A EROSÃO DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL NO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS  

12/08/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira

A responsabilização civil por meio do patrimônio representa um importante marco no desenvolvimento histórico do conceito jurídico de obrigação. Se, no direito romano arcaico, a execução de débitos poderia recair sobre o corpo ou a liberdade do devedor, constituindo-se em um vínculo pessoal, a Lex Poetelia Papiria, datada de 326 a.C., causa “verdadeira revolução no conceito obrigacional” ao dispor que o patrimônio do devedor deveria responder por suas dívidas, em uma clara objetivação do vínculo obrigacional1. Essa transição, embora tenha ocorrido de maneira gradual, é fundamental para a compreensão contemporânea das obrigações e da responsabilidade civil nos sistemas de civil law.

O Código Civil de 2002 é bastante claro ao seguir essa tradição. Da leitura do art. 389, combinado com o art. 391, compreende-se que o inadimplemento obrigacional resulta em perdas e danos que deverão ser suportados por todos os bens do devedor. Em complemento, recorda-se que a configuração do ato ilícito gera o dever de reparar o dano na medida da sua extensão, conforme disposições dos arts. 927 e 944. Reforça esse posicionamento a previsão do art. 789 do Código de Processo Civil de 2015 em que se afirma que "o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei". Em síntese, conclui-se que a responsabilidade civil, seja ela contratual ou aquiliana, é caracterizada (i) pela função de reparação de danos (ii) por meio do patrimônio do devedor2.

Não obstante, a extensão e os limites da responsabilidade patrimonial são frequentemente colocados em disputa. No âmbito do direito material, pode-se mencionar o debate acerca da constitucionalidade da prisão civil por dívidas. O art. 5o, inciso LXVII da Constituição Federal dispõe que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Somente em 2008 o Supremo Tribunal Federal passou a delimitar a abrangência do dispositivo, com fundamento no Pacto de San José da Costa Rica, restringindo a prisão civil aos casos de dívida alimentar. A manutenção da prisão civil por dívida alimentar se justificaria “[...] porque se cuida de caso especialíssimo em que tal descumprimento de obrigação patrimonial envolve grave risco à sobrevivência biológica - se não ainda sociológica -, dos credores”3. Embora haja previsão constitucional de caráter excepcional e seja caracterizada como uma “técnica coercitiva”, a prisão civil desafia a garantia da responsabilização patrimonial, na medida em que constrange a liberdade do devedor em busca da satisfação do débito alimentar – ainda que tenha o louvável propósito de efetivar um mínimo existencial ao alimentando4.

A despeito do debate no direito material, é no direito processual que se encontram os principais problemas. A tensão entre a efetividade da execução no direito processual civil e a garantia da responsabilidade patrimonial no direito civil fica evidente na tutela das obrigações. O cumprimento forçado das obrigações de fazer gerou uma série de questionamentos sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, na medida em que o Código Civil indica que o inadimplemento de obrigação de fazer personalíssima implica em perdas e danos, conforme dispõe o art. 247, ao passo que a obrigação de fazer fungível permitiria a execução por terceiro às custas do devedor, no esteio do art. 249. Em ambos os casos, o que é possível extrair do texto normativo é a responsabilidade patrimonial do devedor nos casos de inadimplemento culposo de obrigações de fazer. Não obstante, tornou-se prática corriqueira a adoção de um amplo leque de medidas em busca da tutela específica dessas obrigações, dentre as quais se destacam as astreintes, com fundamento no art. 461 da lei processual pretérita – repetindo-se no art. 536 da novel legislação. Ora, se o Código Civil prevê claramente que o inadimplemento de obrigação de fazer infungível resulta em perdas e danos, seria lícita a adoção de medidas coercitivas para compelir o devedor a cumprir sua obrigação5?

O mais recente e agudo polo de disputa se deu em razão do art. 139, inciso IV do Código de Processo Civil, em que se estabeleceu a possibilidade de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. Além de sedimentar a ampla possibilidade de medidas atípicas, o dispositivo inova ao permitir expressamente tais medidas para prestações puramente pecuniárias. As medidas propostas com base neste artigo são bastante amplas, conforme tem demonstrado a jurisprudência: suspensão da autorização de dirigir do devedor, proibição de viajar, retenção de passaporte, proibição de participar em concursos públicos, bloqueio de cartões de crédito, e assim por diante6. Todavia, tais medidas, se entendidas de maneira ampla e sem limitações, não estariam violando a garantia da responsabilização patrimonial de maneira a atingir direitos fundamentais do devedor?

