A dificuldade de efetivar o direito à informação em meio ao império da publicidade: alguns apontamentos

26/10/2018

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

A publicidade é extremamente solícita para com aquele que compra. Ela insiste que todo esse esforço de produção de bens de consumo adapta-se às suas necessidades profundas, acompanha todos os seus desejos secretos. Ela não se dirige à massa, mas à pessoa. Na verdade, você não compra, é o produto que atende às suas expectativas. O dinheiro gasto torna-se uma mera formalidade, pois de qualquer modo “você” vinha sonhando com isso [1].

A publicidade. De início, adianta-se ao leitor, abordar-se-á a publicidade, aqui, considerando-se o modo como se apresenta e se dirige aos destinatários de suas mensagens: como uma generosa amiga.

Aparentemente solícita, compreensiva, autoproclamando-se atenta aos mais diversos anseios - e sempre dizendo-se disposta a solucioná-los -, a mensagem publicitária introduz-se em nossas vidas com imperativos e dizeres segundo os quais produtos ou serviços detêm o condão de oferecer exatamente aquilo de que tanto precisávamos. Ou melhor: desejávamos, na medida em que seus apelos não se limitam a enaltecer as utilidades ou funcionalidades do que é anunciado[2].

Nesse ponto, importa destacar que a publicidade, hoje, possui outras dimensões que não a meramente informativa. Informar, aliás, não é sua função, tampouco seu objetivo: não é com essa finalidade que sua mensagem é concebida. O foco que a direciona, vale dizer, a sua razão de existir, reside essencialmente em estimular o consumo e, assim, dedica-se com muito mais afinco - e, muitas vezes exclusivamente - à tarefa de explorar sensações e emoções dos diversos nichos que se propõe a atingir - ciente, inclusive, de que o agir dos consumidores tende a ser mais impulsivo do que fruto de ponderações racionais e esclarecidas. O poder imaterial da sedução publicitária, pode-se dizer, subjuga o pensamento racional, o qual, talvez, revele-se como um dos grandes adversários dos propósitos da atividade[3].

As características brevemente apontadas acima - delineadas à medida que a Sociedade de Consumo foi tomando forma[4] - fazem emergir aquele que constitui o maior trunfo da mensagem publicitária. Trata-se do aspecto que definirá o sucesso - ou não - da mensagem[5]: a aptidão para emocionar, para vincular sensações ao produto, serviço ou marca que se propõe a promover.

Cabe à publicidade, assim, direcionar o sonho e condicionar a satisfação do desejo à satisfação do consumo. A felicidade aos produtos e serviços[6]. Criar “sonhos de consumo”. Emerge em ambiência na qual a emoção dos consumidores é racionalmente empregada/explorada a serviço desse desiderato[7].

Eis aí o seu trunfo.  Deriva daí a sua relevância.

E, pela essencialidade do papel que desempenha na Sociedade de Consumo, não existe um local impróprio ou inadequado para que a mensagem publicitária se faça presente: a ela, cada vez mais, são destinados todos os espaços, 24 horas por dia. Não existem espaços em branco ou alheios à sua lógica: existem, apenas, espaços ainda não explorados pelo mercado[8].

Talvez, na dinâmica imposta, a publicidade consista em uma forma particular de arte: a arte oficial da sociedade capitalista. Aquela que ilustra ruas, preenche metade de jornais, de revistas, impregna o cotidiano[9]. Ocupa tempo e espaço[10]. É praticamente impossível olhar para o lado - seja qual for o lado - sem deparar-se com a publicidade[11].

Sua onipresença engendra um sistema mágico, ilusionista, concebido para forjar a percepção de que não bastam os bens, em si, mas tudo o que carregam, o prestígio ao qual se veem imantados, a validação do valor do adquirente, o significado que a aquisição possui, dimensões orquestradas e conferidas habilmente pelo discurso publicitário[12]. Não são comercializados produtos, mas um modelo falsificado e hipnótico da felicidade[13].

