A distorcida faceta do Tribunal do Júri na televisão brasileira  

16/11/2018

 

Sempre foi de se esperar que a teledramaturgia brasileira visasse promover o entretenimento apresentando as mais variadas histórias, ora inspiradas em acontecimentos reais, ora amparadas apenas na criação de seus escritores. Nesse contexto é possível parar para refletir sobre aquela velha questão, até então sem uma resposta afirmadamente correta: a arte imita a vida, ou a vida imita a arte?

Acompanhando as mais diversas histórias e estórias bombardeadas pela mídia televisiva nacional, ainda que de forma superficial, por vezes pode-se notar tramas que trazem à baila questões comumente destacadas no noticiário, tais como: tráfico de pessoas, armas, drogas; corrupção; crimes de sangue, patrimoniais; abuso de crianças e idosos; em fim, uma série de acontecimentos cotidianos que, se explorados de uma forma adequada, além do entretenimento objetivo de estilo, podem servir de utilidade pública aos espectadores, como: formas de prevenção, comportamento, diligência, etc..

O que não se pode admitir é o desserviço à comunidade com a apresentação de aspectos destorcidos da realidade, inclusive de modo a desinformar o espectador, em um verdadeiro desperdício da formidável oportunidade de educá-los.

Um sem fim de situações divorciadas da realidade podem ilustrar os fatos mencionados alhures, porém um em específico chama a atenção pela aberrante distorção empurrada "goela abaixo", tamanha sua discrepância com o que ocorre realmente nos fóruns brasileiros de nossas inúmeras comarcas.

Recentemente a teledramaturgia lançou mão de uma obra que contava a história de uma perversa mulher, senhora de uma mina de esmeraldas, acusada de crimes de homicídio, tendo sido levada a júri popular para ser julgada perante seus pares sociais. A trama ocorreu no Estado do Tocantins, mais precisamente na região do Jalapão, riquíssima em belezas naturais.

No deslinde do julgamento em plenário, foi muito difícil identificar se se tratava de um procedimento do Júri no Brasil ou nos Estados Unidos da América. Isso pelo fato de que ocorrências durante o julgamento trazia à memória alguns filmes de produção "hollywoodana", amparados no direito consuetudinário daquele país e demais características, tais como: a forma da abordagem das testemunhas, o comportamento dos advogados e promotores, a função do juiz presidente, etc.

O Tribunal do Júri brasileiro[1], atuamente competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, é amplamente revestido de formalidades pois traz consigo toda carga genética do direito europeu, de onde origina nossas disposições legais em decorrência do Brasil Colônia. Dentre as tantas formalidades pode-se destacar o uso de togas[2] pelos agentes da corte, tais como: juiz, promotor e advogado.

Na atração televisiva em comento, o advogado de defesa apresentou-se em uma toga preta acompanhada de uma faixa verde por sobre a região do ventre, causando uma grande estranhesa por parte dos estudantes e militantes do Direito, que possívelmente pensaram tratar-se de defesa promulgada por um formando em medicina, eis que a cor identificadora desse curso é a verde, diferente do direito, que é vermelha!

Talvez quisera o autor da trama fazer alguma homenagem à esmeralda, pedra preciosa que aparece diversas vezes como motivo de contendas no enredo da história... Quem sabe!?!?!?

Não foi abordada a forma pela qual se compôs o conselho de sentença[3] para o julgamento, talvez por não ser atrativo aos espectadores, embora a escolha possa ser eletrizante quando se exige justificativa para a recusa a partir do 3° jurado, seja pela acusação ou pela defesa. Notou-se surpreendentemente, no entanto, o acerto no número de componentes, ou seja, 07 (sete) jurados como manda a lei.

É mandamento legal, também, que as testemunhas fiquem fora do plenário[4], de modo a não ouvir os depoimentos umas das outras, numa tentativa clara de proteger a verdade quando de suas atuações.

Pois bem. O que se viu na obra foi algo totalmente descasado da lei, quando todas as testemunhas assistiam ao julgamento juntas em plenário, inclusive tendo uma delas sido constantemente alvo de acusações por parte do advogado de defesa da ré.

Ainda em relação às testemunhas, acertadamente as perguntas lhes eram feitas diretamente pelas partes, sem a intervenção do juiz como no procedimento criminal comum[5]. Entetanto notou-se que as partes utilizavam todo o tempo da mais pura retórica para tendenciar as respostas de suas perguntas, bem como elucubrações a seu favor sobre as respostas que recebiam, sempre em detrimento à tese contrária. Isso sem sombra de dúvidas seria motivo para intervenção do juiz presidente[6] e quiçá dar azo à anulação do julgamento.

A votação dos quesitos[7], oportunidade em que os jurados demonstram secretamente sua opinião acerca das teses defendidas e dos testemunhos, segundo a lei vigente, deve ocorrer em sala secreta, de modo a preservar o mandamus constitucional do sigilo dos veredictos[8]. Todavia na obra em comento a votação ocorreu em plenário, sem que os quesitos fossem lidos, dando a entender que deveriam votar apenas quanto a culpabilidade da ré, deixando de explorar eventuais (e existentes) qualificadoras, causas de aumento ou diminuição de pena e etc., o que fatalmente levaria à anulação em um julgamento verídico.

Por fim, mas não menos intrigante, foi levantada pela defesa uma Moção em meio ao proferimento da sentença pela juíza presidente, no intuit de submeter aleatoriamente a ré a um exame psiquiátrico clínico, ocorrido também em plenário, fato esse que culminou na condenação de internato em manicômio judicial.

Tudo isso seria maravilhoso se a mencionada Moção fosse prevista em lei; se a tese da defesa houvesse ao menos mencionado, tempestivamente, a insanidade mental de sua assistida; e se um exame psiquiátrico pudesse ser realizado em um estalar de dedos!

É de se salientar, no entanto, que tudo não passou de uma ficção pela qual provavelmente o autor, que diga-se de passagem merece todo nosso respeito, apenas quis que sua vilã tivesse um julgamento para justificar seu fim em meio à trama, sem deter-se a detalhes jurídicos que certamente passariam (como passou) despercebido pela esmagadora maioria dos espectadores.

Todavia não podemos olvidar de que estamos vivendo um momento em que nossas instituições legais estão desmoralizadas por uma série infindável de acontecimentos indignantes, explorados copiosamente pela mídia em geral. Assim, qualquer oportunidade de se divulgar a forma correta do funcionamento de nossas entidades não pode ser desperdiçada.

Ademais, artifícios televisivos não faltariam para que o julgamento em plenário do Júri ocorresse na forma como manda a lei, sem que emergissem todas as incorreções aqui apontadas, de modo a não prejudicar a qualidade da obra e trazer o tão almejado entretenimento ao público.

Fica, então, nossa humilde ressalva aos produtores artísticos em geral para um maior compromisso com a realidade do funcionamento dos assuntos abordados, sobretudo aos que imprescindem de formalidades, bem como aos estudantes e militantes do Direito para que apurem seus filtros diante do que lhes são postos aos olhos.

 

Notas e Referências

[1] Artigo 5º, XXXVIII da Constituição Federal e Artigos 406 a 497 do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[2] Também conhecida por seu sinônimo: beca

[3] Artigo 463 e seguintes do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[4] Artigo 460 do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[5] Artigo 474, §1º, do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[6] Artigo 497, III, do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[7] Artigos 482 a 491 do Decreto-lei nº 3689/41 – Código de Processo Penal Brasileiro

[8] Artigo 5º, XXXVIII, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal

 

Imagem Ilustrativa do Post: courtroom // Foto de: 12019 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/courtroom-benches-seats-law-898931/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura