Investir no Brasil tem sido um grande desafio, especialmente nos últimos anos. De igual modo, não tem sido fácil dar continuidade a atividade empresária, considerando-se que uma boa parte dos empresários está a conviver em duas frentes: cuidar do negócio, sua prospecção e ao mesmo tempo cuidar de gerenciar o passivo. Dois focos completamente distintos e desagregadores, cuja consequência, frequentemente, é a cessação da atividade impactando no desenvolvimento do País.
Em artigo publicado nesta coluna em 25/01/2018 (aqui) pautamos sobre a gestão do passivo empresarial ancorado no princípio da confiança, sustentando, naquela oportunidade, que a crise econômico-financeira da empresa caracterizada pela impontualidade impõe ao empresário a necessidade de repensar o seu negócio. A primeira indagação diz respeito à factibilidade, oportunidade em que será possível reavaliar o produto ou serviço, o que ele representa, deixou de representar ou poderá representar ao mercado.
Ocorre que, além dos desafios pontuados, a continuidade da atividade da empresa em crise esbarra em outros obstáculos impostos não apenas pela lei, mas pela conduta das Fazendas Públicas, que no afã de forçar o pagamento ou o parcelamento do crédito tributário acabam por inviabilizar a recuperação da empresa, fruto de uma leitura precipitada e desalinhada da intenção de fundo do regime falimentar.
A sistemática falimentar no Brasil sempre esteve envolta em considerável insegurança jurídica, seja pela imprevisibilidade das leituras construídas a partir de conceitos jurídicos indeterminados, seja pela existência de incompatibilidades entre as disposições normativas e o contexto econômico vigente.
Neste panorama veio a se incluir a regra contida no art. 57 da lei nº. 11.101/05, que prevê, com a leitura conjunta do art. 191-A do Código Tributário Nacional, a necessidade de apresentação das certidões negativas de débitos tributários após a juntada do plano de recuperação judicial já aprovado pelos credores.
Com o advento desta determinação legal, doutrina e jurisprudência tiveram de enfrentar considerável celeuma sobre a imprescindibilidade, ou não, da apresentação destas certidões negativas de débitos tributários para a homologação do plano de recuperação já devidamente aprovado em assembleia.
Contudo, quando do julgamento do REsp nº. 1.187.404/MT, relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, sedimentou-se o entendimento pela desnecessidade da comprovação de regularidade tributária, diante da inexistência de legislação específica para disciplinar o parcelamento da dívida, dando fim à controvérsia até então existente.
A despeito de este precedente efetivamente ter consagrado um período de estabilidade quanto ao tema, em meados de 2014 foi promulgada a lei nº. 13.043, que regulamentou o parcelamento de débitos tributários junto à Fazenda Nacional do contribuinte em recuperação judicial, acrescentando, à lei nº. 10.522/02, o art. 10-A.
A partir de então, portanto, a lacuna legislativa que justificaria a inaplicabilidade direta do art. 57 da lei nº. 11.101/05, segundo o precedente do Superior Tribunal de Justiça, passou a não mais existir no âmbito dos tributos federais, o que culminou em uma nova onda de divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Frisa-se, aliás, que este movimento não se limitou à esfera federal, seja porque diversos Estados passaram a replicar esta legislação em suas respectivas esferas de poder, seja porque publicaram leis específicas até mesmo antes do Congresso Nacional, como ocorreu no Estado do Paraná, cuja lei nº. 18.132/14 foi publicada meses antes.
Por um lado, as Fazendas Públicas passaram a defender a interpretação pura e simples de que a exceção criada jurisprudencialmente à obrigação imposta no art. 57 da lei nº. 11.101/05 não mais se justificava, razão pela qual todos os processos recuperacionais em trâmite deveriam apresentar, como condição sine qua non para a homologação do plano aprovado pelos credores, as certidões negativas de débitos tributários do respectivo ente federal em que houvesse lei de parcelamento tributário para empresas em recuperação judicial.
E esta posição, efetivamente, tem sido acolhida em recentes julgados proferidos pelos tribunais, dentre os quais o TJPR: (AI - 1736354-1; 18ª Câmara Cível, Unânime, j. 07.02.2018); (AI - 1638745-8; 18ª Câmara Cível, Unânime - j. 25.10.2017).
