Em tempos de criminalização da defesa, a acusação está cada vez mais ditatorial, impondo posicionamentos como se fossem uma verdade inconteste. Os recursos e as ações autônomas de impugnação (habeas corpus, mandados de segurança) são vistos como formas de “atrapalhar” uma ideia totalmente deturpada de justiça.
Esta semana participei de um julgamento no Tribunal do Júri em que o Promotor de “Justiça” falaciosamente afirmou que o julgamento demorou em virtude dos habeas corpus impetrados pela Defensoria Pública, como se tal remédio constitucional suspendesse o andamento processual. Exercer adequadamente a defesa é um problema, mas mentir deliberadamente aos jurados é legítimo? Afirmou-se, ainda, que a atuação defensorial é um dispêndio de tempo e de dinheiro do Judiciário brasileiro, posto que já se saberia o resultado das demandas. Ora, que sistema é esse em que não se pode debater o Direito? Ademais, as cartas já estão marcadas? Já se sabe de antemão o resultado? E esse resultado é sempre favorável à acusação, de modo que a defesa não possa levar seus pleitos ao Poder Judiciário? Nada mais inadequado.
Nesse mesmo contexto, alegou o órgão acusatório que questionar decisões proferidas pelos tribunais seria uma atitude ditatorial da defensora. Pois bem, ditadura é justamente não poder questionar decisões proferidas por magistrados e Cortes, devendo ser possível levar as questões até mesmo a instâncias internacionais, se necessário.
Nada disso pode ser considerado desperdício da movimentação da máquina pública. Na verdade, desperdício são os vários casos de acusação infundada (se é que se pode falar em alguma acusação devida – na minha opinião, não há como), de processos que se arrastam sem quaisquer elementos probatórios, de prisões cautelares desprovidas de qualquer fundamento. Mas, quando se trata da vida alheia, não se fala de desperdício; desconsidera-se absolutamente. Fala-se em desperdício propriamente quando se está a tentar assegurar garantias a esses mesmos casos de violação de direitos. Situações de invasão de domicílio, de busca pessoal decorrente de “fundada suspeita” baseada em critérios lombrosianos, de prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal por mera presunção de que o réu vá se evadir etc. Todas, como regra, legitimadas pela acusação.
E, mesmo assim, enche-se a boca para se dizer “defensor da sociedade” e promotor de “jus-ti-ça”. Esquece-se, no entanto, que a sociedade é composta justamente por essas pessoas que são violadoramente imputadas e que a ideia de justiça é muito, mas muito apartada da de condenação.
Usa-se o artifício de que o promotor de justiça é, na verdade, um defensor, porque não se contenta a acusação com o papel que exerce e precisa fingir proceder também ao papel de defesa. Pois, se pretende ser defensor, que saia dos quadros do Ministério Público para advogar ou prestar concurso para a Defensoria Pública. No processo penal, o Promotor de Justiça exerce a acusação, embora nem sempre peça a condenação (esse “nem sempre” deve ser lido como “quase sempre”). Anunciar-se como defensor é mera estratégia para conquistar mais adeptos, uma impostura[1] que não pode ser legitimada. Sobre o tema, interessa destacar o seguinte excerto:
Difunde-se como argumento retórico o fato se que se trata de acusador que pode requerer a absolvição. Logo, é imparcial. Essa trampa lógica – paralogismo – é manejada como argumento de convencimento por certa parcela do Ministério Público, especialmente no Júri. O fato de poder requerer a absolvição não é causa suficiente para que se desimcumba das funções constitucionais, no caso, o exercício da ação penal. Mas o argumento é forte do ponto de vista da influência e contaminação do corpo de jurados.
A artimanha opera-se da seguinte forma: (a) transfere o lugar do jogador-acusador para o de defensor justo, neutro e consciente da sociedade; (b) em que a função é a de procurar “Justiça”, tanto que o nome é o de “Promotor de Justiça” e não “Promotor de Acusação”; (c) afirma que já requereu a absolvição muitas vezes, sempre em nome da Justiça; (d) com isso gira seu lugar de fala (de interessado para imparcial) e, no caso, requer a condenação por Justiça também. O script é banal e convence o auditório, especialmente pela performance do jogador-acusador e sua eloquência, bem assim o gestual.
Serve também para sugerir lugar de testemunha isenta, para além de sua função, arregimentando o argumento de autoridade, para persuadir os jogadores. Quando precisa se valer dessa argumentação é porque falta prova ou joga sujo. Perceba-se que desloca o foco na prova para apresentar-se como meio de prova. [2] (grifou-se)
Valendo-se de uma ideologia condenatória, como se fossem de fato donos de uma verdade, e proferindo discursos do cunho “até as pedras sabem”, membros de uma instituição que outrora tanto – iludidamente – admirei vêm se apartando cada vez mais das provas do processo para fazer um direito penal do inimigo. Buscam tolher a credibilidade da defesa – em total afronta à Constituição que dizem defender – como artifício para burlar a falta de provas. Estão mal-acostumados a um sistema em que foram sempre privilegiados, ranço de um processo inquisitório que insiste em vigorar no Brasil.
Embora, excepcionalmente, haja presentantes ministeriais que se apartem dessa atuação mesquinha e ajam de modo exemplarmente compatível com a Constituição, em regra verifica-se que, no processo penal, o Ministério Público não se adequou ao Estado Democrático de Direito, o que só se pode lamentar e veementemente combater.
[1] PRACONTAL, Michel de. A impostura científica em dez lições. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 24.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis/SC: Empório do Direito, 2016, p. 463.
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