A dissolução de associação e a repartição do patrimônio entre “sócios proprietários” – Por Eduardo Silva Bitti

12/09/2017

É de conhecimento geral que as associações são pessoas jurídicas de fins não econômicos, cujo regramento está amparado nos artigos 53 a 61 do Código Civil.

Sobre elas, um dos pontos que gera dúvida está sobre a situação dos membros que pagam para adquirir quota ou fração ideal do patrimônio da associação.

A incoerência legal está justamente sobre o fato de que uma associação não possui sócios na acepção da palavra, mas a norma atual, que descreve os associados como titulares de quota ou fração do patrimônio associativo, leva a equívocos acerca daquilo que acontece em casos de dissolução da referida pessoa jurídica. Isso acontece, aliás, porque o Código Civil não explica o significado de tal titularidade, mencionando-a apenas no artigo 56, parágrafo único[1], como alvo de possível transferência e consequente efeito semelhante ao do princípio da affectio societatis do direito societário.

Como reação, é normal observar-se em estatutos a presença da expressão sócio proprietário e, com isso, ver-se ampliar a cobiça sobre o patrimônio associativo. Muitas vezes, com perdão do linguajar coloquial, a pessoa paga para ser membro de uma associação moribunda como um urubu que espera a morte de um animal para devorar-lhe a carne, no caso, o patrimônio sob possível divisão em caso de dissolução.

Há quem[2] já tenha narrado que às associações seriam aplicáveis os princípios que regeriam a partilha de bens da herança, na forma do artigo 671 do Código de Processo Civil de 1939, outrora em vigor quando da norma adjetiva de 1973, com fundamento no artigo 51, § 2º, do Código Civil, que preceitua que “as disposições para a liquidação das sociedades aplicam-se, no que couber, às demais pessoas jurídicas de direito privado” .

Todavia, grife-se que as questões inerentes à dissolução não podem ser tratadas nas associações da mesma maneira como ocorre nas entidades societárias.

O Código Civil de 1916 já previa, no artigo 22, que:

Extinguindo-se uma associação de intuitos não econômicos, cujos estatutos não disponham quanto ao destino ulterior dos seus bens, e não tendo os sócios adotado a tal respeito deliberação eficaz, devolver-se-á o patrimônio social a um estabelecimento municipal, estadual ou federal, de fins idênticos, ou semelhantes.

O Código Civil atual, no artigo 61, por sua vez, acrescentou ao texto a dedução das cotas ou frações ideais dos sócios proprietários, expressando que:

Dissolvida a associação, o remanescente do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais referidas no parágrafo único do art. 56, será destinado à entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes.

A questão é saber ao que correspondem as quotas ditas sob titularidade dos associados.

Não há estudos, ao menos recentes, sobre a composição do capital associativo, de maneira que pouco é falado acerca da relação entre ele e o associado. É possível dizer, no entanto, que não se pode confundir associação com condomínio, e que a quota associativa não tem a mesma natureza da quota societária.

A quota condominial refere-se à titularidade de coisa indivisa. Conforme explicam Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald[3], “cada proprietário pode-se dizer dono da coisa comum na sua integralidade”, podendo exercitar direitos, “pois comporta-se como proprietário exclusivo, sem necessidade de consentimento de outros proprietários”.

A quota de uma sociedade contratual, de outro modo, confere ao titular direitos ligados aos lucros societários e, por isso, em caso de dissolução, aquele possui haveres ligados ao valor do estabelecimento empresarial em si liquidado[4]. Em caso de dissolução, como ressalta Fábio Ulhoa Coelho[5], “a regra é a da divisão do acervo, segundo a participação de cada um no capital social”, após o pagamento das dívidas.

A quota da associação, por sua vez, possui características sui generis.

É interessante notar que o § 1o do mesmo artigo 61 prevê a possibilidade de cláusula estatutária, ou, em seu silêncio, por deliberação dos associados, destes poderem, antes da destinação do remanescente, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação. Maria Helena Diniz[6], sobre isso, inclusive, comenta que se a finalidade da associação não for altruística, “o associado poderá receber uma quota de liquidação daquele acervo social, ante seu direito de participante no patrimônio comum, de quota ideal, conforme os fins da associação, exceto se o estatuto prescrever o contrário”.

Não se concorda aqui, contudo, com a ideia de existência de um patrimônio em comum, eis que a associação possui personalidade e autonomia patrimonial. Logo, ainda que a associação não possua finalidade altruística, a quota a ser liquidada não poderá representar uma parcela do patrimônio associativo. Isso, porque é notório que o associado não poderia ser considerado um proprietário de quota do capital associativo, mas mero participante.

A possível restituição do valor das contribuições dos sócios proprietários ao patrimônio da associação, por clara antinomia, não faz do resultado contributivo uma verdadeira fração ideal, mas uma capitalização do valor patrimonial investido, restituível ao término da relação jurídica entre o associado e a associação.

Logo, a quota ou fração ideal associativa não confere direito de propriedade ao titular, vinculando-o a benefícios decorrentes da condição de associado, conferindo-lhe apenas o direito de restituição, quando muito, do respectivo valor atualizado das contribuições que tiver prestado ao patrimônio da associação.

E por mais que haja divisão epistemológica entre atividades altruísticas e não altruísticas, decerto tal configuração não afasta o caráter não lucrativo das associações. Daí porque todas elas têm sobre si um interesse público, o que permite fazer com que, no final de tudo, o restante do patrimônio não seja compartilhado entre os associados, mas, sim, direcionado pelo estatuto a “entidade de fins não econômicos designada” (artigo 61, caput)[7], ou (§2º) em caso desta não existir no Município, no Estado, no Distrito Federal ou no Território, em que a associação tiver sede, ser devolvido à Fazenda do Estado, do Distrito Federal ou da União.


Notas e Referências:

[1] “Se o associado for titular de quota ou fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não importará, de per si, na atribuição da qualidade de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo disposição diversa do estatuto”.

[2] V.g, FRANCELINO FILHO, Edmilson Barbosa. Parecer sobre extinção de associações civis cujo funcionamento seja inviabilizado por carência de sócios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1278, 31 dez. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/pareceres/16740>. Acesso em: 10 set. 2017.

[3] CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. V. 5. 12 ed. Salvador: JUSPODVM, 2016, p. 658.

[4] Código Civil, Art. 1.108: “Pago o passivo e partilhado o remanescente, convocará o liquidante assembléia dos sócios para a prestação final de contas”.

[5] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. V. 2. 15 ed. São Paulo

[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 1. 29 ed. São Paulo: SARAIVA, 2012, p. 293.

[7] Sobre tal ponto, o julgamento da Apelação 994.09.287598-8, pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ocorrido em 05/08/2010, no qual o relator, Desembargador Francisco Loureiro, emitiu voto no sentido de que “(...) à falta de deliberação da assembleia, se um dia vier a ser extinta a pessoa jurídica, a escolha da entidade destinatária do patrimônio cabe o juiz, com base na afinidade dos objetivos de entidades congêneres”.


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