A prática do casamento infantil, que afeta predominantemente as meninas, é um exemplo notório das redes de desigualdade entrelaçadas nas sociedades contemporâneas. A influência do capitalismo e na persistência do patriarcado se reflete nesse fenômeno, intensificando os vínculos entre desigualdade de gênero, vulnerabilidade e a contínua perpetuação de estruturas sociais opressivas.
O conceito de casamento infantil se refere à união matrimonial, seja ela formal ou informal, envolvendo pelo menos um dos cônjuges com idade inferior a 18 anos (Organização das Nações Unidas, 2022). No entanto, uma análise crítica aponta que essa prática não ocorre isoladamente, mas é moldada por uma teia intricada de fatores que influenciam a sociedade. A subjugação das mulheres, intrínseca ao patriarcado, e a exploração econômica fomentada pelo capitalismo agravam a continuidade do ciclo do casamento infantil.
A nível global, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking de casamentos infantis, sendo líder na América Latina. Dados significativos da organização Girls Not Brides revelam que 36% das meninas abaixo de 18 anos estão casadas. O casamento infantil parece ser influenciado tanto por tradições culturais quanto pela falta de alternativas econômicas, especialmente para as mulheres que desejam se libertar da tutela familiar (DUQUE-ARRAZOLA, 1997). Entretanto, além das justificativas culturais, essas estatísticas demonstram que a consensualidade frequentemente resulta de motivações vinculadas à vulnerabilidade.
Na realidade dos países da América Latina e do Caribe, o Brasil chama a atenção pelo elevado índice absoluto de casamentos na infância e adolescência. Embora os registros do SINASC apontem para uma prevalência significativa de meninas de até 13 anos em matrimônios ou uniões estáveis entre 2011 e 2015, frequentemente não se consegue determinar a idade dos parceiros envolvidos. Isso levanta suspeitas de subnotificação desse dado, uma vez que, segundo Souto et al. (2017) os casamentos nessa faixa etária, no país, costumam ocorrer predominantemente sem registro em cartório.
Para melhor compreender esse fenômeno, é crucial abordar sucintamente a construção social da infância. Nas eras medievais, crianças e adolescentes eram considerados em pé de igualdade com os adultos, sem distinção em relação à sua fase única de desenvolvimento. Com o advento da classe burguesa, surgiram as primeiras nuances na compreensão da infância, caracterizada predominantemente pela dependência (ARIÈS, 1981). À medida que a sociedade moderna se desenvolvia, emergia o conceito de adolescência, delineando uma fase intermediária entre a infância e a idade adulta. Essa fase é um ponto de transição entre a maturidade biológica/física e a maturidade psicossocial, moldada pelas interações sociais e pelo progresso humano.
No Brasil, a adolescência ainda é considerada uma transição entre a infância e a vida adulta, porém frequentemente associada a estereótipos que a retratam como problemática, caracterizada pela predominância da imaturidade dos indivíduos (REIS; ZIONI, 1993). Até a década de 1950, os adolescentes eram frequentemente encaminhados para o mundo do trabalho, enquanto as meninas eram incentivadas à maternidade precoce. Em certos contextos históricos, o casamento precoce para adolescentes era até mesmo promovido, resultando em gestações prematuras (REIS; ZIONI, 1993; SILVA; LAVORATTI, 2020).
Entretanto, o cenário começou a mudar com o advento das lutas sociais e mudanças legislativas, quando a percepção da criança e do adolescente evoluiu de meros sujeitos de responsabilidade ou objetos para seres detentores de direitos, em virtude da implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990). Esse estatuto regulamenta diversas práticas relacionadas a eles e rege as legislações voltadas para a infância e adolescência.
Na perspectiva legislativa, o casamento infantil contraria diretamente o disposto no artigo 16 da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Esse artigo enfatiza que as mulheres devem ter os mesmos direitos que os homens para "escolher livremente o cônjuge e contrair matrimônio apenas com livre e pleno consentimento". Além disso, estabelece que os "esponsais e o casamento de uma criança não terão efeito legal".
No âmbito nacional, o Código Civil Brasileiro regula o casamento, estabelecendo que a capacidade para casar (idade núbil) é de 16 anos (artigo 1.517), com a ressalva de que, para aqueles que ainda não alcançaram a maioridade civil, é necessária a autorização de ambos os pais ou representantes legais. A legislação também estipula que, em situações de desacordo entre os pais de um menor de 18 anos (ou maior de 16 anos), a autorização pode ser suprida por meio de uma decisão judicial.
