A desconsideração da personalidade jurídica no CPC/2015: breves apontamentos de questões controvertidas – Por Bruna Karoline Bezerra

11/08/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

I. Introdução

É inquestionável que a previsão procedimental da desconsideração da personalidade jurídica pelo CPC/2015 trouxe maior segurança jurídica. Entretanto deixou passar despercebidas várias questões controvertidas atinentes ao tema.

 O intuito do presente artigo é abordar algumas destas questões ainda debatidas demonstrando as posições divergentes.

II. A personalidade jurídica

Antes de discorrer sobre a desconsideração da personalidade jurídica, cabe esclarecer a sua relevância no universo jurídico. A pessoa jurídica é uma ferramenta técnica-jurídica constituída com a finalidade de viabilizar a organização da atividade econômica, ou melhor, é um instrumento utilizado para o exercício da propriedade.[1]

A constituição de uma personalidade jurídica gera três consequências: a) a primeira é a titularidade obrigacional, que consiste na capacidade da pessoa jurídica de contrair obrigações sem envolver os sócios; b) a segunda é referente à titularidade processual, que se trata da legitimidade da pessoa jurídica em demandar ou ser demandada judicialmente por suas obrigações, sem que haja envolvimento dos sócios; c) a terceira e última trata-se da responsabilidade patrimonial, uma das consequências mais importantes, deriva-se do princípio da autonomia patrimonial, consiste na distinção patrimonial entre a pessoa física dos sócios e da pessoa jurídica.[2]

III. A desconsideração da personalidade jurídica

A desconsideração da personalidade jurídica consiste na suspensão excepcional e episódica da personalidade jurídica.[3]

Para alguns estudiosos este instituto tem a finalidade de suprimir o privilégio da limitação da responsabilidade em certo contexto[4]. Para outros, o objetivo da desconsideração é coibir o “mau uso” da personalidade jurídica pelos seus sócios que se utilizam dela para cometer atos fraudulentos e dolosos, ou encerram irregularmente a sociedade, abusam de direitos, confundem os patrimônios, ou ainda, desviam a sua finalidade.[5]

No ordenamento jurídico brasileiro há diversos dispositivos legais que tratam da desconsideração da personalidade jurídica, dentre eles o Código de Processo Civil no seu artigo 28, na Lei Antitruste no seu artigo 34, na Lei 9.605/98 no seu artigo 4º, bem como no Código Civil, no seu artigo 50.

À luz do princípio protecionista, alguns destes dispositivos legais passaram a utilizar-se do instrumento da desconsideração nos casos em que havia a mera insolvência da pessoa jurídica, esta teoria é chamada de Teoria Menor, e a teoria em que possui requisitos inerentes ao “mau uso” para a desconsideração chama-se Teoria Maior, que conforme o seguinte julgado:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSUMIDOR. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA PESSOA JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INDÍCIOS DE FRAUDE. INEXIGÍVEL. APLICAÇÃO DA TEORIA MENOR. DECISÃO REFORMADA. 1. O Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor adotam teorias distintas para justificar a desconsideração da personalidade jurídica. Enquanto o primeiro acolheu a teoria maior, exigindo a demonstração de abuso ou fraude como pressuposto para sua decretação (CC art. 50), o CDC perfilha a teoria menor, a qual admite a responsabilização dos sócios quando a personalidade da sociedade empresária configurar impeditivo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor (CDC art. 28, § 5º). 2. Na hipótese, tratando-se de relação de consumo, comprova-se a realização de diligências infrutíferas no sentido de encontrar bens passíveis de penhora, sendo suficiente para decretar a perda episódica da personalidade jurídica do fornecedor. 3. Somando-se a ausência de patrimônio, têm-se fortes indícios da prática de atos fraudulentos, uma vez que a executada não foi encontrada nos diversos endereços indicados nos sistemas de pesquisa, constando nos registros da Receita Federal como inapta. 4. Recurso conhecido e provido. (Acórdão n.950088, 20150020332364AGI, Relatora: MARIA IVATÔNIA 5ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 22/06/2016, Publicado no DJE: 29/06/2016. Pág.: 213/221.