Entretanto, não obstante a característica de sedução que impregna a publicidade e a sua aptidão para conferir significados a produtos e serviços, é possível que, em meio a seu discurso lúdico e sedutor, façam-se presentes informações acerca do que é anunciado - caso isso se afigure interessante aos propósitos do anúncio. Na medida, portanto, em que a presença de tais dados detenha o condão de robustecer o potencial persuasivo da mensagem. Dito de outro modo, é possível concluir, considerando o contexto antes delineado, que a informação tende a ser veiculada somente quando relevante para o objetivo de estimular o consumo - uma vez que esse é o fim precípuo da mensagem publicitária.

E, parece correto afirmar, inclusive, que a informação, nesse cenário, funciona como ferramenta para a consecução dos propósitos do anúncio mágico. Apresentar informações concretas corresponde à legitimação da fantasia publicitária. À validação de sua magia. Ao aspecto concreto de seu encanto.

Talvez por isso seja tão relevante o controle da publicidade enganosa.

Sinteticamente falando, a tutela em face da publicidade enganosa visa a impedir que os consumidores, inebriados pelo alto poder de atração da mensagem, ajam movidos por um erro em relação às informações que vislumbraram no conteúdo que lhes atingiu.

A aferição da enganosidade, portanto, demanda aferição de potencial enganoso. É isso que se depreende do art. 37, §1°, do Código de Defesa do Consumidor[14], porquanto a enganosidade pode advir tanto de informações falsas efetivamente veiculadas quanto da omissão de dados relevantes. Aliás, estará presente sempre que a mensagem for capaz de induzir em erro o consumidor, seja qual for o modo utilizado.

Diante disso, compreende-se que não basta informar ostensivamente apenas o que for conveniente ao fornecedor e, em letras miúdas, apenas formalmente, as exceções inconvenientes que talvez comprometam a competência persuasiva da mensagem.

Ou, ao menos, não deveria bastar.

Diuturnamente, contudo, deparamo-nos com formas particulares de conteúdo publicitário que não correspondem minimamente à informação adequada exigida pelo Código de Defesa do Consumidor. Somos atingidos por anúncios nos quais se veem, com clareza, o destaque e a ostensividade assegurados às informações atraentes e, somente com muito esforço, os praticamente imperceptíveis dizeres que, se veiculados de forma ostensiva, talvez pudessem afastar o consumidor da oferta autointitulada imperdível.

Anúncios que, perfeitos e adequados do ponto de vista mercadológico - porquanto concebidos para estimular irrestritamente o consumo - distanciam-se do Direito e evidenciam desprezo a comandos normativos protetivos, revelando uma forma particular - e, infelizmente, comum - de omissão de informações.

O inconveniente ao Mercado é, nesse cenário, materialmente sonegado do consumidor - ainda que formalmente informado.

A lógica mercadológica, entretanto, não se restringe à elaboração das estratégias de marketing. Ela liberta-se, maquia-se e, apresentando-se como justificativa legítima para cercear (minar) direitos, invade os tribunais, impregnando decisões e fundamentações que se revelam contrárias ao direito do consumidor.

            Recentemente, em decisão na qual se discutia determinar a empresas de telefonia a não empregarem em seus anúncios na imprensa fonte de tamanho menor do que 12 pontos - em analogia ao art. 54, §3°, do CDC[15] -, o Superior Tribunal de Justiça[16] rechaçou a viabilidade da hipótese trazida, apresentando, no bojo da decisão, fundamentação que perpassa por sustentar a onerosidade e a inconveniência visual que decorreriam da imposição dessa obrigatoriedade. Ou seja, inadvertidamente, fundamentou-se na conveniência do mercado para opor-se à possibilidade.

Outra distinção diz respeito aos custos do suporte material do contrato e do anúncio. Tratando-se de um contrato, o espaço ocupado pelas letras no papel não é significativo em termos de custo, pois o custo de uma folha de papel é desprezível em relação ao preço dos produtos e serviços.

