A encruzilhada do Direito entre Lady Gaga e a Teoria Queer

11/10/2015

Coluna Espaço do Estudante

"Reivindico mi derecho a ser un monstruo Y QUE OTROS SEAN LO NORMAL"

Susy Shock[1]

O que Lady Gaga, juntamente com a Teoria Queer, tem a dizer ao Direito?

Para aqueles que podem responder "nada", quero pensar um novo horizonte sobre ela na perspectiva queer e como esses discursos são potentes.

A ideia de sujeito que é trabalhada na Teoria Queer contempla a construção sociolinguística do gênero, da sexualidade e do corpo. Há uma contraposição ao sujeito liberal, que age livremente e tem autonomia sobre suas escolhas. O queer é o estranho, o raro, o desviante, que pode ser tanto em gênero e sexualidade[2],[3]. O queer desconstrói esse imaginário totalitarista, hegemônico e fechado, é a revisão de toda essa naturalização discursiva opressora e excludente.

Jorge Leite Júnior, no Seminário[4], usou a categoria "monstro"[5] para refletir sobre esse sujeito que não se enquadra, mas que é uma categoria de inteligibilidade para esses corpos. Termo esse que é e foi bastante usado pela cantora.

Lady GaGa tem se apresentado como uma linha de fuga de muitos campos: arte, política, moda, feminismo, movimento LGBTQI. Ela é uma performer queer. Sua arte pop surrealista com transgressões fashions, seus clipes musicais metafóricos e sua bissexualidade são alguns elementos de uma performer que tem domínio sobre sua arte e experimenta o "estranho" no palco e diante das câmeras[6].

No verão de 2009, ela começa a se referir a seus fãs como monstros[7]. A partir disso, suas aparições são com roupas extravagantes e sua relação com seus fãs aumenta. Seu clipe de Bad Romance oficialmente inicia a "estética monstro", a qual vai ser radicalmente trabalhada na sua terceira "era" com o álbum Born This Way[8]. Chifres, maquiagens "feias", roupas escuras, perucas variadas, essa era foi com certeza a que tratou sobre identidade. Seus fãs se sentiram acolhidos com essa liberdade de expressão que explora o repugnante, a Born This Way Foundation deu espaço de fala e apoio para pessoas LGBT e ela fez discursos pró-direitos LGBT em Washington[9], em Portland[10] e em Roma[11].

A potência de sua arte está em evidenciar, com elementos de reiteração, repetição e exagero, esse sistema opressor, além de incluir aqueles que se desviam dos padrões. Um dos muitos exemplos é na música Hair, que ela brada "Quero que você me ame por quem eu sou [...] Vou morrer sendo livre como meu cabelo [...] Não sou esquisita / Apenas estou aqui tentando ficar 'de boa' nas ruas", ou seja, ela cita o cabelo, que é tão plástico e móvel para ela, associando à sua identidade, sua performance e sua performatividade, o que remete a todas as identidades que passam por dificuldades diárias por conta de seus "corpos estranhos"[12].

Em sua arte, seus shows e sua performance, o monstro é (na verdade) aquele que oprime os queer. A Fama com aspecto monstruoso é o discurso que reifica e reitera as identidades idealizadas, um aspecto marginalizador de corpos estranhos. A Fama é o próprio sistema hegemônico e normativo. Heteronormatividade que constrói os corpos em seu discurso nomeando-os "segundo as marcas distintivas de uma cultura"[13] e fala o corpo do outro a partir de uma visão dentro de uma moldura normativa.

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A categoria de monstro, apesar de ser inteligível e gerar reconhecimento, se refere à aberração, ao que deve viver nos limites sociais, "monstro é uma categoria de classificação que opera no limite das categorias [...] mas ainda assim é uma categoria de reconhecimento social [...] operando a violência, o sarcasmo, o nojo e a desqualificação" (LEITE JUNIOR, Jorge)[14]. Quando Gaga se refere aos monstros, ela não só reitera esse pensamento como o usa num contexto subversivo para afirmar que a identidade "monstro" é o normal, não o mal que deve ser desrespeitado e marginalizado.