Apesar dos esforços consideráveis para erradicar o casamento infantil, as leis e regulamentações em muitas regiões ainda não são suficientemente rígidas para proteger as crianças. Organizações internacionais, como a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, preconizam a proibição total do casamento infantil, estabelecendo 18 anos como a idade mínima para o casamento consentido.
O casamento infantil, para além das leis, demanda uma análise crítica das dinâmicas de gênero. A sociedade delineia um destino para as mulheres desde a mais tenra idade, perpetuando a aceitação passiva das normas patriarcais. Jovens mulheres são compelidas a escolher entre diversas formas de violência, onde o homem é erroneamente apresentado como a única saída. A expectativa de cuidar da casa, reproduzir e, mais recentemente, trabalhar, continua a sobrecarregar as mulheres, perpetuando sua exploração e submissão.
O casamento muitas vezes é visto como uma fuga para essas meninas, o que, por sua vez, limita suas possibilidades de projetos de vida. Por vezes, essa prática é inserida no contexto de estratégias econômicas de sobrevivência familiar, onde as crianças são consideradas "ônus financeiros", levando à conclusão errônea de que casá-las é uma forma eficaz de reduzir os encargos (COSTA, 2019). Crianças nessas situações frequentemente são privadas da sua infância, sendo forçadas a adotar papéis adultos antes de estarem preparadas. No entanto, é válido salientar que a produção e reprodução das práticas sociais é um sistema dialético, no qual as famílias influenciam e são influenciadas pelas estruturas sociais. Não sendo passível, portanto, a responsabilização individual e privada à família sobre os casamentos infantis.
O elevado número de união estável e casamento, presente em muitas regiões, pode ser interpretado, em parte, como um esforço de alcançar a ascensão social e buscar independência do seio familiar. Essa busca muitas vezes, conforme Souto et al. (2017) resulta na substituição dos laços com os pais pela dependência afetiva ou financeira do casal. No entanto, essa expectativa de melhoria nem sempre se concretiza conforme o planejado.
O casamento infantil acarreta uma série de ramificações, tanto imediatas quanto de longo prazo. As jovens envolvidas nesse cenário se deparam com elevadas incidências de violência doméstica e se tornam mais suscetíveis a uma gravidez precoce e não planejada, o que amplifica os riscos de complicações maternas e de saúde. Além disso, om desdobramento intrínseco a esses fatores é o abandono da educação, algo que frequentemente emerge como uma consequência direta dessa prática. Essas meninas passam a enfrentar uma maior demanda por tarefas domésticas e cuidados maternos, que, erroneamente, são encarados como parte de um planejamento familiar, levando-as a se distanciarem das atividades escolares (SOUTO et al., 2017). Isso gera uma transição abrupta da infância e adolescência para a vida adulta.
Portanto, as implicações do casamento precoce na infância e adolescência são de alcance considerável e abrangem múltiplas esferas. Desde questões de saúde ligadas à gravidez e maternidade em idades tão tenras até desafios educacionais, restrições nas interações sociais e a exposição a situações de violência por parte dos parceiros. A gravidez nesse período representa um risco significativo e desestabilizador para a vida dessas jovens. O crime de estupro, que muitas vezes está subjacente a esses casamentos forçados, não apenas inflige danos físicos, mas também tem implicações profundas no corpo, na mente e na dignidade das vítimas. As consequências desse trauma podem levar a afetações na saúde mental, incluindo tentativas de suicídio, e podem ter um impacto duradouro na saúde física e qualidade de vida das vítimas, sobretudo em relação à saúde sexual e ginecológica. Isso também é associado a uma menor adoção de métodos contraceptivos, aumentando a probabilidade de gravidezes em idades precoces e a recorrência da violência (SOUTO et. al, 2017).
Segundo Souto et al. (2017), a gravidez em crianças e adolescentes com menos de quinze anos pode acarretar, ainda, em complicações graves para o bebê, como a maior propensão à prematuridade, baixo peso ao nascer, problemas respiratórios, traumas durante o parto, doenças perinatais mais frequentes e uma taxa ampliada de mortalidade infantil.
Nesse sentido, Costa (2019) pontua que profissionais especializados na proteção de crianças e adolescentes indicam que as motivações subjacentes ao casamento infantil estão intrinsicamente ligadas às condições vulneráveis das comunidades onde essa prática é mais prevalente. Além disso, a presença de ambientes familiares abusivos e a ausência de uma intervenção estatal efetiva, incluindo a aplicação de políticas públicas, emergem como fatores predominantes que impulsionam esse fenômeno.
