Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
[...] de onde viemos? Para onde vamos? E o que vamos comer hoje à noite? Se para dois terços da humanidade, a terceira questão é a mais importante, para nós, do Norte, os empanzinados do hiperconsumo, ela não é mais preocupação. Consumimos carne demais, gordura demais, açúcar demais, sal demais. [...] Para onde vamos? De cara contra o muro. Estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freio, que vai arrebentar contra os limites do planeta [...] com a nossa refeição desta noite garantida, não queremos escutar nada. (LATOUCHE, 2009).
A citação trazida acima ilustra com clareza o pessimismo de Latouche em relação aos rumos da sociedade em que se vive - a Sociedade de Consumo. Uma Sociedade na qual se vislumbra estímulos incessantes para que os consumidores busquem (inocuamente) satisfazer excessos.
Consumidores: é sobre eles que recai o foco da Sociedade de Consumo - ou, na contemporaneidade, do Hiperconsumo (LIPOVETSKY, 2007). São eles que devem atuar para mantê-la em curso. Parece redundante, mas não são todos que possuem a capacidade necessária para cumprir esse papel e vivenciar (ou desempenhar) o estilo de vida que define essa Sociedade[1], qualificado como “consumista”. Segundo Barber (2009), o Mercado de Consumo direciona seu foco para os “adultos de primeiro mundo”, pessoas as quais, em que pese possuam poucas necessidades “reais”, dispõem de renda suficiente para despender em produtos incessantemente criados com a finalidade de estimular necessidades novas, inventadas - ou as pseudonecessidades das quais trata Debord (1997). Pessoas aptas, portanto, a viver como consumidoras, movidas pela irracionalidade, pela emoção do consumo, dispondo-se a consumir e descartar, consumir e descartar...[2]
Esse comportamento, entretanto, não se manifesta por acaso: provém de alguns “ingredientes”, incansavelmente utilizados para que a lógica da Sociedade de Consumo mantenha-se imposta, tais como a publicidade - que cria o desejo -, o crédito e a obsolescência programada - que renova a necessidade de consumir [3] (LATOUCHE, 2009, p.17-18). Engendra-se, assim, contexto no qual vigora imperativo segundo o qual todas as experiências devem ser mercantilizadas (LIPOVETSKY, 2007).
A publicidade detém papel essencial nessa dinâmica, pois estimula o desejo pelo que não se tem e o desprezo pelo que já se possui (LATOUCHE, 2009, p.17-18)[4], culminando em tendência à fugacidade que se refere tanto à durabilidade dos produtos quanto à efêmera satisfação que proporcionam aos adquirentes[5]. A felicidade prometida pelos anúncios diuturnamente veiculados, portanto, é quantificável - medida na proporção em que serve aos interesses da Sociedade de Consumo.
E esta apresenta-se insaciável. Insaciabilidade que se revela nos comportamentos dos consumidores, que buscam a satisfação prometida pelo consumo de modo incessante, incansável, também insaciável[6], tendendo a visar ao excesso. Ao desnecessário. Ou, talvez mais do que isso: o consumo, de acordo com os ditames desta Sociedade, deve visar ao excesso.
Receoso das consequências que estariam potencialmente - ou umbilicalmente - atreladas a esse arranjo social[7], Latouche elabora proposta que corresponde justamente ao oposto do que se verifica naquilo que denomina Sociedade de Crescimento: o decrescimento, que, em síntese, corresponderia ao “[...] abandono do objetivo do crescimento ilimitado, objetivo cujo motor não é outro senão a busca do lucro por parte dos detentores de capital [...]” (LATOUCHE, 2009). Funcionaria como uma forma de ateísmo ao “[...] culto irracional e quase idólatra do crescimento pelo crescimento” (2009, p.6). Propõe, portanto, alternativas que poderiam culminar em uma sociedade que vive melhor, trabalhando e consumindo menos (2009, p.6) - em contraposição à atual, a qual, para o autor, prejudica a natureza, as gerações futuras e os consumidores, sacrificando o “bem-estar concreto” em benefício exclusivo dos “empreendedores do desenvolvimento” (LATOUCHE, 2008, p. 39-40).
Intenta, portanto, contestar a lógica que transformou o bem estar “vivido” em um “bem ter estatístico” (LATOUCHE, 2012), em uma sociedade na qual a compreensão de felicidade assumiria significado distinto daquele a ela conferido pela Sociedade de Consumo, estando, assim, desvinculada do consumo.
