Por Valéria Magalhães Schneider - 15/07/2016
Maria da Penha, mulher símbolo da luta contra a violência doméstica, teve uma história não muito diferente de grande parte das mulheres do mundo. Biofarmacêutica, era casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros, o qual tentou matá-la duas vezes em 1983. Na primeira vez, Maria levou um tiro nas costas enquanto dormia, deixando-a paraplégica; na segunda tentativa, que aconteceu apenas alguns meses depois, foi empurrada da cadeira de rodas para ser eletrocutada no chuveiro.
Talvez uma das poucas diferenças dela para as demais mulheres vítimas diariamente de agressões no Brasil, é que Maria da Penha sobreviveu, e lutou por mais de 20 anos pela punição de seu agressor. A justiça brasileira deixou o caso sem solução por muito tempo e sem qualquer justificativa para a demora do julgamento. Então, com a ajuda de ONGs, Maria conseguiu levar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), a qual, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica.
No processo da OEA, o Brasil restou condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recebendo a recomendação de criar uma legislação adequada a esse tipo de violência. Daí nasceu a Lei n. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes.
Conforme dispõe seu artigo 1º, o objetivo de tal diploma consiste em criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher em acordo com os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, observando-se que a conceituação de violência doméstica se refere a qualquer ação ou omissão capaz de prejudicar o bem-estar, integridade física, psicológica, bem como a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Essa violência pode ser cometida dentro ou fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em relação de poder com a vítima, incluindo, inclusive, as pessoas que estejam exercendo as funções de pais, embora não possuam laços de sangue[1].
A violência doméstica contra a mulher se diferencia das demais, pois é considerada “violência de gênero”, ou seja, a conduta não é motivada apenar por questões pessoais, e sim como forma de expressão da hierarquização estruturada em posições de dominação do homem e subordinação da mulher[2].
Quanto, especificamente, à violência doméstica contra mulher, a Lei 11.340/06 a classifica em quatro tipos: física, psicológica, patrimonial e moral[3].
Com relação aos dados estatísticos nacionais acerca do assunto, apesar de saber ser esse um fenômeno antigo e relativamente comum, os primeiros registros foram feitos no final do século XX, e já nesse período, do total de casos de violência doméstica, 63% tinham como vítimas as mulheres. Há dados que demonstram que, ainda hoje, cerca de 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas a essa violência[4].
A importância da Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica contra a mulher é extremamente significativa, porquanto trouxe repercussão e visibilidade a um assunto por muito tempo negligenciado, silenciado e naturalizado. Entretanto, é questionável se o uso do direito penal se mostra adequado na busca de uma mudança de comportamento social, bem como no empoderamento feminino.
Como bem explica Vera Regina Pereira de Andrade[5], vive-se uma crise de legitimidade do sistema penal, evidenciada pelo constante descumprimento das promessas depositadas por ele, quais sejam: a) de proteção aos bens jurídicos; b) de combate à criminalidade através da retribuição da prevenção geral – intimidação dos criminosos através da pena abstratamente cominada na Lei Penal – e da prevenção especial – ressocialização dos condenados através da execução da pena; c) de aplicação igualitária das penas. Tais fatores constituem meramente uma pequena parte de uma crise mais ampla, configurada diante do monismo jurídico, um modelo de Direito da atualidade.
Esse modelo identifica o Direito como a própria Lei, ou seja, como o Direito Positivo Estatal, razão pela qual se acredita em que a todo problema social deve há uma solução legal corresponde, e tal fenômeno também ocorre quando se trata de violência doméstica, implicando a tipificação das condutas em uma legislação própria e com penas severas.
Apesar de visualizada nos anos 80, ainda hoje persiste uma ambiguidade na estrutura e na aplicação Direito Penal: ao mesmo tempo em que existe um movimento minimalista do sistema, que busca uma abertura do controle penal para a sociedade, manifestando-se através de processos de descriminalização e despenalização da Justiça Penal, há o fortalecimento e a expansão desta, com uma demanda penalizadora contra a criminalidade do colarinho branco, dos novos movimentos sociais. Existe, ainda, uma demanda criminalizadora radical, dos chamados movimentos de “Lei e Ordem”[6].