(Grifos nossos)

A teoria menor também é adotada pela Justiça do Trabalho que embora não possua previsão expressa em seu diploma legal, tem aplicado de forma mais liberal a desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que basta a mera insolvência da pessoa jurídica para desconsiderá-la.[6]

Outro dispositivo legal que adota a teoria menor é a Lei 9.605/98, conforme se pode observar no seu artigo 4º:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

A teoria maior, por sua vez, é adotada pelo Código civil, sendo necessário o cumprimento dos requisitos elencados no artigo 50 para que haja a desconsideração:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Ou seja, para Teoria Maior, adotada pelo Código Civil é necessário mais do que a mera insolvência.

IV. Pontos divergentes

O Código de Processo Civil de 2015 de fato inovou e prosperou ao instituir a previsão da desconsideração, sanando a dúvida que pairava no Código anterior sobre a forma processual apropriada para a sua aplicação, uma vez que definiu tratar-se de um incidente, não mais de uma ação autônoma.[7]

Embora existam vários progressos no atual Código de Processo Civil referente ao assunto, alguns pontos ainda se mantêm convergentes.

A primeira questão que gera discussões refere-se ao momento da instauração do incidente.

Para o jurista Alexandre Freitas Câmara, o pedido de instauração do incidente de desconsideração deverá passar por um juízo de admissibilidade para analisar se estão presentes todos os requisitos do artigo 134, §4º, podendo então ser instaurado após ser proferida a decisão admitindo-o e expedindo-se o ofício ao distribuidor, para que realize as anotações devidas (art.134, §1º). Caso haja rejeição liminar do requerimento, o magistrado concederá ao requerente a oportunidade de se manifestar, consoante dispõe os artigos 9º e 10 do CPC.[8]

Já para o Doutor Daniel Amorim Neves, o mero pedido da parte já é suficiente para instauração do incidente, pois a espera da decisão do magistrado para instaurar o procedimento poderá conceder tempo suficiente para que a pessoa a qual se pretenda alcançar utilize-se de manobras fraudulentas para se esquivar.[9]

No que tange a fraude à execução e a desconsideração da personalidade jurídica estão em visível desarmonia.

Isto porque, ao observar o que está disposto no artigo 134, §1º e 137 do CPC, acredita-se que o marco inicial para a configuração da fraude à execução é o do momento da anotação pelo distribuidor, pois este é o ato que dará publicidade ao incidente da desconsideração.[10]

Ocorre que não é isto que dispõe o artigo 792, § 3º do CPC:

Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

[...]

§ 3o Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Ou seja, o sujeito atingido pela desconsideração poderá incorrer em fraude à execução a partir da citação do requerido originário.

É obvio que esta desarmonia gera insegurança jurídica, pois o terceiro de boa-fé que realizar todas as diligências necessárias em nome dos sócios para adquirir um imóvel, por exemplo, poderá ser surpreendido.[11]

Outra questão que gera divergência é a qualidade processual do sujeito atingido pela desconsideração, não é definido se ele passa a ser apenas um responsável secundário pela dívida ou se possui legitimidade para formar um litisconsórcio passivo ulterior, ou ainda, se o indivíduo é apenas um terceiro no processo.[12]

Esta definição é de grande relevância, pois dependendo da posição que for dada ao sujeito no processo, definirá a forma de sua defesa na execução.

Gilberto Bruschi, Rita Nolasco e Rodolfo Amadeo definem que o sujeito possui apenas responsabilidade executiva secundária, com fundamento no art. 790, inc. VII do CPC.[13]

V. Conclusão

Por fim, pode-se concluir que de fato o Código de Processo Civil de 2015 trouxe benefícios e solucionou algumas das discussões que pairavam sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica. Entretanto, alguns pontos que poderiam ter sido solucionados passaram despercebidos, dando margem à insegurança jurídica e a pluralidade de interpretações.


Notas e Referências:

[1] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016.

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016.

[5] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: sociedades simples e empresárias. Volume 2. 4. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010.

[6] PEREIRA, Talita Martins; MANGONARO, Junior César. A desconsideração da personalidade jurídica: sua aplicação no âmbito brasileiro= Disregard to the legal personality: its application in the brazilian context. Unopar Científica: Ciências jurídicas e Empresariais, Londrina, v.10, n.1., mar. 2009. Disponível em < http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/35096/desconsideravao_personalidade_jur%C3%ADdica_pereira.pdf>. Acesso em: 18 de abril de 2017.

[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. único. 9. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017.

[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. único. 9. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017.

[10] BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[11] BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[12] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. único. 9. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017.

[13] BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.


 

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