Por outro lado, há forte corrente doutrinária[1], que também vem sendo respaldada pelo Judiciário[2], no sentido de que não seria possível impor a necessidade de apresentação de certidões negativas de débitos tributários com base na lei nº. 13.043/14, ou em outra com conteúdo análogo, como é o caso da lei estadual do Paraná nº. 18.132/14. E isto, sucintamente, com base em três argumentos:
1) Tendo em vista a disposição do §2º do art. 10-A da lei nº. 10.522/02 (incluído pela lei 13.043/14), que prevê que a recuperanda deverá renunciar a quaisquer impugnações, administrativa ou judicial, dos débitos que serão objeto de parcelamento (a título de ilustração, regra análoga está contida no §1º do art. 3º da lei estadual do Paraná nº. 18.132/14), verifica-se uma distorção decorrente da simples replicação, nestas regras específicas às empresas em recuperação judicial, do texto usualmente contido em programas ordinários de parcelamento tributário. Afinal, enquanto a inclusão de débitos nestes programas ordinários é uma faculdade, o que justificaria a penalidade de sua confissão irrenunciável e irretratável, no contexto da recuperação judicial a adesão é compulsória. Assim, obriga-se a recuperanda a assumir diversos débitos que eventualmente não seriam devidos, ou que apresentassem alta probabilidade jurídica de revisão, tão somente para conseguir homologar seu plano de recuperação judicial. Em outras palavras, portanto, vislumbra-se a esdrúxula situação na qual uma empresa em crise seria praticamente coagida a incluir eventuais débitos tributários indevidos em seu passivo para poder se valer de um instituto jurídico que tem por importante finalidade, justamente, reduzir seu passivo frente aos credores. Evidente, aqui, a flagrante incompatibilidade entre as regras do parcelamento tributário para empresas em recuperação judicial e os princípios norteadores da lei nº. 11.101/05.
2) Considerando o prazo máximo de parcelamento de 84 meses previsto no caput do art. 10-A da lei nº. 10.522/02 (por sinal, mesmo prazo concedido pelo art. 3º da lei estadual do Paraná nº. 18.132/14), verifica-se evidente desproporção entre este prazo e aquele usualmente concedido em programas de parcelamento tributário, de até 165 meses (como ocorreu no chamado PERT – Programa especial de regularização tributária, regulado pela lei nº. 13.496/17). Tamanha assimetria apenas corrobora a dissonância entre as regras de parcelamento específicas para as empresas em recuperação judicial e o contexto econômico no qual estão inseridas, uma vez que, ao invés de se presumir que empresas em crise precisarão de prazos mais extensos do que aqueles ordinariamente concedidos para as demais, o legislador, na contramão deste senso comum, restringiu os prazos de pagamento para esta espécie de devedor fiscal.
3) Conforme dispõe a legislação falimentar, os créditos tributários não se submetem à recuperação judicial, ou seja, além de não se sujeitarem a descontos negociados em assembleia geral de credores, a Fazenda Pública tampouco fica impedida de dar seguimento às execuções fiscais movidas em face da recuperanda. Assim sendo, o grande questionamento da doutrina sobre a questão é a desproporcionalidade entre os privilégios concedidos aos créditos tributários quando comparados aos demais, descompasso este que apenas se acentua com a inclusão de mais uma prerrogativa em favor da Fazenda Pública, qual seja, a necessária apresentação de certidão negativa de débitos tributários para a homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores.
Por todo o exposto, nota-se a fragilidade da argumentação das Fazendas Públicas frente aos sucessivos fundamentos que demonstram a completa incompatibilidade entre os princípios regentes que contextualizam o instituto da recuperação judicial e a obrigação imposta pelo art. 57 da lei nº. 11.101/05, nos termos das leis recentemente editadas para a criação de regras de financiamento de débitos tributários para empresas em recuperação judicial.
A despeito de a justificativa teórica prevista no REsp nº. 1.187.404/MT não mais existir, a exigência da apresentação de certidão negativa fiscal como condição sine qua non para a homologação do plano recuperacional mostra-se medida infrutífera e prejudicial, tanto para a própria recuperanda, que vê dificultada sua recuperação diante do aumento dos ônus que deverá transpor, como para o próprio Fisco, que, diante desta imposição, colabora para o encerramento da atividade e da consequente fonte de tributos, impactando sobremaneira no desenvolvimento do País.
Notas e Referências:
[1] Destaca-se, neste sentido, J. P. Scalzilli, L. F. Spinelli, R. Tellechea, Recuperação de Empresas e Falência, São Paulo, Almedina, 2016.
[2] (TJSP. AI 2223469-67.2017.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 16.03.2018); (AI 2157939-53.2016.8.26.0000. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 14/12/2016).
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