Tratando-se, porém, de um anúncio na imprensa, o espaço ocupado pelas letras tem um custo significativo, sendo, por vezes, superior ao preço do produto anunciado.

Um última distinção relaciona-se ao aspecto visual do texto (design gráfico), que é indiferente no âmbito de um contrato, mas é bastante relevante no âmbito das ofertas publicitárias. Essas significativas diferenças entre o contexto de um contrato e o contexto de uma oferta publicitária tornam inviável a pretendida aplicação da analogia. Sob outra ótica, a fixação do corpo 12 como mínimo para o tamanho das letras nos anúncios não resiste a um juízo de razoabilidade. Efetivamente, observa-se que a imprensa se utiliza de fontes de tamanho menores do que o corpo 12 na seção de classificados dos jornais, onde se concentra a maior parte dos anúncios ao mercado consumidor. Desse modo, uma norma que estabelecesse o corpo 12 como tamanho mínimo da fonte implicaria mudança na diagramação dos jornais, tornando mais onerosos os anúncios.

O direito do consumidor aqui, foi posto à prova - e saiu perdendo para a conveniência mercadológica.

Vive-se em em uma Sociedade (de Consumo) que prospera com consumidores impulsivos, rendidos aos prazeres prometidos em seus anúncios, convencidos pelo imperativo do “aqui-agora”, desestimulados a agir com ponderação. Consumidores que, de certo modo, consomem as sensações emanadas pelos anúncios - e não, simplesmente, os produtos e serviços ali veiculados. “Antes consumida do que destinada a dirigir o consumo”[17], a publicidade desenvolve-se em cenário no qual o marketing foca mais a percepção do consumidor do que os produtos oferecidos[18].

Proteger os consumidores nesse contexto implica, também, em disponibilizar informações claras, adequadas, estimulando escolha racionais e bem informadas. Informações efetivamente veiculadas, e não materialmente sonegadas mediante a aposição de dados relevantes em letras imperceptíveis - mormente se considerado que o constante no anúncio integra o contrato que eventualmente vier a ser celebrado[19].

A sobreposição da publicidade ao direito abre espaço perigoso para novas relativizações ao (muitas vezes ignorado) direito do consumidor. 

 

 

Notas e Referências

BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2006.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008).

GOBÉ, Mark. Brandjam: o design emocional na humanização das marcas. Trad. Maria Clara de Biase. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MESTRINER, Fabio. Design de embalagem: curso básico. 2ªed. rev. atual., São Paulo: Pearson Makron, 2002.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011. p.252.

[1] TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

[2] “É preciso seduzir o grande público com um modelo de existência cujo padrão envolve uma renovação constante do guarda-roupa, dos móveis, televisão, carro, eletrodomésticos, brinquedos das crianças, todos os objetos do dia-a-dia. Mesmo que não sejam verdadeiramente úteis” (TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p.27).

[3]Conforme esclarece Bauman, a Sociedade de Consumo aposta justamente na irracionalidade dos consumidores (BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008).

[4] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[5] GOBÉ, Mark. Brandjam: o design emocional na humanização das marcas. Trad. Maria Clara de Biase. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

[6] Ainda que, paradoxalmente, tenha potencial para gerar justamente o efeito inverso, conforme Toscani (TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996).

[7] BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[8] BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[9]  WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011. p.252.

[10] BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[11]  TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

[12]  WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011. p.252.

[13]  TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Trad. Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

[14] Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

[15] “§ 3°  Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor”.  

[16] (REsp 1602678/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 31/05/2017)

[17] BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2006.

[18] MESTRINER, Fabio. Design de embalagem: curso básico. 2ªed. rev. atual., São Paulo: Pearson Makron, 2002.

[19] Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

 

Imagem Ilustrativa do Post: book shelves // Foto de: pixabay.com // Sem alterações

Disponível em: https://www.pexels.com/photo/book-shelves-book-stack-bookcase-books-207662/

Licença de uso: https://www.pexels.com/creative-commons-images/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura