A “DEVOLUÇÃO” DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DURANTE O PROCESSO DE ADOÇÃO SOB O OLHAR DA TEORIA DO AMOR LÍQUIDO DE BAUMAN

21/04/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

O processo de colocação em família substituta por meio da adoção, previsto no artigo 28 da Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA), é permeado de sentimentos e emoções aos envolvidos: para os pretendentes à adoção a felicidade de encontrar, depois de anos aguardando na fila de espera, um perfil compatível, e, para o adotado a oportunidade de ter uma família, um lar, sair do abrigo e recomeçar a vida.

A partir da compatibilidade de perfis constantes no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA, inicia-se o procedimento regulamentado nos artigos 39 e seguintes da Lei Federal nº 8.069/90, sendo este intermediado pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e Juventude, juntamente com a colaboração dos técnicos responsáveis pela execução da política de convivência do município, para facilitação da aproximação entre os envolvidos.

Após os primeiros contatos, com o ajuizamento da ação de adoção, inicia-se o período de aproximação, os estudos da Equipe Interprofissional (assistente social, pedagogo e psicólogos) e o estágio de convivência. Nesse momento, são analisados os vínculos estabelecidos, a criação de laços, a adaptação e o envolvimento, com o fim de se garantir sempre alcance do melhor interesse da criança com a prolatação da sentença.

Durante o estágio de convivência são observadas as incompatibilidades (comuns) entre os envolvidos, é nesse momento que, para um número crescente de casos, o processo se interrompe, pois os pretendes à adoção alegam os mais precários motivos, dentre os quais a não adaptação à rotina, para deixar de prosseguir com o processo e “devolver” a criança/adolescente ao espaço de acolhimento.

Diante da percepção do considerável aumento do número de casos frustrados de adoção, motivados, principalmente, pela ideia da não adaptação da criança/adolescente aos pretendentes à adoção, acreditou-se ser possível perceber a fragilidade das relações modernas em razão da ausência de esforços para fazer durar – ou até mesmo, construir – um vínculo.

Nessa circunstância, observou-se a adoção como uma relação de consumo, pois diante da não adaptação, ou melhor, diante da ausência de esforços para fazer durar, devolve-se a criança e o adolescente como se mercadoria fosse, restando demonstrado, com o número crescente de casos, a fluidez das relações atuais, conforme abordado pelo sociólogo Polonês Zygmunt Bauman (2004)[1], na sua teoria do amor líquido.

O conceito trazido por Bauman de liquidez das relações humanas, constante em seu livro Modernidade Líquida (2001), implica dizer que com o advento da pós-modernidade os laços afetivos construídos entre os indivíduos estão se tornando cada vez mais frágeis, “fluidos”, no sentido de que a qualidade dos líquidos e gases quando são atingidos por alguma tensão sofrem uma constante mudança.

Bauman (2001) entende que as relações da pós-modernidade são fluidas por não serem capazes de durar, ou seja, não são capazes de manter-se sólidas, essas são as razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase.

Na atual era da liquidez o ser humano perde sua personalidade e torna-se coisa a ser consumida, usada, e quando esgotado ou insatisfeito o interesse desejado, este sujeito é descartado como se mercadoria fosse. No mundo pós moderno ninguém é insubstituível. Este panorama se reflete, principalmente, nas relações afetivas.

É possível afirmar que a realidade de liquidez das relações afetivas trazida por Bauman se relaciona com o tema abordado, pois, parte-se da hipótese de que a fragilidade das relações humanas interfere no fenômeno da devolução no processo de adoção, tornando evidente a ideia de relação de consumo.

 A criança/adolescente adotado é tido como coisa a ser consumida e em não sendo satisfeita a desejabilidade do adotante o mesmo é devolvido, isso ocorre porque não houve a solidificação dos vínculos afetivos, posto que na era moderna não são empenhados esforços para fazer durar uma relação.

 No intuito de demonstrar uma alternativa ao panorama de liquidez das relações humanas, Bauman (2004) ressalta que apenas a afinidade seria capaz de fazer durar um vínculo afetivo. Ressalta, também, que a menos que esta afinidade seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirmá-la, ela vai definhando, murchando e se deteriorando até desintegrar.

O processo de colocação em família substituta por meio da adoção é um ato de generosidade e amor. Tal procedimento, regido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no artigo 39 e seguintes, possui ampla subjetividade, pois se trata da existência de vínculos afetivos entre os envolvidos (adotante e adotado).

Diante da necessidade de se otimizar o processo de adoção e priorizar o tratamento de crianças e adolescentes que possuem mais dificuldades para serem adotados, em novembro de 2017 foi publicada a Lei Nº 13.509/2017, tornando mais célere a Ação de Adoção diminuindo os prazos para a conclusão do processo.

Inserir o indivíduo em uma família substituta deve ser medida excepcional destinada a amparar as crianças e adolescentes cujos direitos fundamentais se encontram violados, suprimidos ou ameaçados, quando já foram esgotadas todas as possibilidades de manter o infante em sua família natural, sendo observado sempre o seu melhor interesse (NADER, 2016).

O estágio de convivência é fundamental para a adaptação entre os envolvidos no processo de adoção, posto que o fortalecimento dos laços afetivos decorre dessa proximidade, esse período é necessário para o magistrado decidir, considerando o melhor interesse da criança, se irá conceder ou não a adoção por meio de uma sentença.

Nesse momento de aproximação, surgem as diferenças e dificuldades de relacionamento entre os envolvidos “quando não ocorre o estabelecimento de um vínculo afetivo familiar de fato entre adotante e adotado, poderá ocorrer um duplo abandono, ou a “devolução” da criança que passa a ser vista como um “problema” (RIEDE; SARTORE, 2013, p. 2)

Expectativas são criadas quando se pensa em adotar uma criança, tanto pelos pretensos pais quanto pelo adotado; essas ilusões podem levar à decepção que carretarão infelicidades entre as partes. É preciso que os adotantes tenham consciência de que para o Poder Judiciário, o processo termina com a sentença, mas na vida dos envolvidos está apenas começando (RIEDE; SARTORE, 2013).

Apesar da diversidade das situações, em todos os casos de “devolução” está presente uma “coisificação” da criança, que perde sua dimensão de sujeito, transformando-se em produto descartável (LEVY; PINHO; FARIA, 2009).

Levy, Pinho e Faria (2009) constataram nos casos estudados em sua pesquisa que as crianças ou teriam que corresponder exatamente ao “produto encomendado” ou representariam um corpo estranho incapaz de ser assimilado no interior daquelas famílias. A dificuldade de lidar com o diferente e suportar frustrações, a falta de vínculo, a incapacidade de conter a agressividade da criança e dar-lhe um sentido, foram características que estiveram presentes em todas as situações apresentadas. Um novo abandono, uma nova decepção, uma descrença nos adultos e profundas sequelas impressas na vida destas crianças.

Adverte Dias (2017) que como a adoção é irrevogável (ECA 39 § 1.º), rompe todos os laços com a família biológica. Ainda assim, com certa frequência simplesmente os adotantes “devolvem” o filho que adotaram. Tal situação não está prevista na lei, mas infelizmente é algo que existe. De qualquer forma, como pode ocorrer a destituição do poder familiar do adotante (Código Civil, art. 1.638), é aceita a devolução, até por uma questão de praticidade. A criança pode ser imediatamente adotada por outrem. Talvez essa seja a solução que melhor atenda aos seus interesses, pois pode vir a ser adotada por quem de fato a queira.

Como forma de punir o ato da devolução imotivada, a jurisprudência vem impondo aos adotantes que desistem da adoção, o dever de pagar alimentos e indenização por danos morais e materiais para subsidiar o acompanhamento psicológico de quem teve mais uma perda, até ser novamente adotado (DIAS, 2017).

Apesar do relatado acima, o entendimento de impor aos adotantes que desistem da adoção o dever de pagar alimentos e indenização por danos morais e materiais ainda está sendo introduzido no panorama nacional. Especificamente, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais tem sido o mais recorrente a julgar nesse sentido.

Para melhor compreensão de como tem ocorrido à aplicação dessas penalidades aos adotantes desistentes, têm-se 02 (dois) julgados do referido Tribunal, o primeiro publicado em 14.04.2014 e o segundo em 23.04.2014, ambos relatados pela Desembargadora Vanessa Verdolim Hudson Andrade, quais sejam, a AC nº 10702095678497002-MG e a AC nº 10024110491578002-MG.

Assim sendo, de forma a vislumbrar possíveis respostas ao questionamento titular acreditou-se que, com o advento da modernidade as relações humanas passaram a ser superficiais, líquidas, fluidas, e, essa realidade também se refletiu,  no processo de colocação em família substituta através da adoção, porque com tais características, entende-se que o ser humano se tornou “coisa” a ser consumida e com a satisfação ou não do interesse almejado, o mesmo é descartado como se mercadoria fosse.

O tema em questão versa sobre a vida de crianças e adolescentes com o fator emocional comprometido, pois tiveram seus direitos violados e negligenciados e, por esse motivo, passaram a residir em espaços de acolhimento – os quais em sua maioria, detém poucos recursos e sobrevivem de doações – aguardando o tão sonhado dia em que serão adotados, nesse sentido, infere-se quão importante é sua discussão.

Ademais, o processo de adoção carrega, também, uma concepção de ordem subjetiva, por ser sedimentada em sentimentos e carga emocional dos envolvidos. Partindo desse pressuposto, tem-se a compreensão do quanto é necessário que ocorram estudos para aprimorar os procedimentos com o fim de efetivar a mudança neste quadro crescente de devolução.

 

Notas e Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

________________. Modernidade Líquida. tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BITTENCOURT, Renato Nunes. A Estrutura Simbólica da Vida Líquida em Zygmunt Bauman. Argumentos Revista de Filosofia. Ano 2, N° 4. 2010.

COSTA, Epaminondas da. Estágio de Convivência, “Devolução” Imotivada em Processo de Adoção de Criança e Adolescente Reparação por Dano Moral e ou Material. 2009. 10 f.  Tese. Florianópolis, 2009.

DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. 2. ed. em ebook baseada na 2. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

__________________. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. em ebook baseada na 12. ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

Ghirard, M.L.A.M. A devolução de crianças adotadas: ruptura do laço familiar.

LEVY, Lídia; PINHO, Patrícia Glycerio R.; FARIA, Marcia Moscon de. “Família é Muito Sofrimento”: um estudo de caso de devolução de crianças. Revista Psico. Porto Alegre. PUCRS. V 40, n° 1, pp 58-63, mar. 2009.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, V. 5: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

PAIVA, Juliana Fernanda. A Devolução de Crianças Adotadas. 2016. 37 f.

Monografia – Curso de Direito, Universidade Tuiuti do Paraná. Disponível em:

<http://tcconline.utp.br/media/tcc/2017/02/A-DEVOLUCAO- DE-CRIANCAS-ADOTADAS.pdf>; Acesso em: set. 2017.

SILVA, Sheyva Fernanda Nascimento da. A restituição de crianças ao abrigo pós-processo de adoção: um estudo qualitativo. 2016. 41 f. Monografia – Curso de Direito, Escola Superior Madre Celeste.

TORRES, Felipe. Adeus ao Pai da Modernidade Líquida. Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/sarcasmo_e_sonho/2017/01/adeus-ao-pai-da-modernidade-liquida.html#ixzz5EGug3ZSc >. Acesso em : abr. 2018.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: família. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

 

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