A partir das ideias acima expostas - e de um trecho, em particular, de Bem-vindo ao deserto do Real, de Zizek, emerge a reflexão acerca de uma necessária “distância segura do consumo”. No trecho em questão, o filósofo esloveno aponta a felicidade como a traição do desejo, refletindo a partir da Tchecoslováquia do fim da década de 1970 e na de 1980. As necessidades materiais à época não eram excessivamente satisfeitas, nas condições que se vivia o excesso de consumo poderia causar desequilíbrio daquele sistema social, assim, gerando infelicidade. De tempos em tempos era possível sentir o racionamento de alguns produtos nas prateleiras do mercado, falta de café, carne e aparelhos televisores por uns dois dias. Embora a vida continuasse haviam estes momentos de racionamento que alegravam as pessoas diante da disponibilidade dos produtos. O Outro desta relação situava-se no partido, deste modo era possível declará-lo como culpado pelo racionamento temporário de algum produto. O sonho, neste contexto, fixava-se no Ocidente consumista; que poderia ser visitado ocasionalmente.
Na linha de pensamento zizekiana, é o próprio desejo que força as pessoas a avançarem, levando-as a outro sistema desequilibrado em que a maioria, sem sombra de dúvidas, é menos feliz. Contraditoriamente, a busca pela felicidade retrata a incapacidade de enfrentar abertamente as consequências do que é postulado ao desejo, eis que como categoria do prazer torna-se indeterminada e inconsistente em relação ao social. “A felicidade é, portanto, intrinsecamente hipócrita: é a felicidade de sonhar com coisas que na verdade não queremos” (ŽIŽEK, 2003). O que Žižek quer nos dizer é que nossos sonhos estão cooptados pelo desejo ludibriado na possibilidade de tornar-se completamente inconstante, ao ponto de qualquer movimento de antagonismo vertical no arranjo social ser tratado como destruidor das pontes que permitem a conquista dos nossos sonhos. Ou seja, o enfrentamento político-econômico refreado.
É nessa mesma linha que Luis Alberto Warat (1988) localiza o desafio da humanidade encontrar felicidade e autonomia no mesmo lugar que encontrou a servidão. No estágio ilusório de excessiva satisfação das necessidades, sonhos sem compromissos permitem a fundação de um sistema abertamente não opressivo de controle da subjetividade e negligente quanto às necessidades sociais. Exsurge esta ordem totalitária de abolição do desejo, a vedação da ideologia consagra a negligência com as necessidades básicas visivelmente não cumpridas. A exposição das rachaduras da sociedade de consumo são ocultadas pela articulação integralizadora do Espetáculo em defesa da reprodução primordial das mercadorias. O descaso quanto ao abismo das desigualdades sociais está no nodoso sentido de felicidade que separa arbitrariamente necessidade e consumo. Nas filas quilométricas dos bancos, das lotéricas, nas cadeiras de espera dos serviços circula a bruta indignação, a heterogeneidade social não metabolizada, pulsão de vida a ser libertada no não-desejar o desejo melancólico do consumo. E para isso, é preciso, indubitavelmente, construir a possibilidade de viver a uma certa distância do culto pós-moderno, uma distância segura para observar o consumo; sem estar completamente submetido a Ele.
Notas e Referências
BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008b.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.
LIPOVETISKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LATOUCHE, Serge. Salir de la sociedad de consumo: voces y vías del decrecimiento. Trad. Magalí Sirera Manchado. Barcelona: Octaedro, 2012.
LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
WARAT, Luis Alberto. Manifesto do surrealismo jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real!: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
[1] Conforme explicado por Bauman (2008, p.71), trata-se de “[...] um tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções alternativas”.
[2] As pessoas sem os recursos necessários são, portanto, os consumidores falhos, inadequados para esse tipo de arranjo social (BAUMAN, 2008).
[3] O autor considera a obsolescência programada “a arma absoluta do consumismo” (LATOUCHE, 2009, p.21).”
[4] A “felicidade paradoxal” decorrente do consumo foi explorada por Lipovetsky (2007).
[5] Bauman aborda aquela que seria uma das principais rivais da Sociedade de Consumo: a satisfação permanente dos consumidores (2008).
[6] Vislumbra-se “a instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades” (BAUMAN, 2008, p.45),
[7] O autor externa preocupação tanto na obra “Pequeno tratado do decrescimento sereno” (2009) quanto em “Salir de la Sociedad de Consumo” (2012).
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