O casamento infantil, ao ser examinado em conjunto com a desigualdade de gênero, o sistema capitalista e o patriarcado, revela uma conexão inegável. Enfrentar essa questão complexa exige uma abordagem multifacetada, incluindo educação, conscientização pública e reformas legislativas. Erradicar o casamento infantil é essencial para construir uma sociedade mais justa, igualitária e livre das amarras opressivas do patriarcado e do capitalismo.
Essas realidades complexas são moldadas por uma interação intrincada de fatores, incluindo a perniciosa influência das normas patriarcais que colocam as jovens em uma posição submissa e vulnerável e a exploração exacerbada pelo sistema capitalista. Enfrentar essa problemática exige uma abordagem que transcenda a esfera individual, demandando mudanças estruturais na sociedade. A erradicação do casamento infantil exige não somente a criação de legislações mais rigorosas e abrangentes, mas também a desconstrução dos sistemas patriarcais arraigados.
É imprescindível considerar os casamentos e uniões forçadas como uma questão de interesse público, demandando a responsabilidade do Estado e das políticas públicas na criação de estruturas e oportunidades adequadas e eficazes. Portanto, o investimento em políticas públicas que tenham como objetivo central a capacitação e a oferta de educação de qualidade para as meninas que se encontram em situações de vulnerabilidade. Além disso, é necessária a implementação de programas que contem com equipes técnicas adequadamente capacitadas para disseminar informações e fornecer orientações às crianças e adolescentes. Paralelamente, tais políticas devem abranger a sensibilização dos pais e da sociedade em geral, promovendo uma discussão franca e aberta sobre as ramificações do casamento infantil.
A incorporação do tema nos planos setoriais específicos destinados a crianças e adolescentes, em todas as esferas governamentais, é um passo essencial. De forma complementar, é de extrema importância inserir essa temática nos planos de ação e nos programas de capacitação dos conselhos de direitos e dos conselhos tutelares, abarcando tanto a esfera municipal quanto estadual e federal.
A obtenção de dados confiáveis e abrangentes sobre uniões formais e informais é um pilar fundamental para a compreensão completa dessa questão complexa. Tais dados precisam ser entrecruzados com outras variáveis cruciais, como educação, saúde e incidência de violência. Para tal empreendimento, é imperativo fazer uso dos sistemas, pesquisas e bases públicas e oficiais.
No contexto da formação profissional no âmbito dos serviços públicos, é urgente incluir conteúdos que abordem temas como gênero, direitos sexuais e as implicações de casamentos e uniões forçadas e precoces envolvendo meninas adolescentes. Uma atenção especial deve ser direcionada aos profissionais que atuam diretamente nas políticas públicas, uma vez que esses indivíduos estão na linha de frente, enfrentando as realidades vivenciadas por crianças e adolescentes. Consequentemente, o estímulo à formação contínua que abarque essas áreas de conhecimento contribuirá para uma abordagem mais sensível e eficaz na proteção desses grupos vulneráveis.
Notas e referências
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Guanabara, 1981.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). 2019. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 03 de ago. de 2023.
BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher: CEDAW. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005.
COSTA, L. S. Casamento Infantil - Infância roubada por graves violações dos direitos humanos das crianças. Hucitec, 2019.
DUQUE-ARRAZOLA, L. S. O cotidiano sexuado de meninas e meninos em situação de pobreza. In: Madeira, F. R. (Ed.). Quem mandou nascer mulher? Estudos sobre crianças e adolescentes pobres no Brasil (1ª ed., pp. 343-367). Rosa dos Ventos, 1997.
GIRLS NOT BRIDES. (s.d.). Child marriage around the world. Recuperado de <https://www.girlsnotbrides.org/where-does-it-happen/>. Acesso em 03 de ago. de 2023.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção sobre a eliminação convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher – CEDAW – 1979. Nova Iorque. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso em 4 de ago. de 2023.
REIS, A. O. A.; ZIONI, F.. O lugar do feminino na construção do conceito de adolescência. Revista de Saúde Pública, v. 27, n. 6, p. 472–477, dez. 1993.
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SOUTO, R. M. C. V. et al. Estupro e gravidez de meninas de até 13 anos no Brasil: características e implicações na saúde gestacional, parto e nascimento. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2909-2918, 2017. Disponível em <https://doi.org/10.1590/1413-81232017229.13312017>. Acesso em 3 de ago de 2023.
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