Esse debate chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que vem adotando um posicionamento favorável a tais medidas –  in casu apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e passaporte – desde que analisados os seguintes critérios7: (i) sejam medidas excepcionais, casuísticas e proporcionais; (ii) seja o devedor intimado previamente para pagar o débito ou apresentar bens para solver a dívida; (iii) seja a medida devidamente fundamentada, não sendo suficiente a mera da indicação do dispositivo ou a invocação de conceitos jurídicos indeterminados; (iv) estejam esgotados os meios típicos de satisfação do crédito exequendo; (v) haja existência de indícios mínimos que sugiram que o executado tenha bens aptos a satisfazer a dívida. Em suma, “é possível ao juiz adotar meios executivos atípicos desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio apto a cumprir a obrigação a ele imposta, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade”8.

Um aspecto relevante abordado pela Ministra Nancy Andrighi diz respeito à diferença entre sanções civis e medidas de coerção psicológica9. As primeiras teriam um caráter “pessoal e punitivo”, caracterizando-se pela substituição da dívida patrimonial inadimplida. As segundas “[...] não teriam força para satisfazer a obrigação inadimplida, atuando tão somente sobre a vontade do devedor”, tal como ocorreria com a prisão em razão do inadimplemento da prestação alimentícia10. Dessa maneira, pode-se inferir que a diferença seria teleológica: nos meios de execução indiretos, a finalidade seria a de compelir o devedor a adimplir a sua prestação, de tal modo que a imposição de tais medidas não teria o poder de extinguir o vínculo obrigacional. Assim, a apreensão da CNH e do passaporte, se não culminarem no pagamento (nada) espontâneo do devedor, não causará a extinção da dívida. Por outro lado, a finalidade da sanção civil seria punir o devedor pelo descumprimento de uma obrigação. Portanto, com a execução da sanção civil, extinguir-se-ia o vínculo obrigacional, uma vez que ocorria uma sub-rogação da prestação.

Embora a diferença conceitual seja compreensível, parece não haver razão para concluir que apenas as sanções civis seriam “capazes de ofender a garantia da patrimonialidade”11. Se a sanção civil viola a responsabilidade patrimonial, com maior razão deveriam as medidas executivas configurarem tal violação, uma vez que podem gerar consequências mais graves ao devedor. Seguindo o raciocínio da ministra Nancy Andrighi, as sanções civis, após cumpridas, liberam o devedor, ao passo que as medidas executivas indiretas não possuem tal poder, permanecendo o devedor vinculado, mesmo após restrições em seus direitos. Assim, na ausência de balizas e garantias típicas de procedimentos que visam a punição, o devedor pode ter seus direitos e garantias fundamentais constrangidos perenemente em razão do inadimplemento contratual. Desse modo, alguns questionamentos se fazem imperativos: Há um lapso temporal definido para tais medidas? Há um número máximo de vezes em que tais medidas podem ser aplicadas em relação ao mesmo caso? Apenas a apreensão de CNH e passaporte estão permitidas? Há discricionariedade do magistrado na fixação de tais medidas? São perguntas que permanecem sem respostas nos julgados analisados.

Os riscos em se aplicar tais medidas são enormes. Do ponto de vista epistemológico, corre-se o risco de descaracterizar o direito privado, atribuindo-lhe funções alheias e fazendo com que este “assuma culpas históricas que não lhe pertencem e adote métodos e princípios que não se coadunam com seus fins”12. Do ponto de vista pragmático-normativo, corre-se o risco de impor ao devedor uma sanção – ainda que sob a denominação de técnica coercitiva – sem as devidas garantias e delimitações que podem culminar na violação de direitos fundamentais.

Nesse sentido, destacam-se os julgamentos de Habeas Corpus pelo Superior Tribunal de Justiça nos casos de apreensão e retenção da CNH e de passaporte em razão do inadimplemento contratual. Em julgado recente, referente ao inadimplemento de contrato de prestação de serviços educacionais, o Ministro Luis Felipe Salomão conclui pela licitude das medidas executivas atípicas desde que respeitados os critérios elencados anteriormente, com destaque à proporcionalidade, contraditório prévio, esgotamento dos meios típicos e presença de indícios de ocultação patrimonial. O Ministro compreendeu que a apreensão da CNH não representaria violação desproporcional à liberdade de locomoção, uma vez que poderia ser enquadrada no escopo do art. 139, inciso IV do Código de Processo Civil, não sendo viável a tutela por meio de Habeas Corpus. Em relação à suspensão do passaporte, a conclusão foi diferente. Haveria, nesse caso, uma violação desproporcional à liberdade de locomoção, extrapolando os limites da norma processual, sendo passível de proteção por meio de Habeas Corpus. O critério para tal distinção, contudo, não fica claro13.

