo e violento, sem gritos terríveis que teriam alertado a vizinhança, sem golpes reiterados, sem ferimentos, sem roupas rasgadas?”

[4] Cinco anos antes, em 2 de março de 1757, Damiens também havia sido condenado na França por um “dito parricídio”, tendo seu corpo sido “puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento; e, finalmente esquartejado: essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retarlhar-lhe as juntas.” (FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 9).

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