Esse desrespeito é evidente no campo jurídico. No seminário citado, Judith Butler fala que se o sistema perpetra violência[15], deve se pensar em formas extrajurídicas, pois as jurídicas perpetram violência também[16]. Guacira afirma que o direito não é queer[17] e o Direito gera pouca subjetividade para Marie Hélene Sam Bourcier[18]. As assertivas são muito intrigantes, mas confiar no sistema jurídico pode ser uma saída ontológica viável para mudarmos nossas atitudes frente ao Outro. Devem-se potencializar as linhas de fuga no sistema, para que se criem rizomas queer e que ele seja transfigurado em uma normatividade pronta e aberta para essas subjetividades. A emancipação está também no Direito, pois há ferramentas jurídicas para que o sistema acolha essas diferenças sem negá-las direitos[19].

O direito familiar e sucessório ainda é fonte para pensar a transmissão de propriedade, que querendo ou não, ainda será objeto de discussão de famílias queer (poliamorosas, lésbicas, gays, trans etc.). Ele pode ser mais aberto, e tem sido cada vez mais principalmente por causa da coragem de juristas de permitirem um reconhecimento jurídico a formações familiares que não são cis-heterossexuais[20]. Mesmo que ainda haja criações monstruosas, como o Estatuto da Família, que tenta obrigar a existência de apenas uma forma reconhecida juridicamente como família, desconsiderando outras formações familiares.

Lady Gaga, portanto, nos evidencia esteticamente um rumo ético pelas vias do reconhecimento e da aceitabilidade das individualidades, de forma coletiva, pois esses sujeitos já existem, ocupamos um espaço público em comum e as diferenças podem ser reconciliadas adequadamente[21]. A obra da artista evidencia que o verdadeiro monstro é quem desrespeita e prefere o ódio ao amor, a segregação ao acolhimento, o xingamento ao entendimento.

A "estética monstro" subverte a estetização padronizada da indústria cultural, que reitera imagens e seus poderes. As "imagens como poderes"[22] hegemonizam a forma de pensar o corpo "normal", o que delimita e exclui o diferente, estabelecendo uma "normatividade imaginária"[23]

Falta reconhecer, respeitar, conhecer, compreender, perguntar (a si mesmo e ao outro), o que ecoa na busca de efetivação de direitos, em uma carnavalização de sentidos jurídicos[24] e no respeito às diversidades queerporais.

Uma revolução queer talvez não precise necessariamente do Direito[25], mas o Direito precisa do queer para não ser um monstro.


Notas e Referências:

[1] Texto integral disponível em: <http://susyshock.blogspot.com.br/2008/03/yo-monstruo-mio.html>. Acesso em 14 de setembro de 2015.
[2] LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 7.
[3] A centralidade das questões queer está nisso, no gênero e na sexualidade, entendendo que o sistema heteronormativo é reproduzido em diversos planos de imanência e em vários contextos (micro)políticos, portanto entende que há um ideal social com tendências globalizantes de um homem heterossexual cisgênero branco rico sem deficiências e de preferência europeu.
[4] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=xtgGLRuXcv0>. Acesso em 07 de outubro de 2015.
[5] Monstro está ligado a mostrar (monstra, monstrum, monstrare) e é aquele que vai mostrar algo, sendo que é uma "marca hiperbólica fora da ordem", o que acaba sendo uma nova ordem.
[6] Para uma elucidação maior sobre isso, ela fez uma performance no lançamento de seu perfume THE FAME, em que pessoas pegavam em sua mão enquanto dormia dentro de um quarto construído numa estrutura enorme, com um relógio marcando 15 minutos. Além de sua grande aproximação com Marina Abramovic, o que rendeu à artista mais jovem conhecimentos sobre estar presente e sobre o poder do corpo.
[7] Em um vídeo de intervalo de sua primeira turnê, ela citava a monstruosidade se referindo à fama, tema principal do seu segundo disco ou EP "The Fame Monster". Sendo que em todos os seus álbuns há um foco sobre a sexualidade e as formas desviantes de desejo.
[8] Essa transição começou a ser realizada no VMA de 2010, na qual ela foi com o famoso vestido de carne, o qual, para ela, era uma crítica à forma como tratam seu corpo como carne, de forma abjeta.
[9] Um vídeo desse discurso pela Igualdade  disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=QAfPu22tJrY>. Acesso em 25 de setembro de 2015.
[10] Nesse discurso ela afirma que "igualdade é a costela dos Estados Unidos da América". O discurso completo pode está disponível em<https://www.youtube.com/watch?v=MoqOvFJ5-0c>. Acesso em 25 de setembro de 2015.
[11] Vídeo do discurso disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=HyB9qsRNjIM>. Acesso em 25 de setembro de 2015.
[12] Termo usado por Guacira Lopes Louro em seu livro "Um Corpo Estranho - Ensaios sobre sexualidade e teoria queer".
[13] LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 91.
[14] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=xtgGLRuXcv0>. Acesso em 07 de outubro de 2015.
[15] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=pPEVDl4Ihi8>. Acesso em 07 de outubro de 2015.
[16] No livro Frames of War a autora deixa mais claro que ela não nega e não exclui a necessidade das formas jurídicas, pois deve-se expandir as "molduras" existentes, mas que elas não devem ser o maior foco da luta queer. Cf. BUTLER, Judith. Frames of War: When is life grievable?. Nova York e Londres: Verso, 2010, p. 162.
[17] LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
[18] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=an0jItbxTHY&feature=youtu.be>. Acesso em 07 de outubro de 2015.
[19] Direitos civis (herança, guarda dos filhos, curatela, nome civil e sexo alterados no registro civil etc.), direitos na esfera criminal (ala do presídio correta para pessoas transexuais e travestis, criminalização das fobias aos LGBT's), direitos trabalhistas (em casos de demissão por discriminação por identidade de gênero ou orientação sexual, assédio moral, assédio sexual etc.), direitos sociais (à saúde, moradia, lazer...), por exemplo.
[20] É notória a evolução do casamento homossexual no Brasil, que culminou na Resolução n. 175, que obriga a realização desses casamentos, mas também há o caso da tabeliã que registrou a união estável entre três pessoas, disponível em < http://www.ibdfam.org.br/noticias/4862/novosite>. Acesso em 25 de setembro de 2015.
[21] BUTLER, Judith. Frames of War: When is life grievable?. Nova York e Londres: Verso, 2010, p. 163.
[22] WARAT, Luís Alberto. Por quem cantam as sereias, in ______. Territórios Desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p.494.
[23] Ibidem, p. 524.
[24] A carnavalização dos sentidos é muito explorada em A ciência jurídica e seus dois maridos de Luis Alberto Warat, em sequência de seus estudos em semiótica e linguística, que analisa como, epistemologicamente, subverter e desconstruir o "senso comum teórico" - termo bem estudado no textoSaber crítico e senso comum teórico dos juristas.

[25] Leandro Colling verificou em sua pesquisa que os grupos queer são dissidentes em relação ao movimento LGBT, seja por questões econômicas, ideológicas, culturais e performativas. Esses movimentos queer tentam romper com muitas normatividades e não centralizam suas lutas apenas em questões jurídicas fazendo lobbys com governos pretendendo uma normalização das vidas queer. Esse estudo detalhado se encontra no seu livro Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer.


Gustavo Borges Mariano

. Gustavo Borges Mariano é estudante da graduação de Direito da Universidade Federal de Goiás, coordenador discente do grupo de Direito e Arte KENOSIS, estagiário da DPU-GO e surrealista. Email: gustavobmariano@gmail.com . .


Imagem Ilustrativa do Post: Lady GaGa - Monster Ball - Nashville, TN // Foto de: Philip Nelson // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/philipnelson/5642320509

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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