Assim, o questionamento que se coloca é o seguinte: é possível argumentar que há uma garantia de responsabilização patrimonial do direito privado brasileiro? Da análise dos argumentos apresentados, conclui-se que há uma contundente erosão dessa garantia, de tal modo que se corre o risco de esvaziar o sentido e o escopo de tal proteção. Se a responsabilidade é patrimonial, mas se permite uma ampla restrição de direitos fundamentais, tal como a liberdade de locomoção, para se atingir o patrimônio, parece não haver sentido em sustentar a responsabilidade patrimonial. Embora a ineficácia da execução seja um problema notório e preocupante, entendemos não ser salutar uma interpretação puramente consequencialista do direito privado e processual para a superação desses problemas. Assim, como parâmetro hermenêutico ao art. 139, inciso IV do Código de Processo Civil, propomos que as medidas executivas impróprias recaiam somente sobre o patrimônio do devedor, tal como ocorre com a imposição de astreintes. De mais a mais, se há indícios de ocultação de patrimônio ou fraude à execução, há caminhos próprios para a tutela dessas situações, seja no campo do direito material (v.g. fraude contra credores, simulação, desconsideração da personalidade jurídica); processual (v.g. fraude à execução); ou, em casos mais extremos, no campo do direito penal (v.g. fraude à execução e estelionato), com as devidas garantias.

Se esses instrumentos não têm sido suficientes para lidar com o problema da ocultação patrimonial, eles precisam ser repensados ou, no mínimo, interpretados de forma a favorecer sua efetividade. Eles não podem ser indiscriminadamente substituídos pela discricionariedade judicial, especialmente quando atinge direitos fundamentais para dar efetividade a questões patrimoniais. Dessa maneira, o uso indiscriminado de ferramentas de execução atípica desestimula e impede o avanço e o aprimoramento dos institutos de direito processual e material criados para lidar com a fraude a credores e a ocultação patrimonial, ao custo de se ferirem direitos fundamentais a partir da valorização da eficiência do processo. É a vitória do direito processual sobre o material e da visão míope sobre um problema sistêmico.

 

Notas e referências

1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: volume II. Atualizado por Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 10; ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 376-377.

2 Situação diferente ocorre em relação à tutela dos direitos da personalidade que, por força do art. 12 do Código Civil de 2002, permite uma gama mais ampla de tutelas, inclusive a tutela específica, para além da pretensão indenizatória patrimonial.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP. Min. Relator Cézar Peluso. Julgado em 03 dez. 2008, p. 1274. 

4 Cf. PINTO, Marcos José. A prisão civil do devedor de alimentos: constitucionalidade e eficácia. Brasília: ESMPU, 2017.

5 Nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: execução forçada, processos nos tribunais, recursos, direito intertemporal, v. III. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 455: "Se houver recusa ou mora de sua parte, outra solução não há, senão a de converter a obrigação personalíssima em perdas e danos (obrigação subsidiária) (art. 821, parágrafo único). Nesse caso, não tem cabimento a aplicação da multa cominatória (astreinte). O próprio direito material determina como sanção aplicável às prestações personalíssimas, ou infungíveis, a substituição por perdas e danos (Código Civil de 2002, art. 247)."

6 STRECK, Lenio; NUNES, Dierle.  Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2016.

7 Tais critérios, assim como grande parte dos argumentos apresentados no julgados do Superior Tribunal de Justiça parecem ser derivados do influente artigo de Daniel Amorim Assumpção Neves. Cf. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de pagar quantia certa – art. 139, IV, do novo CPC. Revista de Processo, vol. 265, p. 107-150, 2017.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.788.950/MT. Min. Relatora Nancy Andrighi. Julgado em 23 abr. 2019, p. 9-10. No mesmo sentido, cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1782418/RJ. Min. Relatora Nancy Andrighi. Julgado em 23 mai. 2019; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1733697/RS, Min. Relatora Nancy Andrighi. Julgado em 11 dez. 2018.

9 Importante destacar que a coerção psicológica é afastada em outros contextos no direito privado, como no caso dos vícios do negócio jurídico e na ampla proteção conferida no âmbito da responsabilidade civil contemporânea, com a garantia de ressarcimento dos mais diversos danos. Assim, o judiciário age de maneira contraditória ao se valer dessa possibilidade para efetivar o cumprimento de questões patrimoniais, especialmente quando o simples fato de ser réu em processo judicial já é, em alguma medida, constrangimento e pressão psicológica suficientes para se atingir tal finalidade.

10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.788.950/MT. Min. Relatora Nancy Andrighi. Julgado em 23 abr. 2019, p. 6-7.

11 Ibid., p. 6.

12 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito, ano 143º, vol. II, 2011, p. 64

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 97.876/SP. Min. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em 05 jun. 2018. No mesmo sentido, cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 558.313/SP. Min. Relator Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado em 23 jun. 2020; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 99.606/SP. Min. Relatora Nancy Andrighi. Julgado em 13 nov. 2018.

 

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