Os movimentos feministas[7] vivem esse paradoxo, pois, ainda que busquem descriminalização de muitos tipos penais, como, por exemplo, o aborto, por outro norte reivindicam a criminalização de condutas que até então não existiam, como a violência doméstica. Tal comportamento se revela paradoxal, porquanto essa demanda acaba por reunir um dos movimentos mais progressistas do país com um movimento reacionário: o da “Lei e Ordem”.
Maria Lúcia Karam[8] chama esse movimento - em que os grupos feministas e outros diversos reivindicam uma reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal – de“esquerda punitivista”.
Além de o movimento feminista se inclinar para uma opção criminalizadora, “sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal como susposto instrumento de realização daqueles direitos fundamentais, de proteção das mulheres contra descriminalização e opressão resultantes de relações de dominação” [9], ela ainda cega as mulheres, pois faz com que não enxerguem que o rigor penal acaba, mais uma vez, reafirmando e eternizando a ideologia patriarcal.
A superproteção dada à mulher acaba por discriminá-la, pois impossibilita o protagonismo da sua parte no processo, relegando-a uma posição passiva e vitimizante, bem como inferiorizando-a, por considerá-la incapaz de tomar suas próprias decisões.
Tal constatação fica evidente ao analisarmos o julgamento do Supremo Tribunal Federal que afastou a exigência de representação da vítima, tornando incondicionada a iniciativa do Ministério Público nas ações penais que tratam de lesão corporal leve praticada com violência doméstica contra mulher. Essa decisão coloca a mulher em situação de desigualdade com os demais ofendidos, partindo do principio de que não é capaz de fazer escolhas certas sozinha. Ou seja, mais uma vez não se dá voz à mulher, ela é silenciada e esquecida. Quem devia ser protagonista, acaba, novamente, como mero figurante em todo processo.
É preciso buscar respostas positivas para o combate do problema, ou seja, soluções que viabilizem condições materiais para lidar com essa questão, pois as respostas negativas, que se preocupam apenas em proibir condutas, fazendo com que os homens temam as sanções impostas, não detêm a eficácia suficiente. Os números mesmo demonstram: os índices de homicídios contra mulheres permanecem praticamente iguais entre os períodos de 2001-2006 e 2007-2011, sendo, respectivamente de 5,28 e 5,22 a cada 100 mil mulheres[10].
Por fim, uma das maiores dificuldades se encontra no momento da aplicação da pena. Por se uma medida paliativa, ela não se preocupa em criar mecanismos a fim de evitar que mais mulheres sofram dessa violência, ou seja, não atua na raiz do problema, apenas nos efeitos, tentando, na medida do possível, minimizá-los. Entretanto, não se pode esquecer que o objetivo deve estar centrado em diminuir o número de vítimas, e não em aumentar o número de presos em decorrência da violência doméstica praticada contra a mulher.
Notas e Referências:
[1] DAY, V. P.; TELLES, L. E. B.; ZORATTO, P. H. et al. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. In: Revista de Psiquiatria. Rio Grande do Sul, Apr. 2003, vol.25 suppl.1.ISSN 0101-8108.
[2] KARAM, Maria Lúcia. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. 2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
[3] São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
[4] SOARES, B. M. A violência doméstica e as pesquisas de vitimização. In: II Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/confest_e_confege/pesquisa_trabalhos/arquivosPDF/M705_01.pdf Acessado em: 11 de julho de 2016.
[5] ANDRADE, Vera Regina Pereira. Da mulher como vítima à mulher como sujeito. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.
[6] ANDRADE, Vera Regina Pereira, 1999.
[7] Apesar da generalização, não estamos nos referindo apenas a um grupo, uma vez que as mulheres não formam um grupo homogêneo, cada grupo irá apresentar uma abordagem diferente do outro.
[8] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitivista. 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
[9] KARAM, Maria Lúcia. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. 2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/>. Acesso em: 10 jun. 2016.
[10] KARAM, Maria Lúcia, 2015.
. Valéria Magalhães Schneider é Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Pesquisadora do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” e Estagiária na 5ª Vara Criminal da Comarca da Capital/SC.
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