A tragédia que aconteceu na cidade de São Paulo[1] evidencia as nossas falhas graves como seres humanos, num primeiro momento, e como instituição democrática, em outro. O direito à existência, para humanos e não humanos, o cumprimento de um objetivo republicano que é a solidariedade, o direito às cidades sustentáveis (artigo 2º, I da lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade) são todos instrumentos ideológicos os quais pouco tem servido para se desenvolver as dimensões de alteridade, de proteção às diferenças, de diálogos – sejam os cotidianos, sejam os governamentais. A coruja de Minerva, citada por Hegel[2], ainda não levantou voo em direção ao crepúsculo do entendimento de nossa humanidade comum presente em todas as formas existenciais.
Por que insisto na perspectiva ideológica? Por um simples fato: a exigência temporal das metamorfoses de serem entendidas no seu grau de complexidade e identidade não demanda tempo de compreensão sobre a sua condição ontológica. Ao contrário, algo que antes era impensável, impossível se tornou, no momento presente, de “carne e osso”. O fluxo dinâmico das realidades e as semânticas sociais exigem respostas satisfatórias especialmente quanto às promessas enunciadas pela lei que, nem sempre, acontecem.
As demandas pelas Cidades Inteligentes e Sustentáveis não podem ser fundadas em ideologias de exclusão, mas em utopias includentes. O cenário posto na cidade de São Paulo, por exemplo, era uma tragédia anunciada, simplesmente esperando o tempo se esgotar para evidenciar um resultado humano e jurídico nefasto. Novamente a pergunta: Por que jurídico? Não faltam leis no Brasil que determinam a preservação de direitos sociais como à moradia: artigo 6º, artigo 23, IX, artigo 182, bem como, de modo complementar, o artigo 203 todos da Constituição Federal. Além do Estatuto da Cidade já mencionado, cita-se, ainda, a Lei 11.888/2008 que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social.
A lei está posta, mas não é suficiente para mitigar as desigualdades[3], especialmente quando se observa pela atitude do Supremo Tribunal Federal que os Direitos Fundamentais podem ser configurados segundo uma atividade hermenêutica - ainda mais - solipsista. Nenhuma forma de prescrição jurídica pode ser fundada sem que haja, minimamente, um sentido de utilidade social – validade ética[4]. Aos poucos, observa-se a integralidade da vida na medida em que o conviver já na se satisfaz apenas nos contornos antropocêntricos. Por esse motivo, a engenharia de uma Cidade Sustentável e Inteligente inicia-se no cumprimento formal (dimensão legal) e material (dimensão social) do convívio humano.
A emergência da Cidade Sustentável e Inteligente não pode sinalizar o surgimento, o aparecimento de outra condição ideológica, agora manifestada, principalmente, na sua vertente estética. A necessidade de uma Cidade Sustentável e Inteligente se manifesta contra todas as formas de desigualdade, de inoperância hermenêutica e pratica das legislações, de apatia e intolerância contra o estrangeiro, de irresponsabilidade frente aos deveres de solidariedade, de justiça com todas as formas de vida.
Nesse caso, um dos elementos principais de desenvolvimento e Sustentabilidade do planejamento desses centros urbanos é a interconectividade, seja pela dimensão relacional, seja pela dimensão tecnológica. Essa teia, essa rede de várias formas de comunicação e proximidade demandam, como elemento compreensivo de seu estatuto ontológico, a Ecologia da Cidade. O devido planejamento, tendo como ponto central a proteção de todas as vidas, estabelece a simbiose necessária para que haja outras condições ao aperfeiçoamento civilizatório. Sem esse esclarecimento, toda vida perece e se torna mercadoria nessa sociedade de consumo[5].
A urgência de uma Cidade Sustentável e Inteligente - entendida como o desvelar cotidiano das alteridades, do maravilhamento no existir ocorrido pelos vários convites feitos em cada esquina, em cada academia, em cada associação – sinaliza novos modelos urbanos os quais se reinventam ao tecerem redes de cuidado. Essa é a pedra angular de cidades que não se expandem tão somente para atender critérios econômicos, mas adotam outros indicadores capazes de identificar um Planeta urbano que está sempre em movimento. Veja-se, por exemplo, os indicadores das cidades sustentáveis:
Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.129/3499
Aliás, insisto: a elaboração, compreensão, viabilidade e melhoria das Cidades Sustentáveis e Inteligentes é uma utopia permanente – social e jurídica – porque emerge como metamorfose de nosso tempo. Dito de outro modo: as Cidades Sustentáveis e Inteligentes representam – em seus modelos e significados plurais – um desafio de mitigar as desigualdades, as violências, a negação ao desenvolvimento e empoderamento humano – desde as primeiras fases da vida – ao reconhecimento da Natureza como “ser-próprio” (biocentrismo, biofilia, por exemplo).
Os espaços urbanos que se reinventam e estão interconectados demonstram a fragilidade de leis já postas e que não conseguem acompanhar a velocidade dessas transformações - seja na proposição de leis, na sua interpretação ou aplicação. As Cidades Sustentáveis e Inteligentes reivindicam não apenas responsabilidade individuais, sociais ou políticas, mas, ainda, as de caráter comunitário porque é nesse fluxo de socialidade, de relações que todas os demais critérios utilizados para tornar viável, mais e mais, o planejamento dos centros urbanos se tornam “de carne e osso”. Eis o desafio de uma Ecologia das Cidades na medida em que todos estamos inseridos nessa “aldeia global”[6].
A tragédia de São Paulo, como afirmei, era uma realidade posta, um resultado previsto. Esse fato é o oposto daquilo no qual se constitui, aos poucos, como emergência (e urgência) de realidade até o ano de 2020. Ao se gerar a negação desse direito à existência no planeta urbano, de não reconhecer sua capacidade permanente de reinvenção e se insistir nas cidades genéricas[7], é possível anunciar mais uma morte: a do Estatuto da Cidade.
NOTAS
[1] Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/moradores-do-predio-que-desabou-no-centro-de-sp-dormem-na-rua-e-sofrem-com-frio-fome-e-furtos.ghtml>. Acesso em: 30 de abr. 2018.
[2] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Linhas fundamentais da filosofia do direito: ou Direito natural e ciência do Estado em compêndio. Tradução de Paulo Meneses e outros. São Leopoldo, (RS): Editora da UNISINOS, 2010, p. 44.
[3] “A avaliação das desigualdades é um exercício de investigação científica, mas, especialmente, de imersão na realidade social para se constatar a ausência de condições para o exercício da liberdade. Mais do que a simples averiguação, trata-se de des-velo acerca do pouco interesse sobre o desenvolvimento desta cumplicidade que nasce pelo vínculo antropológico comum. A integração de dados mais amplos do que as estatísticas numéricas denotam a formação cultural de um grupo social, o acesso à educação, o exercício da participação com suas formas de interação e influência, a circulação das informações e a própria publicidade das ações do Estado em seus diversos níveis de atuação, a proposição de políticas estratégicas de promoção humana, desenvolvimento sustentável e integração social sinalizam para a necessidade de intensificar formas alternativas de correção das desigualdades”. ZAMBAM, Neuro José; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. A teoria da justiça em Amartya Sen: temas fundamentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016, p. 67/68.
[4] MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1998, p. 56.
[5] “Se a vida s esgota em consumo, o consumo esgota a vida. Quando o que está é a miragem, miragem é apenas uma imagem que se esvanece...fruto ilusionista da mente...aquilo que embriaga e entorpece, aquilo que entorpece também mente. Ter mais...Poder mais...Interesses e egoísmos, necessidades...Vontades e desejos, carências...Eis os ventos que alimentam as pás deste moinho. Eis o que alimenta a roda-viva deste jogo. Enquanto persistirem, as rodas apenas girarão para um lado. BITTAR, Eduardo C. B. Criptografando pensamentos: aforismo e notas rudimentares – parte I. Consumação. In: BITTAR, Eduardo C. B.; MELO, Tarso de. Vidas à venda. São Paulo: Terceira Margem, 2009, p. 7.
[6] “A aldeia global está sendo desenhada, tecida, colorida, sonorizada e movimentada por todo um complexo de elementos díspares, convergentes e contraditórios, antigos e renovados, novos e desconhecidos. Formam-se redes de signos, símbolos e linguagens, envolvendo publicações e emissões, ondas e telecomunicações. Compreendem as relações, os processos e as estruturas de dominação política e de apropriação econômica que se desenvolvem além de toda e qualquer fronteira, desterritorializando coisas, gentes e idéias, realidades e imaginários”. IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 125.
[7] “As nossas metrópoles periféricas ganham contrastes ainda mais fortes, já que além dos processos descritos, apresentamos, concomitantemente, as nossas periferias com ocupações ilegais de áreas de proteção ambiental através de um espraiamento urbano não planejado, ilegal, mas real. E, novamente, este padrão se repete em São Paulo ou em Lagos, na Nigéria. Assim, a globalização oferece mais um elemento contra a imageabilidade das cidades pelos seus cidadãos: a generalidade de espaços”. LEITE, Carlos. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012, p. 58.
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